04 Novembro 2015
Cruzaram-se por acaso essa semana, em São Paulo, os filósofos Simone de Beauvoir, francesa, ícone do feminismo, e Fernando Savater, espanhol, reconhecido pensador da filosofia da educação, com livros traduzidos em 20 países. Savater esteve no Brasil para o evento Fronteiras do Pensamento, na quarta-feira. Beauvoir, que morreu em 1986, esteve por aí, em rodas de conversa e redes sociais, estrela de questão da prova do Enem, o que levou dois deputados reacionários a qualificarem o teste como “doutrinação” feminista, e seus seguidores a chamarem a filósofa de “nazista” e “pedófila”.
A entrevista é de Vitor Hugo Brandalise, publicada por O Estado de S. Paulo, 01-11-2015.
Defensor de “educar para a tolerância”, Savater sorriu quando Beauvoir apareceu a ele, em forma de pergunta. Respondeu assim: “Sempre que ouvi falar de doutrinação na educação foi de pessoas relacionadas à intolerância religiosa, cujo único fim no ensino é, sempre, doutrinar. E, porque são intolerantes, doutrinam para pior. Na Espanha franquista, os padres o faziam. Temo que seja assim em todo lugar.”
Mente aberta
Savater soube também que, por aqui, pedir a alunos que escrevam sobre violência contra a mulher, tema da redação do Enem, ainda causa polêmica. “Se houve controvérsia, é preciso mesmo falar disso em aula”, disse o filósofo, que defende, em O Valor de Ensinar (Planeta), “escolas plurais, que ensinem a respeitar, inclusive, aquilo de que não gostamos”.
Autor de mais de 80 livros sobre ética, política educação, Savater cultiva a clareza e a linguagem simples em seus textos. Certa vez, foi acusado de “trivial”. Rebateu: “trivialidade é o que fica na cabeça de um imbecil quando escuta alguém falar com clareza”. E é porque ainda não estão lá tão claras as razões do governo paulista para fechar 94 escolas (30 delas com notas acima da média e, entre as que ficam na capital, a maioria está na periferia), que Savater quis falar sobre isso apenas “por princípio”. “Sempre vou preferir que se feche um McDonald's do que se feche uma escola”, como disse ao Aliás.
Eis a entrevista.
As escolas devem educar especialmente para uma profissão ou para a vida?
Para mim, educação é transmissão do que consideramos essencial de nossa cultura, de nossa vida às outras gerações. Há essa faceta, de ensinar destrezas que sirvam para o trabalho, mas também há a formação cívica e ética. Comparo a educação com uma pessoa em sua casa, onde estão todos os seus bens preciosos, quadros, livros, discos. De repente, há um incêndio, e é preciso salvar aquilo de que gostamos. É isso, o que há de valioso, o que queremos passar adiante, a razão de ser da educação. Mas o que acontece é que hoje a educação se considera simplesmente laboral. Queremos formar empregados, pessoas rentáveis, que ganhem e façam ganhar dinheiro, rapidamente. Essa pode ser uma opção, mas não é a base da educação. O fundamental no ensino é formar cidadãos, pois na democracia somos todos governantes. E, como somos governantes, é preciso educar para não sermos malgovernados. Se caímos nas mãos de ignorantes, fanáticos, cínicos, a democracia será prejudicada, ou impossibilitada, como aconteceu em alguns lugares.
O que se perde a partir dessa ênfase laboral?
Se torna só adestramento, pobre do ponto de vista existencial. Os gregos rechaçavam isso. Viam o Império Persa, que não educava os filhos, só ensinava um ofício. Ao filho de um artesão, o artesanato. Mas não havia formação cidadã. Já os gregos desprezavam isso. Queriam formar um cidadão capaz de encontrar seu próprio destino, e não alguém que nasce para ocupar um lugar determinado. As escolas devem ser sempre abertas à liberdade de escolha. Com método, com disciplina. Paradoxalmente, na educação, liberdade e autonomia são frutos da disciplina.
Como a escola auxilia na busca por vocação?
A escola é um lugar onde a pessoa se civiliza. A família é um mundo de afetos, importantes para o desenvolvimento, mas todo centrado no que é nosso. Nossa casa, os filhos mais bonitos, a melhor mãe. Aí surge a sociedade, que começamos a entender na escola, onde encontramos pessoas com quem não temos laços, mas que precisamos respeitar. É o que acontecerá ao longo da vida, que em grande parte se dá em um mundo não afetuoso, do trabalho, da política. A escola é um lugar para aprender que não é só brincando que se demonstra o amor à vida, mas também cumprindo atividades socialmente necessárias e desenvolvendo uma vocação. Pois cada vocação é uma forma de amar a vida e uma arma para lutar contra o medo de viver. Vale a pena enfrentar tudo isso? Uma boa escola ajuda a tirar o medo. Os pais devem auxiliar, aconselhar sem pressionar, porque serão pouco ouvidos, de toda forma. Já os professores devem ser capazes de despertar a vocação do aluno, de educá-lo para que deseje educar-se mais. Fascinar, sem hipnotizar.
Um exame nacional, o Enem, citou Simone de Beauvoir e foi qualificado de “doutrinação”. Tratar de temas como esse em exames é doutrinar?
Na escola há uma doutrinação permanente, não? E nem todas as doutrinas são ruins. Às crianças se ensina a não bater nos menores, a respeitar os adultos... São doutrinas, e nos parece normal. O problema não é doutrinar ou não. Ao estudar filosofia na escola, é preciso saber o que disse Simone de Beauvoir. O que o professor não pode fazer é dizer que essa é a verdade e que não há outra. Há que ensinar pensamento crítico, e é preciso aplicá-lo. Sempre que ouvi falar mal de doutrinação na educação foi de pessoas relacionadas a algum tipo de intolerância religiosa, cujo único fim no ensino é doutrinar. E, porque são intolerantes, doutrinam para pior. Na Espanha, os que se opuseram sempre a tudo o que parecia uma ética cívica foram os padres, que passaram o franquismo todo doutrinando, para pior, os espanhóis. Temo que seja assim em todo lugar.
Por que defende que assuntos como intolerância, violência, drogas sejam tratados na escola?
Há quem acredite que se educam as crianças para que continuem crianças, mas as educamos para que sejam adultos. E melhores do que nós. Então é preciso tratar do que nos preocupa. Uma criança de 3 anos não tem de ouvir sobre o aborto, mas há um momento em que esse assunto, e outros, relacionados à sexualidade, ou à morte, terão de ser tratados. Para isso estão na escola. É onde se revela o outro, os vínculos capazes de unir a criança aos demais, a outros países, onde não há os mesmos costumes, os mesmos gostos, a mesma ideologia.
Nesse mesmo exame o tema da redação, violência contra a mulher, causou controvérsia.
Às vezes acontece na Espanha. Parece um acordo dos que, desgraçadamente, propagam a tradição machista de que o varão é dono da mulher. Mas isso já é senso comum. Não é preciso ser feminista para saber que o marido não pode bater na mulher. Se houve controvérsia aqui sobre esse assunto, é porque é preciso mesmo falar dele nas escolas.
Outro assunto debatido é a inclusão de termos como gênero nos planos de ensino. Qual sua opinião a respeito?
São temas delicados, é preciso cuidado. Mas deve-se tratar de gênero, orientação e diversidade sexual, porque as crianças vão se deparar com isso. Há crianças que desde novas têm dúvidas. A escola existe para explicar situações humanas e resolver problemas humanos. E essas são situações humanas, não algo que o demônio introduziu. Falar disso é uma questão de tolerância, um dos princípios das sociedades pluralistas. E passa pela escola, que precisa ensinar a conviver inclusive com aquilo de que não gostamos.
Escolas no Brasil usam exames como o Enem para fazer propaganda. O que isso indica?
Avaliações são importantes como controles, para ver se os alunos estão aprendendo e se o professor está se fazendo entender. Mas não podem se tornar a finalidade da escola. Quando se tornam, está relacionado aos males do ensino privado, que causa essas distorções. O fundamento do ensino é que seja público. Esse deve ser sempre um dos pilares de um bom Estado, pois as pessoas que mais precisam de escola são as que não podem pagar. Por isso o orçamento da educação deve ser o maior. O Exército não pode ter mais dinheiro do que as escolas. É verdade que a boa educação é muito cara. Mas a má educação custa muito mais. Nada sai mais caro a um país do que ter seus cidadãos mal informados e ignorantes.
Muitos alunos já não tomam nota, mas sim tiram foto da lousa. Isso é uma perda?
Para mim, o ensino tem certa dimensão de artesania. As crianças têm de aprender que o que conta é o professor, e sua própria relação com ele, e não com a máquina. Sou partidário de que a certas idades não se entre com celular na classe. Porque, se o aluno não escreve, só tira fotos do que os outros escrevem, corre o risco de nunca conseguir escrever algo direito. Acho que há um período em que o melhor é minimizar a tecnologia. Que se use lápis, caderno, lousa. Dispositivos eletrônicos, no fundo, distraem. Hoje, um dos problemas das crianças é a dificuldade de se concentrar. Naturalmente, elas já se distraem com o que veem na janela, um pássaro, uma mosca. Mas nós, professores, sempre tentamos que se mantenha a atenção. Sem atenção não se faz nada de importante, não há arte, nem ciência. E, se a criança pensa mais no aparelho divertido que têm, é difícil que preste atenção no professor. Voltando às notas, creio que elas ajudam a fixar, a refletir sobre o que se aprende. Eu mesmo, após décadas dando aulas, comecei a refletir sobre educação depois de convidado a escrever sobre ela.
Uma mudança no ensino em São Paulo priorizou manter numa mesma escola alunos de mesma faixa etária. Qual sua opinião sobre isso?
Considero benéfico alunos de diferentes idades numa mesma escola. Os maiores e os pequenos ficam juntos no recreio, se veem, falam. Para mim, parece bom tudo o que faça com que as crianças vejam aspectos diversos da realidade, ou seja, que há pessoas mais velhas com diferentes gostos e ambições.
O governo fechou 94 escolas no Estado. Fecham-se escolas, em qualquer lugar do mundo?
Não sei dos pormenores do plano. Mas, por princípio, vou sempre preferir que se feche um McDonald’s do que se feche uma escola.
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Mente aberta. Entrevista com Fernando Savater - Instituto Humanitas Unisinos - IHU