30 Outubro 2015
Em um contexto extremamente conservador e de imensos retrocessos para os direitos das mulheres no Brasil – tanto no Congresso Nacional como na execução de políticas públicas – esse último final de semana foi marcado pela surpreendente forma como algumas das questões foram abordadas pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
A reportagem foi publicada por Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil, 29-10-2015.
Assim que abriram o caderno de provas no último sábado (24) os/as estudantes se depararam com uma questão, em especial, que chamou a atenção e rapidamente ganhou destaque nas redes sociais. A prova de Ciências Humanas e Suas Tecnologias trazia a seguinte afirmação da filósofa Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.”
Vale dizer que Simone de Beauvoir é uma importante pensadora francesa com uma extensa produção bibliográfica e que participou de ciclos filosóficos com Jean-Paul Sartre, Colette Audry, entre outros. Para além da produção acadêmica propriamente dita, Beauvoir teve uma existência marcada pelo enfrentamento às desigualdades de gênero e questionamentos importantes que se tornaram paradigmas não apenas na França, mas que marcaram o mundo inteiro.
Após a divulgação da questão a internet foi tomada por comentários de quem defende os direitos das mulheres comemorando a citação de Beauvoir e a abordagem do tema. Uma usuária do Twitter escreveu: “Imagina aquele monte de omi machista fazendo a questão da Simone de Beauvoir”. Um estudante afirmou: “Abrir a prova e ver que era texto da Simone Beauvoir foi bom d+”.
Lamentavelmente, críticas e discursos de ódio também ganharam eco e foram reproduzidos na forma de ofensas e demonstrações de preconceitos por meio de publicações em redes sociais.
Alguns vídeos repletos de ódio também foram divulgados. Em um deles, em pouco mais de 3 minutos uma jovem faz uma “análise” dos temas abordados que sintetiza tais discursos sobre os direitos. “Tu pega essa p**** dessa prova e tem o quê? Mulher não nasce mulher, Paulo Freire é revolucionário, os militares malvadões deixaram uma dívida pro nosso país, princesa Isabel não libertou ninguém”. Para ela, isso é fruto de uma “doutrinação marxista” que está sendo “esfregada na cara”. A estudante ainda questiona o sistema de cotas com a seguinte sugestão: “Se tu não for preto ou índio eu já aconselho você a se bronzear pra você conseguir uma vaga.” E conclui: “Lembre-se, mulheres nascem com vagina e homens nascem com pinto, e nada disso vai mudar só porque você quer”.
No ano em que foi retirada qualquer referência de “gênero” dos Planos Nacionais de Educação, repercutindo nos Planos Estaduais e Municipais, a inclusão de uma filósofa feminista parece causar tanto incômodo porque traz à tona um debate que precisa ser enfrentado, que é o papel desenvolvido pelas mulheres em uma sociedade marcada pelas desigualdades e violência. Na época do lançamento de “O segundo sexo”, na França, várias foram as censuras ao livro e uma inquisição se seguiu a todas as publicações da filósofa.
No Brasil, mais de 6 décadas depois, uma reflexão ainda que teórica sobre as desigualdades de gênero causa tamanho espanto que nos leva a refletir o quanto a inclusão desse debate precisa ser enfrentada de forma responsável e ética.
É justamente para impedir que reações extremas persistam que os movimentos sociais, não apenas feministas, lutam por uma educação que possibilite o debate sobre o respeito à diversidade, aos direitos das mulheres, dos/as negros/as, dos indígenas, das lésbicas, gays, travestis e transexuais e de outros grupos que vêm sistematicamente sendo criminalizados e alijados de seus direitos.
Violência contra a mulher
No segundo dia de provas, neste domingo (25/10), a surpresa ficou por conta do tema da redação que acabou, também, gerando grande repercussão. Ao propor a discussão sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, a Comissão que elaborou a prova colocou para mais de 7 milhões de estudantes o desafio de pensar a violência contra as mulheres como um tema emblemático e dolorosamente persistente no Brasil.
Assim que o tema da redação foi divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), começaram as reações: “Eu vivi para ver um Enem feminista”, comemorou uma jovem. Um rapaz afirmou: “Espero que os machistas que acham violência contra a mulher algo normal saiam com a vontade de pensar de uma outra forma esse tipo de prática.
O ano de 2015 marca uma legislatura em que o Congresso Nacional debate de forma absolutamente irresponsável e desastrosa o direito das mulheres vítimas de violência, a discussão sobre um tema tão profundo, seguramente representa um importante avanço na construção de uma mudança de cultura sobre a permissão, ainda que silente, que o corpo das mulheres dá em uma sociedade patriarcal e machista.
O que poderia ser dito
Se os/as estudantes que fizeram a prova e aqueles/as que, mais uma vez, revelaram seu ódio contra temáticas voltadas à defesa dos direitos humanos estivessem apropriados do tema poderiam escrever em suas redações e/ou nas redes sociais que:
– De acordo com a Central de Atendimento à Mulher, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2014, 35% das mulheres em situação de vulnerabilidade sofreram agressões semanalmente, tanto na forma de violência física, como psicológica e sexual. Na última década, mais de 43 mil mulheres foram assassinadas no Brasil, representando um aumento de 17% em homicídios.
– Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança, somente em 2014 houve 47.646 casos de estupro, o que significa uma média de 130,5 atos de violência sexual por dia.
– Apenas em São Paulo, a cada 2 dias uma mulher registra boletim de ocorrência por assédio sexual nos trens e metrôs da capital. Isso sem contar aquelas que diariamente sofrem com estes abusos no transporte coletivo, mas não relatam.
– Pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE) mostra que em 2013 as brasileiras ganharam, em média, R$479,09 a menos do que os homens. A diferença de ganhos chega a 25,8%. Num ranking que analista as desigualdades salariais em 142 países, o Brasil ficou na posição 124. Se isso não for corrigido, um estudo mostra que deve levar 80 anos para que as mulheres tenham salários iguais aos dos homens.
Certamente o debate sobre as desigualdades e violências de gênero deve estar presente em todos os espaços sociais. Porém, resta saber se o sistema educacional brasileiro está preparado (ou se preparando) para assumir um importante papel na mudança de cultura e na promoção e respeitos aos direitos humanos.
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As mulheres na prova do Enem 2015 e o discurso de ódio contra os direitos humanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU