27 Agosto 2015
"A utopia histórica dos Guaranis na busca da 'terra sem males'(yvymaräei, com outras variantes), que de alguma maneira segue fazendo parte do seu imaginário; e, por fim, diremos algumas palavras sobre a perspectiva de construir a utopia a partir do 'bem viver' (tekoporá, tekovekatu ou outras versões). (...) Apresento duas situações extremas em dois povos guarani atuais. O primeiro é bastante positivo: provém do avanço crescente da Nação Guarani-Chiriguano para sua autogestão, expressada recentemente em seu Estatuto, já aprovado, para sua Autonomia Guarani no município de Charagua, na Bolívia. O segundo, ao contrário, é a situação desesperadora em que vivem os Kaiowá no Mato Grosso do Sul, no Brasil". Esses são os comentários de Xavier Albó, acerca do "Bem Viver" dos índios Guarani, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU e que reproduzimos abaixo, na íntegra. A tradução é de André Langer.
Xavier Albó, jesuíta, é professor, doutor em Lingüística e Antropologia pela Universidade de Cornell e em filosofia pela Universidad Católica del Ecuador, de Quito; licenciado em Teologia pela Facultad Borja, de Barcelona e pela Loyola University, de Chicago. Atualmente é membro do conselho acadêmico do mestrado em Antropologia da Universidad La Cordillera e do doutorado em Desarrollo del CIDES (Universidad Mayor de San Andrés). É coordenador latino-americano de jesuítas em áreas indígenas e membro da Academia Boliviana de História Eclesiástica. Desde 1994, é membro do Comitê Diretivo do Programa de Investigação Estratégica na Bolívia (PIEB).
O professor Albó estará na Unisinos São Leopoldo, no dia 27 de agosto, para proferir a palestra Bem-Viver. Impactos na América Latina, às 17h30min, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU e a conferência O grande desafio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre recursos naturais, às 20h, no Auditório Maurício Berni.
Os eventos são promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
Os povos e línguas guarani têm uma particularidade única. São – com o quéchua/quíchua – as duas famílias de línguas pré-colombianas mais faladas hoje no Continente, neste caso, por talvez oito milhões de pessoas, embora com dezenas de línguas diferentes. Mas, uma alta porcentagem deles é formada pelos paraguaios, dentro e fora de seu país, que falam o dialeto jopará (= mistura) e não se consideram indígenas nem por sua língua nem por seus costumes. Nesse país, quase 90% dos cerca de sete milhões de habitantes sabem essa língua – que, desde 1992, é considerada uma língua oficial – e, deles, apenas 27% é monolíngue nela. Mas em todo o país, apenas 2% se consideram indígenas, seja como membros e/ou falantes de algum dos outros seis povos e línguas da família guarani (47,5 mil segundo o censo indígena de 2002) ou de algum outro dos 11 povos indígenas chaquenhos.
Aqui, apenas esboçaremos algo sobre os guarani autoidentificados como indígenas, sem nos referirmos a essa grande maioria de fala guarani jopará paraguaia que já perdeu tal identificação étnica, apesar de suas raízes nas célebres reduções jesuíticas. O fato de que sejam milhões os que podem entender-se mesmo que parcialmente em guarani é um dado linguístico, educativo e intercultural muito importante, mas não tanto para o nosso tema central.
Então, os aproximadamente 125 mil guarani chiriguano do Chaco boliviano ou emigrados, em sua grande maioria para Santa Cruz (Censo de 2001), já passam a ser o grupo mais significativo, ainda mais no atual contexto político do país. Na Bolívia, há também outros 12 mil guaraios e outros quatro povos menores de fala guarani. Somam-se a eles os quase 50 mil de outros seis povos no Paraguai, os 60 mil do Brasil, entre os quais se sobressaem os 28 mil do povo Kaiowá (Paí Taviterá), 13 mil Ñandeva no Mato Grosso e sete mil Mbyá; entre 22 mil e 35 mil (de acordo com o critério adotado) sobretudo de três povos no Chaco argentino, e – o mais ocidental – os 15 mil Cocama-Cocamilla na Amazônia peruana.
Fixaremos primeiro naquela sua utopia histórica da busca da “terra sem males” (yvymaräei, com outras variantes), que de alguma maneira segue fazendo parte do seu imaginário; e, por fim, diremos algumas palavras sobre a perspectiva de construir a utopia a partir do “viver bem” (tekoporá, tekovekatu ou outras versões).
Yvymaräei
O paraguaio de origem maiorca-espanhola, Bartolomeu Melià, é um dos principais estudiosos da etnohistória e etnografia guarani e, para ele, em sua concepção original, o que ele chama, com Ruíz de Montoya, de yvymarane’ÿ, tinha dois componentes principais muito conectados entre si: o econômico-produtivo e o religioso.
• O componente econômico-produtivo consistia em encontrar um território com “terra boa, fácil para ser cultivada, produtiva [medida sobretudo em termos de seu bom milho], suficiente e amena, tranquila e aprazível, onde os Guarani possam viver em plenitude seu modo de ser autêntico” (Melià, 1988: 26).
• O componente religioso, como contraponto messiânico da fuga de um lugar habitado anteriormente, ameaçado de destruição por uma ou outra razão. Ali “onde não há nem morte nem doença, onde a terra se cultiva sozinha e onde se pode dançar e cantar em uma festa sem fim... Corresponde também ao país onde se acontece o reencontro com Kandiré, herói civilizador de certa tradição mitológica guarani” (Id. 25).
Historicamente, esta crença explicaria, ao menos em parte, a longa marcha, desde pouco antes da chegada dos europeus, com diversas ondas migratórias do oriente para o ocidente, chegando inclusive até os primeiros contrafortes da Cordilheira Andina. Esta busca se acelerou significativamente após a chegada dos europeus pelo Oriente, por outro motivo: estes haviam convertido os velhos territórios dos Guarani antes em “terras de males”. Por isso, migraram mais para o ocidente. Ao se encontrarem no atual Paraguai e no norte argentino com os jesuítas, sua proposta de missões-reduções de alguma maneira respondia a essa expectativa, e dessa maneira pôde florescer ali uma nova civilização, com uma combinação construtiva de elementos nativos e externos, que foi e segue sendo objeto de numerosos estudos.
Ao contrário, as migrações que chegaram mais ao ocidente, até o Chaco hoje boliviano e o pé de montanha andino, também tiveram um forte componente de conquista, através de guerreiros [kereimba], frente a pacíficas populações mais sedentárias e agrícolas de origem chanéArawak estabelecidas ali desde antes. Estes dois povos acabaram se fundindo com certa hierarquização e dominação inicial dos guerreiros guarani Ava, chegados mais tardiamente, sobre os habitantes originais, a quem, inicialmente, consideravam inferiores e meio escravos (tapyi), mas com os quais, por sua vez, se casavam e finalmente se fundiram, passando todos a adotar o idioma guarani. Mas certa diferença entre ambos ainda hoje é visível em muitas partes.
Os espanhóis e depois os bolivianos chamavam-nos primeiro Chiriguaná e depois Chiriguanos, termo que parece fazer referência a essa fusão (“aqueles que têm mulher guaná [chané]”). Mas, atualmente, eles mesmos, influenciados seguramente por mestres collas de suas escolas rurais, que lhes dizem que chiri wanu significa (em quéchua) “esterco frio”, rechaçam agora esta denominação e preferem chamar-se apenas guarani ou com seu nome étnico mbya (pessoa). É também bom sentir-se fazendo parte da imensa família guarani com suas talvez 60 línguas e dialetos.
Uma particularidade político-organizacional desse Povo Guarani-Chiriguano é que sempre evitaram ter um governo único central e se relacionavam melhor (como os Mapuches do sul) mediante alianças mais pontuais entre grupos menores dirigidos por seu mburuvichaguasu (comparáveis aos lonko mapuches) que variavam segundo a conjuntura envolvendo, às vezes, apenas temporariamente também espanhóis ou crioulos em um dos lados. O casal Clastres (1974) caracteriza-os como “povos sem Estado”, não por terem um desenvolvimento menor, mas por decisão própria.
Entre as suas características chave de “bem viver” (tekokavio porá) está o ser iyambae (sem dono), o que implicou também que, dentro de cada comunidade, a autoridade deve ter baixo perfil em tempos de paz (para que todos possam realizar-ser “sem dono”), mas com capacidade de convocar e liderar em tempos de perigo.
Outra característica foi seu grande jogo de manobra e de aceitação intercultural de elementos provenientes de qualquer origem; parte disso também foi sua capacidade de negociação política para chegar a acordos com outros grupos sociais.
De fato, em parte por essa organização política interna de baixo perfil e por sua cultura bélica (kereimba) com um estilo bélico mais semelhante às guerrilhas, conseguiram resistir melhor do que muitos outros à plena conquista e colonização. É um dos povos indígenas que, embora logo tenha estabelecido contatos estáveis com os espanhóis, melhor resistiu à Conquista e Colonização em todo o continente.
Tiveram atitudes variáveis com os missionários. Os jesuítas, chegados também ao Chaco desde as suas exitosas missões-reduções do Paraguai, não tiveram aqui o mesmo êxito, porque esses Guarani chegaram conquistando em busca da terra sem males, e não fugindo das ameaças de outros invasores, como os do lado paraguaio. Os jesuítas conseguiram estabelecer algumas missões, mas outros as seguiam refutando. Mais tarde, os franciscanos tiveram maior êxito, talvez por seu enfoque inicial mais flexível.
Kuruyuki, 1892
Entretanto, os karai (= brancos, não Guarani) iam, pouco a pouco, entrando no território guarani; uns pela via da violência e com apoio militar, outros através da expansão de fato de suas fazendas de gado. Disse-se que em muitas partes as vacas e seu estilo de pastar nas montanhas avançavam mais do que as pessoas com suas armas.
Nas primeiras décadas após a Independência de 1825, foram antes os Guarani-Chiriguano os que em muitas partes aumentaram suas margens de autonomia. Mas a partir dos anos 1860, a iniciativa foi passando ao Governo Republicano, que multiplicou os seus esforços de todo tipo para assentar sua presença e a dos grupos de proprietários de terras que o apoiavam no Chaco.
Os Guarani-Chiriguano não contemplavam passivamente esse avanço, embora com essa nova arremetida se polarizassem também mais as duas estratégias de seus mburuvichaguasu: os que se prestavam mais para negociar com os karai, dentro daquilo que Francisco Pifarré chama de “diplomacia guarani”; aqueles que lhes resistiam mais frontalmente; e nessas circunstâncias ameaçantes, também a terceira via de aceitar mais as reduções-missões religiosas, que neste tempo já eram exclusivamente dos franciscanos [1]. Mais ainda, um mesmo mburuvichaguasu podia mudar de estratégia de acordo com a conjuntura. Combès conclui que em muitos casos esses mediadores eram aliados indispensáveis, mas pouco confiáveis. Entre eles sobressai-se Mandepöra/na em Macharety com influência sobre uma vasta região.
Houve dois momentos particularmente cruciais: a rebelião geral e derrota de Guacaya (1874-5, mais suas sequelas) e, sobretudo a rebelião de Kuruyuki em 1892, que selou a tardia e plena conquista e colonização desses resistentes Guarani-Chiriguano.
Em Guacaya (1874-5), bem como em vários episódios anteriores, deve-se ressaltar a aliança parcial que existiu com os Toba, antes seus inimigos, pelo fato de ambos terem coincidido na mesma missão. Ambos estiveram, além disso, incitados pelos discursos messiânicos de seus ipayes (xamãs), que lhes deram garantias de que gozavam de proteção divina contra as balas. Nessa sua nova rebelião geral, estavam de fato ganhando a batalha, quando dois tiros certeiros acabaram com dois desses ipayes, e veio a confusão. Ao final, o chefe da tropa boliviana convocou todos para Yuki para negociar sua retirada. Mas essa foi apenas uma armadilha: capturou em seguida os seus líderes e amarrou-os dois a dois obrigando-os a andar em fila para regiões mais distantes a leste; alguns tentaram safar-se da servidão e os militares reagiram matando-os um a um. Suas mulheres e filhos, assim como famílias de outros setores passaram a servir em fazendas; muitos outros emigraram para a Argentina; mas não faltaram aqueles que seguiram resistindo. Com essa acelerada transformação de territórios guarani em novas fazendas e dos antes aguerridos kereimba (guerreiros indomáveis) sem dono (iyambae) muitos se transformaram em submissos e fiéis peões de fazenda.
Em janeiro de 1892 ocorreu em Kuruyuki, perto de Ivo e Cuevo (Chuquisaca), o desastre final, em que morreram a bala milhares de flecheiros guarani, ao passo que em muitas partes do Continente concluíam-se os preparativos para celebrar o quarto centenário da chegada de Colombo e dos ibéricos a essa região do mundo [2].
Para o nosso tema, a questão mais significativa é que outro jovem profeta – Apiaguaiki Tumpa – conseguiu novamente convocar importantes setores dos Guarani-Chiriguno nas proximidades de Ivo incluindo promessas semelhantes às de duas décadas antes, mas também outras características que empalmaria com a tradição guarani-chiriguana de viver bem. Pifarré (2015: 304, nota 13) ressalta que o novo tumpa (homem-deus) aparece e se consolida em circunstâncias de desespero em que os Chiriguano se sentiam paravete (pobres, sem amparo). Seus oráculos rechaçam de modo taxativo o karai e afirmam os aspectos mais étnico-tradicionais: a terra sem males, de gratuidade, repouso, etc., embora ao mesmo tempo incorporem todo um sincretismo de símbolos políticos, religiosos e culturais. O Tumpa é um mestiço, ao menos do ponto de vista cultural e, em certo sentido, aparece como alguém desconhecido.
Comparando o xamanismo tupi-guarani com o xamanismo chiriguano, Combès (2014: 24), faz a seguinte observação:
Pelo tom místico de seus discursos, os tumpas chiriguanos podem ser vistos, por um lado, como os herdeiros dos profetas e xamãs tupi-guaranis do Paraguai e do Brasil. Mas existem também, por outro lado, certas diferenças notáveis... [Entre as últimas se incluíam] peregrinações religiosas em busca de uma terra melhor, ou da morada de um herói civilizador... motivos geralmente confundidos sob a etiqueta de “busca da terra sem males”. Pelo contrário, os tumpas chiriguanos sempre aparecem, ao longo dos séculos, como os principais agentes de uma sublevação anticolonial.
O filme Yvy Maraëi, 2013
No dia 16 de outubro de 2013 estreou em La Paz este quarto filme de Juan Carlos Valdivia, que é um grande elogio à nada fácil interculturalidade entre duas pessoas de culturas e histórias diferentes, cada uma com sua própria busca do bem viver descobrindo de passagem o outro: Andrés, que é o próprio Valdivia, e Yari, que é o guarani Elio Ortiz.
Este último, menos conhecido, é um dos dois únicos sobreviventes de oito irmãos de uma família da comunidade Tamachindi no Isoso (Charagua). Fez o ensino médio na cidade de Charagua, graduou-se e foi comunicador no Teko Guarani e nessa época estava concluindo Antropologia. Já publicou vários livros sobre a língua e cultura guarani, alguns junto com Elías Caurey. Em 2008, conheceu Juan Carlos Valdivia, que, em sua busca, já ficou fascinado por essa corajosa Nação Guarani que, já em plena república e quatro séculos depois do “descobrimento” deste continente, continuava meio livre (iyambae, ‘sem dono’) até 1892. O projeto inicial de Valdivia era a batalha de Kuruyuki desse ano. Ao olhar o rosto enxuto e o olhar profundo de Elio, me parece adivinhar nele o pôster mais difundido de Apiaguaiqui. Aquele projeto não pôde ser concluído, mas desde então ambos foram estreitando uma amizade dialética da qual no longo prazo saiu este outro filme, mais denso e profundo, com um roteiro concebido e vivido de forma conjunta, inclusive com referências ao projeto inicial. Fundamental para ambos – Juan Carlos e Elio – é que não “agem” interpretando outros personagens, mas se expressam a si mesmos: é uma “performance”. Inicialmente, não foi projetado para ser assim, mas, por sorte, esse é o resultado, sobretudo em Elio. Já nem um nem outro pode realizar-se completamente sem referência ao outro diferente: Eu sem ti; nós sem vocês somos ninguém e vice-versa, como em um ubuntu de Mandela, na África do Sul...
O fio condutor de todo o filme é um longo caminho que começa nas estradas de La Paz rumo ao sudeste e pouco a pouco se transforma em caminhos tortuosos e empoeirados, e depois cheios de ervas daninhas nos bosques secos do Chaco até Tentayapi (‘o último rancho’); e depois disso já ficam sem caminho pelo pantanoso Isoso (‘água que se perde’). Vão se misturando luzes e sombras, sonhos e realidades, o castelhano e o guarani, temperado com abundante material mítico e simbólico... A chave central para entender o filme, em meio a uma trama deliberadamente fictícia e não tão fácil, são as múltiplas dimensões da relação intercultural entre o povo guarani e os karai no contexto atual; o confronto e ao mesmo tempo a mútua necessidade entre o karai e o guarani, em meio a uma grande variedade humana, social, cultural... São também atores simbólicos os cães e os morcegos “que veem com seus ouvidos...”, á água em que nos submergimos para nos reencontrar, e a emaranhada montanha chaquenha com a qual ao final se confundem os novelos de recortes de textos escritos do cineasta... Compara o poder cultural dos símbolos e a palavra oral para comunicar-se também com o coração e com a festa, diante da fria letra escrita e das múltiplas mediações fílmicas...
Descobrimos no filme todo um Elio Ortiz, como neo-ator sólido, firme e atraente, de apenas 40 anos; e, apenas alguns meses depois, ficamos sobressaltados com a inesperada notícia da sua morte após curtíssima enfermidade, em virtude de um vírus desconhecido que complicou uma pleuresia. Assim se realizou já em sua história pessoal o Kandire, a definitiva Terra Sem Males. No filme, já aparecia muito a complementaridade entre a vida e a morte, como os dois lados da mesma realidade, assim como o dia e a noite, a luz e a sombra, a permanente alteração entre ambos (como o pacha kuti andino): “A morte não é ruim... Morremos para viver, para brilhar, para voar, para despertar no sonho do outro”... canta o ipaye (sacerdote curandeiro) para curar o enfermo Andrés (Juan Carlos), e depois o repete o próprio Yari (Elio).
O “bem viver” guarani hoje
Esboçarei sucintamente duas situações extremas em dois povos guarani atuais. O primeiro é bastante positivo: provém do avanço crescente da Nação Guarani-Chiriguano para sua autogestão, expressada recentemente em seu Estatuto, já aprovado, para sua Autonomia Guarani no município de Charagua, na Bolívia. O segundo, ao contrário, é a situação desesperadora em que vivem os Kaiowá no Mato Grosso do Sul, no Brasil.
Empoderamento Guarani-Chiriguano até o Estatuto Autonômico de Charagua [3]
Charagua é o maior município em extensão da Bolívia, com 74.000 km2, mas com apenas 24.000 habitantes (0,3 habitante por km2), porque grande parte do território pertence às planícies chaquenhas sem água. 67,5% são Guarani-Chiriguano, em seus dois ramos: Ava no pé da montanha e Isoseño na planície chaquenha, ao longo do rio Parapetí na planície chaquenha. Em termos absolutos, é o município com mais Guarani de toda a Bolívia.
Os 32,5% restantes ou são karai orientais e valegrandenses ou imigrantes collas; e, desde 1986, também os menonitas [4], que 15 anos depois já eram 4.600 (20%), assentados, sobretudo, no começo da planície chaquenha. Estes últimos mantêm sua própria língua (alemão antigo), sua religião (anabatistas do século XV) que organiza toda a sua vida cotidiana no político e educativo, e sua cultura agrícola orientava a sua própria subsistência e o mercado. Agora já aceitam máquinas modernas (de segunda mão). Não aceitam veículos motorizados para seu próprio uso, salvo suas carretas e cavalos, nem a eletricidade. Mantêm sua própria indumentária e chegaram ao Chaco em sua própria busca de seu “bem viver”, segundo seus próprios princípios. Eles têm sua própria autonomia reconhecida por decretos estatais e no momento não desejam participar da política nacional, contanto que tenham liberdade para praticar sua forma de vida. Sem eles, a porcentagem Guarani no município subiria para 84%. O ponto mais conflitivo com os menonitas é que têm famílias muito numerosas que, por seu estilo de vida, vão necessitando mais e mais terras, que em grande medida já se transformaram em território guarani. Há, além disso, um minúsculo grupo seminômade Ayoreo, que os outros chamam de “bárbaros”.
Esta complexa situação apresenta para os Guarani de Charagua um desafio especial. Por sua grande maioria têm todo o direito de assegurar com certa hegemonia e autonomia seu Teko kavi (modo de vida). Mas devem exercê-la com suficiente abertura para que essas outras importantes minorias também se sintam à vontade dentro dela.
Apesar disso, entre Kuruyuki (1892) e os anos 1970 era a minoria karai que mantinha plena hegemonia, inclusive a propriedade da terra, sem que esta situação mudasse de maneira significativa ao longo de 80 anos, apesar de eventos tão notáveis como a Guerra do Chaco (1932-35), feita em boa parte em ou desde esta região; e a Revolução do MNR a partir de 1952, inclusive sua Reforma Agrária que, no Chaco, foi “ao contrário”: para consolidar mais terras nas mãos dos donos [5]. Persistiu o êxodo temporário ou definitivo de muita população Guarani, primeiro para a Argentina, e, desde a Revolução de 1952, também para novos focos de desenvolvimento em Santa Cruz.
Somente no final dos anos 1960 e durante a década de 1970 chegaram à região novos atores, como outros religiosos e as primeiras organizações não governamentais comprometidas com o empoderamento da população guarani. Dois marcos chave foram: (1) a criação, com o apoio da ONG APCOB, da CIDOB (na época, Coordenação Indígena do Oriente Boliviano), em 1982, a qual com o passar dos anos passou a ser a Confederação de Povos Indígenas [de todo o Oriente] da Bolívia. E (2) a realização de um diagnóstico muito participativo nas 72 comunidades guarani da Província Cordilheira, com o apoio de CIPCA e CORDECRUZ (1986), publicado em 7 volumes. Ao “devolvê-lo” às comunidades, elas decidiram formar, pela primeira vez em sua história, uma organização conjunta, a Assembleia do Povo Guarani (APG), ou Jemboati Guasu, criada em fevereiro de 1987. Com ela, CIPCA, CORDECRUZ e as demais instituições vinculadas aos Guarani elaboraram e publicaram em 1987 o Plano de Desenvolvimento da Província Cordilheira (1987), em 9 volumes. Com esses instrumentos começou um continuado empoderamento do Povo e Nação Guarani na Bolívia.
A Lei de Participação Popular de 1994 foi um novo marco, que uma década depois conduziu o primeiro guarani à prefeitura de Charagua (2005-2009). Outro marco do mesmo ano foi a Lei de Reforma Educativa, com ênfase na Educação Intercultural Bilíngue, inspirada em muitos pontos na experiência prévia realizada pelos Guarani no Teko Guarani (que nasceu do diagnóstico) desde 1989; eles diziam que o Governo copiou a proposta deles.
Outro marco importante desde a Lei INRA de 1996 foi o longo processo de saneamento de seus territórios indígenas. Foi um processo sumamente participativo que, embora não tenha alcançado tudo o que fora sonhado, consolidou e ampliou esses territórios próprios empoderando as populações envolvidas.
Finalmente, com a nova CPE de 2009, o Estado se abriu às autonomias indígenas, entre outras, e este mesmo município inscreveu-se em seguida para essa oportunidade, dentro de um sonho muito mais amplo do conjunto da APG (Assembleia do Povo Guarani) para reconstruir sua região guarani no Chaco. É um processo lento e cheio de tropeços, porque esses territórios seguem sendo em muitos casos como ilhas de um arquipélago em meio a um mar de fazendas e propriedades de terceiros; e, uma vez bem instalado no poder, também não é tão clara a atual vontade política do MAS para estimular esses processos. Mas a APG mantém sua decisão.
O caso mais avançado e significativo segue sendo o desse imenso município de Charagua. Já concluiu, após um longo e muito participativo processo com “constituintes” nomeados pelas quatro zonas ou capitanias guarani [6], a redação do seu Estatuto Autonômico Guarani Indígena Iyambae. Sem poder entrar aqui muito em detalhes, esse Estatuto já foi apresentado ao Tribunal Constitucional Plurinacional e, após uma série de mudanças menores (nenhum muito de fundo), sua “constitucionalidade” já foi certificada. A única coisa que agora falta é passar por um segundo referendo interno de todo o município para que seja colocado em prática.
A análise desse Estatuto daria assunto para outro seminário. Ressaltarei apenas os seguintes pontos: toda a contextualização e terminologia guarani (embora o estatuto esteja escrito, até agora, apenas em castelhano); as margens de autonomia interna que mantêm, dentro da autonomia geral, as quatro zonas ou capitanias; o regime especial de governo interno que se reconhece às duas zonas urbanas mais pluriétnicas e karai; o caráter rotativo das seis zonas (inclusive as karai) para aceder ao cargo principal, dentro de um esquema bastante coletivo dos representantes das seis zonas. Embora, por decisão deles, os menonitas não participaram do processo, mesmo assim foram consultados e levados em conta, dentro do critério geral do respeito e diálogo intercultural com todos os que habitam esse território (art. 91).
Outros dois municípios guarani menores estão no aguardo: Guacaya, que iniciou seu processo também junto com Charagua e onde se situa parte dos principais poços de petróleo em produção; e Gutiérrez, que tem a maior porcentagem de Guarani (80%), onde se preparam para o referendo que iniciará o processo; Machareti, que, apesar de uma porcentagem menor de guarani, o atual governo municipal também é controlado pelos Guarani; e vários TIOC (Territórios Indígenas Originários Camponeses), dentro de outros municípios maiores.
Os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul
O contraponto, no extremo contrário, são os Guarani do Brasil, particularmente entre os 28.000 Guarani Kaiowá (parentes dos Paí Taverá, do Paraguai) do Mato Grosso do Sul, que vivem algumas das situações mais desesperadoras em todo o continente. Reproduzo do relatório de março de 2010 do Survival International para as Nações Unidas:
A situação é particularmente grave entre os Guarani, os quais, após décadas vendo suas terras ancestrais perdidas para o cultivo da cana-de-açúcar, da soja e do chá, para a criação de gado e programas de assentamento do governo, encontram-se em uma das piores condições vividas pelos povos indígenas no Brasil, se não nas Américas. O professor James Anaya, relator especial da ONU para os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, visitou o Brasil em 2008. No que concerne ao assentamento de não-indígenas em terras indígenas, ele destaca as condições estarrecedoras no Mato Grosso do Sul, afirmando, no parágrafo 73 de seu relatório sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, que:
‘Tensões entre povos indígenas e colonos não-indígenas têm sido particularmente frequentes no Mato Grosso do Sul, onde os povos indígenas sofrem pela falta de acesso às suas terras tradicionais, pela extrema pobreza e pelos problemas sociais daí decorrentes; a situação deflagrou uma série de atos violentos, marcados por grande número de assassinatos de índios, bem como acusações criminais por atos de protestos por parte dos índios.’
Após visitar o Mato Grosso do Sul em outubro de 2009 como parte da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, a ex-ministra do Meio Ambiente, Senadora Marina Silva [mais adiante candidata presidencial derrotada] declarou que os problemas enfrentados pela população indígena ‘são de natureza muito grave’ e que os 45 mil índios do Mato Grosso do Sul enfrentam um verdadeiro ‘apartheid social’, devido à falta de garantias para que possam exercer seus direitos.
O problema de fundo é que, ao serem essas terras muito boas para o plantio de soja, milho ou cana-de-açúcar para a produção de biocombustível, as grandes empresas nacionais e internacionais simplesmente arrebataram-nas sem nenhum processo de consulta prévia, como os requeridos por acordos internacionais assinados pelo Brasil, nem outros instrumentos jurídicos mais locais. O próprio governador do Estado, André Pucinelli, anunciou, em agosto de 2008, que dentro de sete anos, isto é, neste ano de 2015, o Mato Grosso do Sul seria o maior produtor de etanol do mundo. (Survival)
As empresas e proprietários locais têm, com frequência, seus próprios seguranças e pistoleiros que impedem inclusive a presença dos membros da FUNAI, e os proprietários recorrem à Justiça, mais para atrasar ou bloquear processo já em andamento do que para cotejar os direitos de uns e outros. As casas e os utensílios dos desalojados são queimados e ficam reduzidos à roupa que levam no corpo. Além disso, em muitos casos são jogados à beira de alguma rodovia, onde esperam durante anos para que a FUNAI ou outra instância lhes destine algum outro lugar. As demarcações de territórios programadas até 2010 seguem sem serem cumpridas.
Há também numerosos assassinatos, sobretudo de líderes indígenas. Em 2007, houve no Mato Grosso do Sul 44 assassinatos (21,4% a mais que no ano anterior); e em 2008, do total de 60 indígenas assassinados em todo o país, 48 ocorreram no MS (Survival).
Em 2005, a proporção da taxa de suicídio entre os Guarani foi de 86.3 por 100.000 habitantes. A taxa de suicídio total no Mato Grosso do Sul foi de 8.6 para cada 100.000 habitantes, e a taxa nacional foi de 4.5 em 2004. A taxa de suicídio entre os Guarani em 2005 foi, assim, aproximadamente dez vezes mais alta que a taxa de suicídio no Mato Grosso do Sul e dezenove vezes mais alta que a taxa nacional em 2004.
[No mesmo ano], a taxa de suicídio entre os Guarani na faixa etária entre 20 e 29 anos foi de 159.9 por 100.000 habitantes, enquanto que a taxa nacional para a mesma faixa etária em 2004 foi de 6.1 para cada 100,000 habitantes. A mais jovem Guarani a cometer suicídio, Luciane Ortiz, tinha apenas nove anos. (Survival)
A razão principal para a alta taxa de suicídio reside na falta de acesso à terra, conforme Rosalino Ortiz, da etnia Guarani Ñandeva, explica: ‘Os Guarani estão se suicidando por falta da terra. Porque não tem mais espaço. Principalmente a gente antigamente tinha a liberdade, hoje em dia nós não temos mais liberdade. Então, por isso, o nosso jovem vive pensando o que ele já viu que ele não tem mais condições, como ele pode viver então? Senta e pensa muito, esqueça, se perde e se suicida’.
De fato, o município com o mais alto índice de suicídio é Dourados, onde o problema de acesso à terra é mais grave e índios Guarani de diferentes tekohá vivem juntos em reservas superpopulosas. (Survival)
A Unicef/IWGIA (2012: 112-161) realizou um estudo sobre os suicídios de jovens guarani com ênfase especial no que aconteceu na Reserva Francisca Horta – mais conhecida como Dourados, Mato Grosso do Sul – com 3.539 hectares, dos quais 1,2 mil são cultiváveis. Divide-se em duas aldeias: Jaquapiru, com índios Terena e Guarani Ñandeva, que estão em uma situação um pouco melhor, e Bororo, a mais pobre, com os Guarani Kaiowá. É considerada a de maior população do país, com 0,235 hectare por habitante e uma das mais violentas. Por estar situada a apenas 100 quilômetros da fronteira com o Paraguai está também imersa em processos de tráfico de drogas e armas.
O CIMI também destaca que os altos índices de suicídio ocorrem em comunidades onde as pessoas se encontram encurraladas no centro dos territórios invadidos pelos fazendeiros, como é o caso de Porto Lindo ou de assentamentos como Panambizinho.
Outros motivos para o suicídio são a pobreza, fome e moradia precária, assim como a falta de oportunidades de trabalho assalariado nas comunidades, após a perda de terras, o impacto desestabilizador do intenso trabalho manual nos canaviais e o preconceito advindo dos não índios.
Conforme um índio Guarani contou a Survival: ‘Em Dourados, onde tem havido mais suicídios, um jovem me disse que não queria mais viver porque não havia motivo para continuar vivendo – não há caça, pesca, e a água está poluída.’
Estatística do CIMI para o Survival:
Outros dados da UNICEF – IWGIA (2012), na Reserva Dourados:
Mais do dobro são homens (e em vários anos, mais do triplo). A grande maioria dos suicídios acontece por asfixia e enforcamento, poucos por envenenamento.
Fatores internos (segundo a Unicef 2012: 150-154), sobretudo na Reserva Dourados e nas rodas de tererê, por exemplo, do programa AJI (Ação de Jovens Indígenas).
Tristeza – isolamento, deixa de falar
Associada à bruxaria; agressividade, piadas e mal entendidos; espectro da morte.
Contraposta à ética guarani de tekoporä (bonito), katu (livre), marangatu (sagrado).
Contextualização:
São os Kaiowá (que mais conservam suas tradições e menos terra têm) os que têm a taxa mais alta de suicídios.
Sem terra
Como confinados
Ninguém os aceita. Estar “entre”, nas margens sem ser acolhido por ninguém:
Gerações anteriores: não modelos, mas antimodelos do que não queremos ser.
A maioria dos pais são alcoólicos... Não aceitam os seus filhos como são.
“Provocam-nos por tudo o que falamos e fazemos... Dizem que não ajudamos, que só servimos para fazer maldades... Quando escuto todas essas provocações tenho vontade de morrer”.
“Como ter futuro nesta reserva ou em qualquer lugar se somos índios.”
Embora haja diversos programas e bolsas de assistência, que no melhor dos casos cobrem as necessidades imediatas por até meio mês, mesmo se conseguissem atender às necessidades materiais, por serem puramente assistenciais, fortalecem em seus beneficiários a impressão de serem inúteis, a anos luz do que era o yvymarâe, a “terra sem males”:
“Nós éramos um povo livre que vivia com fartura. Hoje vivemos dependendo de assistencialismo do governo. Sentimos que esta política paternalista não nos dá condições de voltar a produzir nosso próprio alimento’. (Survival)
Uma escapatória temporária é proporcionada pelas drogas, sobre as quais esses jovens comentam de maneira unívoca:
“Quando bebo e fumo, sei que posso. Você não sabe o quanto é bom. Por mim, estaria assim todo o tempo.”
“Quando fumo me sinto com muita coragem. Até fico lindo. Eu não tenho medo e isso é bom.”
“Quando bebo não sinto mais dor... Não fico triste e há um monte de pessoas ao meu redor. Gosto disso.”
“... Me esqueço de tudo, da fome e da falta de dinheiro... Não somos nada. Mas quando fumo ou bebo, sou tudo e as pessoas têm medo de mim.” (pp. 153-4).
Também é frequente a referência à bruxaria, o que revela algo muito comum na cosmovisão guarani: mbaekuaa, bruxo; o mal posto pelos outros. (p. 155-6)
“É certo que ela me embruxou. Tentei matar-me várias vezes. Estava muito mal, não via nada e de repente, quando vi, estava na forca. Se fosse pela minha mãe. Ela queria o meu noivo e sei que ela ficou com ele.” (Uma jovem Kaiowá, agosto de 2010)
“Pensei em me matar várias vezes. Ninguém me ama, não tenho amigos nem família. Estou sozinha e tenho certeza de que ninguém vai sentir a minha falta. Não gosto de ninguém e creio que me embruxaram.” (Uma jovem Kaiowá, outubro de 2010)
“As pessoas daqui têm muita inveja. Quando alguém anda com roupa boa já começam a dizer que a pessoa não serve para nada. Falam de tudo e fazem bruxaria. Começamos a nos sentir tristes e, às vezes, nem sei por que, de repente... pensamos na forca.” (Um jovem Kaiowá, novembro de 2010)
“Aqui é muito difícil viver. Gostaria de ir embora, mas, para onde? Não tenho parentes em nenhum lado. Aqui não nos salvamos da bruxaria. Fazem-na por qualquer coisa e eu não tenho dinheiro para pagar. Agora mesmo estou muito triste e só penso nisso... [na bruxaria].” (Um jovem Ñandeva, dezembro de 2010)
“Algumas famílias dizem que é bruxaria. Dizem que outras pessoas lhe fazem mal. Alguns dançam e rezam para que isto não aconteça novamente.” (Um professor indígena, agosto de 2010)
Em geral, sente-se falta da presença de um pajé "[ipaye, xamã] verdadeiro” e de um bom capitão com “autoridade e respeito”.
“Os pajés de antes não existem mais e hoje não fazem nada... Faz apenas o levantamento dos corpos com a polícia.”
“Os jovens de hoje não confiam no pajé e menos ainda no capitão. Até o filho do pajé precisa de psicóloga.”
Em meio a tudo isso, há um raio de luz e de esperança. O ex-presidente da APG, Celso Padilla Mercado é, há algum tempo, presidente do Conselho Continental da Nação Guarani, criado um bom tempo por iniciativa do CIMI. Quando ainda era presidente da APG participou da VIII Marcha do TIPNIS em Moxos, sofreu com eles a brutal repressão de Chaparina, motivo pelo qual ele mesmo andou um tempo em cadeira de rodas, e daí conseguiu depois o papel de coordenador da grande Nação Guarani em nível continental. Com esse papel, participou muito ativamente da organização de ao menos dois seminários internacionais sobre a Língua e a Cultura Guarani. Esta ampliação da perspectiva em níveis mais amplos pode, sem dúvida, trazer mais esperança a esses grupos que localmente se encontram mais desesperados.
Antes de ser assassinado por pistoleiros, o Guarani Marçal Tupa-Y disse: ‘Algumas noites eu não durmo, pensando em nossos problemas. Estamos cansados de esperar. Todos aqui tiveram a mesma experiência. Nossas reservas são desmatadas, sem madeira. Quem tomou? Eram os índios, para fazer suas casas? Não, era o homem branco. Já não podemos manter os nossos braços cruzados. Talvez esta seja a última vez que seremos capazes de se levantar como uma tribo, para levantar a voz de nossa tribo... Não devemos ter medo. Porque nós estamos em nosso país. Estamos na nossa terra. Nossos pais nasceram aqui, vivem aqui. Não podemos sequer pensar no tempo, porque é muito longo, a história do nosso povo. Assim, temos que gritar’. (Survival)
* Fotos e tabelas cedidas pelo autor.
Notas:
[1] Os jesuítas tinham sido expulsos e inclusive supressos no final da Colônia e, já restaurados, ainda não tinham retornado ao Chaco.
[2] Refiro-me aos relatos de Combès e Pifarré, agora comparados na nova edição deste último (2015, cap. 24), para um acompanhamento detalhado dia a dia e interpretação do que então aconteceu.
[3] Toda essa temática é desenvolvida detalhadamente em Albó (2012), El Chaco guaraní, camino a la autonomia originaria: Charagua, Gutiérrez y proyección regional.
[4] Chamam-se assim por seu fundador, o padre holandês Menón. Por seus ideais religiosos foram expulsos de sua terra e desde então andam peregrinando por diferentes países onde os Estados permitem sua forma de vida e são ratificados por convênios, algo mais fácil em áreas de fronteira agrícola. Assim chegaram também ao Paraguai e depois à Bolívia, na época do conflito do Chaco, e assinaram convênios com ambos beligerantes.
[5] Remeto, para maiores detalhes, a Albó (2012: capítulo 2).
[6] Outras duas zonas urbanas minoritárias, com maior presença karai e de imigrantes “collas” seguem resistindo apesar de reiterados convites e de propostas específicas para levá-las em conta com seu particular modo de vida. Com toda a certeza, apostam no peso que seguem tendo no atual governo municipal, que acabará em abril de 2015 e no referendo final pendente que deveria ser realizado antes dessas eleições.
BIBLIOGRAFIA
ALBÓ, Xavier (2012). El Chaco guaraní camino a la autonomía originaria. Charagua, Gutiérrez y proyección regional. La Paz: Ministerio de Autonomías e CIPCA.
Atlas sociolingüístico de pueblos indígenas en América Latina. Cochabamba: FUNPROEIB, UNICEF y AEICID, coordenado por Inga Sichra, Luis Enrique López, Tulio Rojas e Ernesto Díaz. 2 vols. (Sobre Guarani: vol. I: 143-228 y 268-280; e as fichas dos diversos povos no CD adjunto).
CLASTRES, Pierre (2013). A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify.
MELIÀ, Bartomeu (1988). Ñandereko. Nuestro modo de ser y Bibliografía general comentada. Vol. I da série Los Guaraní-Chiriguano. La Paz: CIPCA.
PIFARRÉ, Francisco (2015). Historia de un Pueblo. Los Guaraní-Chiriguano (2ª ed. notavelmente ampliada). La Paz: Fundación Xavier Albó e CIPCA. (1ª ed., 1989: 2º vol. da série de 3: Los Guaraní-Chiriguano).
http://assets.survivalinternational.org/documents/208/Survival_Guarani_Report_Portuguese-2.pdf
UNICEF, AECI e IWGIA (2012). Suicidio adolescente en pueblos indígenas. Tres estudios de caso. (O segundo, pp. 112-161, é sobre os Kaiowá do Brasil, e foi realizado por Indianara Ramirez Machado, Maria de Lourdes Beldi de Alcantara e Zelik Trajber).
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Os Guarani e seu “Bem Viver” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU