Por: André | 16 Julho 2015
No dia 10 de julho, o Papa Francisco chegou ao Paraguai. O tempo estava feio e instável. Os primeiros atos protocolares, que incluíam cantos e encenações – nada folclóricos, certamente, ao distanciar-se tanto do realmente popular –, transcorreram sob uma fina e persistente chuva.
A reportagem é do padre jesuíta Bartolomeu Melià e publicada por Religión Digital, 13-07-2015. A tradução é de André Langer.
A vontade do povo paraguaio, neste caso quase exclusivamente de Assunção, mostrou sua proverbial paciência. Vinha o pai e irmão e era preciso vê-lo o quanto antes, mesmo que fosse com chuva.
Mas notava-se em pequenos detalhes, subrepticiamente aflorados aqui e ali, que duas vontades caminharam paralelamente em sua preparação: um programa protocolar – certamente necessário – e a esperada visita espontânea e confiante, como se fosse a chegada de um ente querido na própria casa, no bairro ou na capela. E de fato, já na rua, lugar sem paredes que cortam o intercâmbio; onde se ouve e se vê a alegria de todos os gritos das crianças, os suspiros das pessoas maiores, as palavras a meia voz, tornam-se mais fortes que o próprio grito. Uma recepção carinhosa e entranhável, como parece que não teve igual em outros lugares visitados.
Desde três dias antes havia suspeitas de que o diálogo sincero e aberto seria difícil de acontecer. Os organizadores, com várias desculpas, não deram ouvidos a vários pedidos de indígenas e camponeses. Houve uma limpeza superficial das ruas por onde o Pontífice passaria, que apareceriam sujas e com buracos no dia seguinte.
Houve a conhecida troca de presentes no Palacio de los López e depois os discursos de rigor debaixo de uma elegante tenda montada no jardim. O pano de fundo assemelhava-se a uma densa floresta, com plantas e flores. É o Paraguai que ainda se vende para o exterior, quando na realidade o Paraguai está hoje desmatado e calvo, coberto apenas por imensos latifúndios de plantações de soja.
No sábado, a primeira visita foi a um hospital psiquiátrico, onde estão crianças com algum tipo de câncer, alguns pacientes neurológicos e de outras doenças de difícil cura e os familiares que os acompanhavam em um caminho humanamente sem saída. A emoção e a devoção tomaram conta dos doentes, seus familiares, médicos e enfermeiras e criou um sentir comum de dor e esperança que o Papa assimilou inteiramente como próprio.
A visita ao Santuário de Nossa Senhora de Caacupé, no contexto de Maria como modelo de aceitação do plano de Deus e o acompanhamento da fé que crê e espera contra toda esperança, seria a ocasião para insistir em um lugar comum do Papa Francisco, que o faz repetir e reivindicar que a mulher paraguaia é a mais gloriosa da América por ter que suportar as guerras iníquas e terríveis, mais faltas de sentido comum por serem fratricidas e pelas consequências de desamparo e fome com que teve que lutar essa mulher para que a pátria não sucumbisse.
Após descer do morro de Caacupé, o encontro com a sociedade civil foi um dos momentos altos da visita. Era a vez da população mais independente e livre. O Papa antes de falar ouviu. Ele ouviu representantes da sociedade civil escolhidos por suas próprias bases, não indicadas por outra instância, que embora tivessem entregue um texto ao Santo Padre, era a expressão livre da situação e dos problemas de cada um desses setores: um jovem, dois indígenas, uma camponesa e uma empresária. Depois de ouvir, falou, improvisando a maior parte da sua fala. Isto permitiu sair da rigidez do programa, embora tivessem ficado silêncios sobre temas sobre os quais não foi informado, pelo que parece, e que, no entanto, estão pesando gravemente na recente história do Paraguai, sobretudo desde 2012.
O primeiro: o que aconteceu em Curuguaty? Um massacre de 11 camponeses e seis policiais, em junho de 2012, que desde o início se viu obstaculizado por graves deficiências da Promotoria Pública, e que ainda não foram julgados, depois de três anos, embora alguns imputados continuem na prisão... Foi pretexto e causa do golpe de Estado, disfarçado de Juízo Político, que depôs em 24 horas o presidente democrático Fernando Lugo. Seguiram-se governos de fato, em que o roubo das arcas do Estado e a corrupção aumentaram desavergonhadamente. Enquanto este capítulo não for fechado, a história do Paraguai ficará em estado de injustiça.
Clamou-se pela solução de um sequestro que já dura mais de um ano e que por providencial desinformação – ou informação certeira – é atribuído ao Exército Nacional. Há justiça no Paraguai? Perguntou, e a resposta foi um estrondoso “não”. Do público.
A corrupção e o narcotráfico são os grandes problemas do momento, pelo que representam de traça e gangrena do Estado e da sociedade que se vê exposta a esta pestilência por ameaçante contágio que pode invadir todos os ambientes. Foi uma das frases que tardará a morrer, e oxalá seja assim, porque a corrupção é a traça e a gangrena dos povos.
Em uma grande lição de pedagogia, que fala depois de ouvir, com humildade e com clareza também, sem dar lições, e menos ainda atiçando preconceitos do tipo “disse isso por ti”, e nada por mim; um diálogo que respeita as condições de sincera neutralidade, que não quer dizer relatividade, mas que não tem juízos prévios partidários, que aceita jogar limpo e por algo que valha a pena, sem “jovens aposentados” antes de terem começado a trabalhar, que não se detém nas ideologias sem levá-las ao campo duro e real do concreto. As referências ao Paraguai não foram diretas, mas cada um as assumia como certeiras e a multidão as referendava com repetidos aplausos. Nessa sessão houve uma extraordinária sintonia e conivência com as palavras do Papa.
Ninguém diz abertamente, porque é doloroso, mas o Paraguai está passando por uma grave crise de identidade devido a um rumo de desenvolvimento econômico que sacrifica tudo, corpos e almas, a um suposto progresso baseado na rentabilidade imediata. O desmatamento deste país de florestas se faz com uma rapidez e uma amplitude que já colocou em perigo a salubridade do solo, da água e do ar. Este desmatamento e degradação do ambiente correm paralelos com o vazio de uma produção agrícola familiar, que em termos gerais ainda é o mais sustentável a longo prazo.
O mais inadmissível é que este progresso monetário traduz-se em deslocamento das populações rurais para as periferias das cidades, onde a cultura, a convivência pacífica e inclusive o uso da língua guarani como sinal de identidade estão se fraturando, e mesmo assim com mostras de forte solidariedade entre os pobres, de quem no final das contas depende o futuro.
Uma das expressões que chegou ao coração de todos os que amam o Paraguai foi que a corrupção é a traça e gangrena dos povos. No grau de agora, o Paraguai nunca passou por esta situação.
A visita a um setor dos Bañados – a capela de São João –, que se estende pela costa inundável do Rio Paraguai e onde foi se concentrando a maior pobreza e miséria de quem aqui veio porque já não encontrava outro lugar, aconteceu no sábado. O povo, com verdade e humildade, expôs a situação de abandono em que o Estado os deixa, sem meios de transporte, com postos de saúde precários e, sobretudo, na situação de ter um lugarzinho que mal dá para construir uma casinha.
A segunda e última missa no Paraguai foi celebrada em uma grande esplanada, cujas partes mais baixas eram um lodaçal destinado para aqueles que não tinham credenciais de postos fixos. O retábulo do altar onde foi celebrada a missa foi inspirado na arte das Reduções dos Guarani, feito com espigas amarelas de milho, colunas com abóboras e fundo de verdes cocos sobre fundo azul. Na quase totalidade dos cocos uma assinatura de adesão de quem de antemão já quis estar presente nesta celebração. As figuras de IHS, São Francisco e Santo Inácio, pintadas realisticamente, em forma de mosaico, com sementes de diversas espécies vegetais. Esta missa retomou explicitamente o sentido de que, conforme o Evangelho do dia, se tratava de uma visita de fé.
A população viu o Papa passando pelas avenidas e ruas. A maioria, no entanto, ouviu suas palavras graças a diversos meios de comunicação. Na despedida, uma comunidade de indígenas guarani disse-lhe adeus com um ritual guarani. Talvez a saudade pelas raízes, de uma nação que fala guarani majoritariamente, mas que não é guarani, nem quer sê-lo, e que, no entanto, poderia aprender tanto de seus saberes muito vivos, mas também tão ameaçados.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa no Paraguai. O diálogo, suas regras e a verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU