06 Julho 2015
"Os princípios fundamentais da tradição judaico-cristã, tais como a queda de Adão, a semelhança divina e progresso histórico (ressurreição e pleroma), contribuíram para o surgimento da ciência moderna e, consequentemente, da cultura moderna. Esses princípios também estão profundamente enraizados na vida de oração da Igreja, nas doutrinas teológicas fundamentais e nos rituais religiosos", escreve Ilia Delio, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 30-06-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ela "porque a lei da fé (lex credendi) é a lei da vida (lex vivendi), há uma ligação profunda entre as orações, as crenças e os rituais religiosos antigos no cerne da nossa desconexão ecológica. O que professamos na fé, a linguagem empregada para expressar essas crenças e a estrutura de adoração que ritualiza tais crenças estão todos ligados em nosso DNA religioso. Estamos programados para um céu acima, e não para uma terra em evolução; esperamos por um Deus lá em cima, não um Deus à nossa frente".
Ilia Delio, membro das Irmãs Franciscanas, assumirá a cátedra Josephine C. Connelly de Teologia na Villanova University (Pensilvânia) a partir de agosto de 2015. É a autora de 16 livros e editora geral da série “Catholicity in an Evolving Universe”. O seu novo livro “Making All Things New: Catholicity, Cosmology and Consciousness” será publicado pela Orbis Books no segundo semestre de 2015.
Eis o artigo.
Em 1967, o historiador Lynn White Jr. escreveu um importante ensaio intitulado “As origens históricas de nossa crise ecológica” [“The Historical Roots of Our Ecologic Crisis”, no original em inglês], no qual culpou o cristianismo pela crise ambiental. O cristianismo, diz ele, com sua ênfase na salvação humana e no domínio sobre a natureza “tornou possível explorar a natureza em um clima de indiferença para com os sentimentos dos objetos naturais”. Porque as “origens dos nossos problemas são, em grande parte, religiosas”, afirmou, “a cura também deve ser essencialmente religiosa. Temos de repensar e sentir de novo a nossa natureza e o nosso destino”.
Agora, quase 50 anos depois, o Papa Francisco publica uma encíclica que parte de onde White parou. A sua obra magna “Laudato Si’ – Sobre o Cuidado da Casa Comum” é de grande amplitude e profundidade. Nela, Francisco prestou bastante atenção nos dados científicos que indicam que a Terra está em crise: o aquecimento global, a escassez de água, a perda de biodiversidade e outros fatores em declínio mostram que não podemos manter um estilo de vida de primeiro mundo indefinidamente no futuro.
Embora já faça algumas décadas que temos conhecimento a respeito de uma crise ecológica iminente, pouco temos feito para mudar o curso da atual situação. Em 1990, um grupo de cientistas de renome, incluindo o falecido Carl Sagan e o físico Freeman Dyson, escreveu uma carta apelando aos líderes espirituais do mundo a se juntarem à comunidade científica na proteção e conservação de um ecossistema global ameaçado. Eles escreveram: “Estamos perto de cometer o que, em linguagem religiosa, às vezes é chamado de ‘crimes contra a criação’”.
Um mundo em crise
Uma crise se define como uma situação rapidamente deteriorante que, se não for atendida, conduzirá a um desastre no futuro próximo. O Papa Francisco elevou a saúde do planeta a um nível de crise. Como planeta, estamos em perigo porque os sistemas da Terra estão falhando. Muitos cientistas concordam que o aquecimento global é real, que já está acontecendo e que resulta das nossas atividades – não sendo uma decorrência natural.
Já estamos vendo mudanças, tais como o derretimento das geleiras, vegetais e animais sendo forçados a deixarem o seu habitat, tempestades severas e secas cada vez maiores. Cientistas preveem que as mortes advindas do aquecimento global irão se duplicar nos próximos 25 anos, ondas globais de calor se tornarão mais intensas e o nível do mar poderá aumentar em mais de 6 metros com o derretimento de plataformas de gelo na Groenlândia e na Antártida, devastando áreas costeiras em todo o mundo. Já estamos experimentando algumas dessas mudanças, e a maior parte da destruição tem afetado principalmente os pobres.
Alicerçados no amor
A encíclica do Papa Francisco se destaca das encíclicas dos pontífices antecessores não só por sua amplitude, mas pelo seu apelo ecumênico e global e seu compromisso com a ciência moderna. Os muitos e excelentes congressos sobre ciência e religião realizados pelo Vaticano claramente influenciaram e informaram o papa, não apenas sobre ecologia como também sobre física quântica, complexidade e evolução. Há sinais destas ciências desde o começo até o fim da encíclica, e a ênfase do papa na interligação indica a necessidade de se ir além do paradigma mecanicista newtoniano.
Ele destaca a relacionalidade como o novo ontos de toda a vida, que o obriga a postular uma nova metafísica da relação alicerçada no amor divino. Para o Papa Francisco, não somos simplesmente seres humanos; somos interseres humanos e partilhamos da inter-relação de toda a vida cósmica. Ele escreve: “Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra” (n. 92).
O espírito franciscano
A teologia franciscana permeia esta encíclica, e o papa coloca o santo padroeiro da ecologia, São Francisco de Assis, num novo patamar. Até mesmo São Boaventura recebe um amplo reconhecimento nesta encíclica com a sua doutrina da criação exemplar, da profunda relação entre a Trindade e a Encarnação e da ressurreição como a transfiguração de toda a vida criada. Fiquei feliz ao ler a descrição da criação ex amore (pelo amor), como escreve o Papa Francisco: “O amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação” (n. 77). Eis é uma mudança para com a teologia clássica, que postula a razão para a criação por liberdade divina (Tomás de Aquino) ou por vontade divina (Boaventura).
Laudato Si’ mostra uma profunda compreensão franciscana da criação fluindo do coração de Deus, na qual toda criatura expressa Deus de alguma forma. O mundo é criado como um meio para a autorrevelação de Deus de forma que, como um espelho ou vestígio, ela possa nos levar a amar e louvar o Criador. O belo Cântico das Criaturas, de Francisco de Assis, reveste esta encíclica com uma paixão pela plenitude e unidade no amor transbordante de Deus. Os franciscanos de todos os lugares devem estar em regozijo, pois que, finalmente, Boaventura e João Duns Escoto estão recebendo o devido reconhecimento.
Um obstáculo inerente
Ao mesmo tempo em que esta encíclica do Papa Francisco tem o meu apoio entusiástico, com sua inteligência, alcance ambicioso e compromisso corajoso com a ciência, ela também carrega uma ironia inerente que repousa sobre a relação entre a cosmologia e a antropologia. Há uma intransigência sutil no texto para mudar a nossa doutrina central da pessoa humana, e, em minha opinião, este obstáculo se antepõe à agenda do papa por uma mudança global de consciência.
Para entender esse dilema é preciso voltar a Francisco de Assis. Laudato Si’ abre com as palavras do Cântico das Criaturas, composto por este santo medieval um ano antes de sua morte. É um hino doxológico em sua estrutura: a glória de Deus que ressoa em todo o universo em – e através do – Cristo ressuscitado, cuja vida flui agora por todo o cosmo através do Espírito vivificante. O misticismo da natureza de Francisco de Assis e a visão teológica que ele inspira devem ser entendidos, no entanto, no âmbito do cosmo medieval: uma estrutura fixa, estável de vida ordenada, com a Terra sendo o centro.
Já que a terra era o centro do cosmo, a pessoa humana era o centro da terra. A pessoa humana, criada à imagem de Deus, era o “centro nobre”, como ensinava Boaventura. O indivíduo medieval tinha uma consciência de pertença a um todo; cosmos e anthropos estavam profundamente entrelaçados. Esse tipo de pensamento levou a uma relação profunda e integral entre a pessoa humana (microcosmo) e o cosmo (macrocosmo). Em outras palavras, o humano tinha um papel na criação: reconciliar a matéria e o espírito em união com Jesus Cristo.
A ascensão da ciência moderna
Esta consciência de pertencer ao cosmo mudou com a descoberta do heliocentrismo e com a ascensão da ciência moderna. Quando Nicolau de Cusa e, mais tarde, Nicolau Copérnico propuseram um universo centrado no Sol (heliocentrismo), a Igreja não estava pronta para a ideia de uma Terra em movimento. Se a Terra se movia em torno do Sol, então a pessoa humana já não era o centro de uma Terra estável, mas simplesmente parte de um planeta giratório. Como esta constatação poderia ser conciliada com o relato do livro de Gênesis, onde a pessoa humana foi criada no sexto dia, após o que Deus descansou? Como o pecado e salvação seriam compreendidos? Da patrística à Idade Média, a teologia e a cosmologia se encontravam unidas. A teologia, bem como a filosofia, não era uma ciência particular; em vez disso, ela se relacionava com o todo. A cosmologia fazia parte da teologia, já que se acreditava que o cosmo era criação de Deus. A ascensão do heliocentrismo mudou a relação Deus/mundo.
A separação entre ciência e religião
As crises que o Papa Francisco destaca em Laudato Si’ não se devem a eventos recentes; pelo contrário, estas crises vêm sendo fabricadas há, pelo menos, 500 anos e são uma consequência de transformações cosmológicas e metafísicas em nossa própria compreensão e na compreensão do universo. Religiosamente, mantivemos uma síntese que é medieval em sua estrutura, enquanto a ciência moderna revelou um mundo de mudanças. Hoje, as orações e os nossos cultos refletem um universo fixo, de três níveis, embora não vivamos em tal universo.
Acabamos nos desligando radicalmente uns dos outros, porque acabamos nos desligando radicalmente do todo, do cosmo. Nancy Ellen Abrams e Joel Primack expuseram a relação entre o cosmos e anthropos no livro intitulado “The New Universe and the Human Future: How a Shared Cosmology Could Transform the World”, indicando que uma cosmologia compartilhada pode ajudar a transformar este nosso mundo fragmentado em uma nova unidade: “Há uma profunda ligação entre a nossa falta de uma cosmologia compartilhada e os nossos crescentes problemas globais. Não fazemos ideia de como nós e nossos irmãos se encaixam no quadro geral. (…) Sem vermos o todo, somos seres muito pequenos”. Da mesma forma, Pierre Teilhard de Chardin notou, em meados do século XX, uma separação entre a pessoa humana e o cosmo, e afirmou: “A separação artificial entre os humanos e o cosmo está na origem da confusão moral contemporânea”.
Esta divisão entre o cosmo (ou universo) e a pessoa humana resultou da separação entre ciência e religião. É essa cisão que o Papa Francisco busca abordar na encíclica porque ele percebe que não podemos seguir em frente, em direção a um futuro sustentável, sem os insights da ciência e da religião. Assim, ele dirige a encíclica a todas as pessoas de boa vontade e afirma, de antemão, que “a ciência e a religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambas” (n. 62). É precisamente a forma como a ciência e a religião se relacionam, no entanto, o que se mostra ambivalente na encíclica.
A antiga e a nova criação
Por um lado, Laudato Si’ apoia evolução sem dizê-lo de forma explícita. Em vez disso, o papa escreve que Deus está “criando um mundo necessitado de desenvolvimento” (n. 80, grifo meu), e o papel de Deus neste processo é o de amor altruísta. Usando a noção cabalista judaica de Zimzum (retirada do Divino), o papa afirma que Deus “de certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo” neste processo de criação, permitindo assim que surjam coisas novas (n. 80). Ele enxerga o amor de Deus como “a razão fundamental de toda a criação” (n. 77) e o poder do amor “presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura”, permitindo que a vida criada se desdobre em liberdade (n. 80).
Consequentemente, o Papa Francisco aponta para uma teologia da evolução nesta encíclica de tal forma que promete uma nova visão para o mundo; no entanto, ele retorna a uma antiga teologia quando afirma: “A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo” (n. 75). Quando se trata da pessoa humana, o paradigma evolutivo é alijado em troca da criação especial e intervenção divina. O papa escreve: “Embora suponha também processos evolutivos, o ser humano implica uma novidade que não se explica cabalmente pela evolução doutros sistemas abertos. (…) A capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade (…) manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico. A novidade qualitativa, implicada no aparecimento dum ser pessoal dentro do universo material, pressupõe uma ação direta de Deus, uma chamada peculiar à vida” (n. 81). Francisco reafirma a posição do Papa Pio XII, que escreveu em Humani Generis que o corpo humano pode vir a existir por meio da evolução, mas que a alma é criada imediatamente por Deus (n. 36). Apesar do fato de que o Papa Francisco se baseie em Teilhard de Chardin, por exemplo, descrevendo a Eucaristia como centro vital do universo, “um ato de amor cósmico”, que se celebra “sobre altar do mundo” (n. 236), ele afirma que “o pensamento cristão reivindica, para o ser humano, um valor peculiar acima das outras criaturas” (n. 119).
O Papa Francisco busca uma humanidade renovada, mas uma nova humanidade não pode se encontrar à parte de uma cosmologia e de uma teologia renovadas, como Raimon Panikkar nos lembrou: o nome “Deus” é uma noção cosmológica, pois não há cosmo sem Deus e nem Deus sem cosmo. Em suma, se a nossa cosmologia mudar, também a nossa teologia e antropologia devem mudar. Essas três realidades – cosmologia, teologia e antropologia – estão tão profundamente interligadas que não se pode extrair seções específicas de nenhuma dessas áreas ou “cortar e colar” e esperar encontrar um significado inteligível. Elas devem ser mantidas juntas, caso se queira compreendê-las.
O significado da grande história
O que eu acho que falta em Laudato Si’ é a história do universo contada como um big bang de 13,800 bilhões de anos – ou aquilo que hoje se chama a “Grande História” [ou Big História], que examina a história desde o Big Bang até o presente através de uma abordagem multidisciplinar. Esta é a história da pessoa humana moderna, que surgiu lentamente ao longo do tempo, através de níveis complexos de evolução biológica. No entanto, se começarmos a contar a história humana como uma das vidas que surgiu dentro da história cósmica, perderemos a nobreza da pessoa humana como “única” ou especial; ou seja, a pessoa humana, criada exclusivamente à imagem de Deus. E aqui começamos a nos apropriar da cristologia, porque a nobreza do ser humano, cuja imagem foi deformada pelo pecado de Adão e Eva, foi restaurada à semelhança divina em Jesus Cristo. Em outras palavras, uma vez que aceitamos a história cósmica (ou a Grande História) como a nossa história, então todo o edifício teológico do Catecismo da Igreja Católica começa a esmorecer. Todos os aspectos da teologia, incluindo o pecado e a salvação, teriam de ser repensados à luz da evolução e à luz de um universo incompleto buscando a sua realização adiante.
A visão de Teilhard de Chardin
Ninguém compreendeu melhor as implicações da evolução para a teologia do que o cientista jesuíta Pierre Teilhard de Chardin. Ele indicou que o diálogo por si só não é suficiente para mover-nos a um novo nível de consciência e a uma nova ação no mundo. O que se precisa, indicou ele, é uma nova síntese que surja das perspectivas da ciência e da religião. Evolução, sustentou, não é nem uma teoria nem um fato em particular, mas uma “dimensão” à qual todos os pensamentos, de qualquer área, devem se conformar. A pessoa humana surge a partir de milhares de milhões de anos de evolução, começando com a cosmogênese e os bilhões de anos que levaram à biogênese. Perceber que os seres humanos fazem parte de um processo maior, que envolve longos períodos de desenvolvimento, traz uma mudança enorme a todo o nosso conhecimento e às nossas crenças.
No passado, o cristianismo foi sobretudo uma religião de ordem. A questão fundamental que os cristãos sempre se perguntaram foi: Qual o significado de Cristo num mundo que foi criado em perfeita ordem, mas que foi desconcertado pelo pecado original? A resposta era inequívoca: Cristo veio para restaurar a ordem destruída pelo pecado e conduzir o mundo de volta à sua perfeição original. Agora, o que devemos perguntar é: Qual o significado de Cristo num mundo em evolução, no coração da humanidade que procura o seu futuro?
Ao abandonar a doutrina do pecado original, Teilhard foi capaz de ver a encarnação de forma mais coerente na sua relação com a criação, de forma que o mistério da criação e do mistério da encarnação formam um único mistério do amor divino. Este mundo não é simplesmente uma pluralidade de coisas não relacionadas, mas uma verdadeira unidade, um cosmos, centrado em Cristo, que é o propósito deste universo e o modelo do que se pretende para ele [o universo], isto é, a união e transformação em Deus.
Teilhard usou o termo “cristogênese” para indicar que a gênese biológica e cosmológica da criação – a cosmogênese – é, do ponto [de vista] da fé, a cristogênese. Todo o cosmo é incarnacional. Cristo está organicamente imerso em toda a criação, no núcleo da matéria, unificando assim o mundo. Teilhard introduziu uma nova compreensão de Cristo como o “Evoluidor”, o poder do amor divino incarnado, que é uno com Cristo Ômega. Postulou uma visão dinâmica de Deus e do mundo em processo de se tornar algo mais do que é, pois o universo fundamenta-se no centro pessoal de Cristo.
Tecnologia e a noosfera
Teilhard estava convencido de que o universo material total está em movimento em direção a uma maior convergência unificada na consciência, um organismo hiperpersonalizado ou “um universo personalizante irreversível”. Jesus Cristo é o centro físico e pessoal de um universo em expansão e o Espírito enviado por Cristo dá continuidade à evolução em – e através de – nós. Ele via unificação do todo na – e através da – pessoa humana, que é a ponta crescente do processo. Ele falou da pessoa humana como um “cocriador” (colaborador). Deus evolve o universo e o traz à sua realização através da pessoa humana. Antes de o ser humano ter surgido, dizia ele, era a seleção natural que definia o rumo da morfogênese; depois dos humanos, é o poder de invenção que começa a agarrar as rédeas evolutivas.
Enquanto Laudato Si’ fala melancolicamente da tecnologia e do poder tecnocrático (nn. 102-114), Teilhard viu o computador inaugurar um novo nível de consciência compartilhada, que chamou a noosfera. Ele insistia que a tecnologia era um novo meio para a convergência (evolutiva); a humanidade não está se dissipando, mas se unificando ao concentrar-se sobre si mesma. Chamamos “consciência global” este novo nível de consciência porque agora temos consciência da vida em todo o globo de uma forma sem precedentes na história humana. Mas Teilhard também via que este novo nível de mentalidade global poderia dar origem a um novo nível de ser compartilhado e de consciência compartilhada, um novo nível de unidade que reflete o surgimento de Cristo. Assim, ele viu que a tecnologia poderia estimular a religião no centro da evolução.
Uma religião da terra
Teilhard percebeu que o cristianismo tradicional ainda vive muito distante do mundo – muito em desacordo com “a corrente religiosa natural” da humanidade contemporânea, um sistema fechado de mesmice rotineira. Ele escreveu: “Já não é simplesmente uma religião do indivíduo e dos céus, mas uma religião da humanidade e da Terra – que é o que estamos procurando neste momento, como o oxigênio sem a qual não podemos respirar”. Teilhard falou de uma nova religião da terra, em vez de uma religião dos céus.
A religião, na visão de Teilhard, está principalmente no nível da consciência humana e da ação humana, e não no nível das instituições ou dos sistemas de crenças, exceto na medida em que estes manifestam e dão direção à primeira. Em seu último ensaio “O Crístico”, ele escreve: “Em um sistema de cosmo-noogênese, o valor comparativo dos credos religiosos pode ser mensurado pelo respectivo poder de ativação evolutiva”.
Teilhard disse que “as crises do nosso tempo estão desafiando as religiões do mundo a lançar uma nova força espiritual que transcende a fronteiras religiosas, culturais e nacionais para uma nova consciência da unicidade da comunidade humana e, assim, pondo em prática uma dinâmica espiritual em direção às soluções do problema mundial (…) Reafirmamos uma nova espiritualidade, despojada de insularidade e dirigida a uma consciência planetária”.
Antigas e novas crenças
Como Teilhard, o Papa Francisco acredita que a consciência humana se encontra no limiar de uma nova era que requer dimensões e valores inteiramente novos. As crenças mais profundas do ser humano devem encontrar novas formas de expressão. Diferentemente de Teilhard, no entanto, o papa não pediu por uma nova consciência e relação dentro da Igreja. Mesmo assim, como afirmou Lynn White Jr.: “uma vez que as origens dos nossos problemas são, em grande parte, religiosas, a cura também deve ser essencialmente religiosa”.
Os princípios fundamentais da tradição judaico-cristã, tais como a queda de Adão, a semelhança divina e progresso histórico (ressurreição e pleroma), contribuíram para o surgimento da ciência moderna e, consequentemente, da cultura moderna. Esses princípios também estão profundamente enraizados na vida de oração da Igreja, nas doutrinas teológicas fundamentais e nos rituais religiosos. Porque a lei da fé (lex credendi) é a lei da vida (lex vivendi), há uma ligação profunda entre as orações, as crenças e os rituais religiosos antigos no cerne da nossa desconexão ecológica. O que professamos na fé, a linguagem empregada para expressar essas crenças e a estrutura de adoração que ritualiza tais crenças estão todos ligados em nosso DNA religioso. Estamos programados para um céu acima, e não para uma terra em evolução; esperamos por um Deus lá em cima, não um Deus à nossa frente.
A Igreja em evolução
Teilhard tinha uma visão da Igreja em evolução. Ele falava da Igreja como um novo sub-reino de “amorização” cristã no universo. Ao falar da Igreja como um filo, um sub-reino, ele imaginou uma nova humanidade cristificada, vinculada pelo amor, que iria amorizar (do termo latino “amor”) o cosmo e acender o amor no cosmo em evolução. Ancorada no Cristo cósmico, a Igreja dá testemunho do Deus vivo como sendo a vida do mundo e, consequentemente, dá testemunho da sua própria vida como Corpo de Cristo em evolução. A missão da Igreja é, pois, o cristificação do universo e a personalização do amor divino no centro da vida cósmica. Em outras palavras, a Igreja não existe para si mesma: ela existe para o mundo. Teilhard disse que uma nova visão do universo convida para uma nova forma de adoração e um novo método de ação.
Conversão e evolução consciente
A encíclica Laudato Si’ convida para uma nova ação, mas esta ação não poderá ser eficaz sem afundar suas raízes em uma nova consciência de Igreja e, consequentemente, de vida cristã em evolução. O Papa Francisco quer que o mundo se transforme, mas não vê que uma transformação (ou mudança) deve ocorrer dentro também. A menos que mudemos a nossa forma de pensar e rezar, não mudaremos a nossa forma de agir. Evolução, afirmava Teilhard, é a elevação da consciência; na medida em que começamos a enxergar a nós próprios, a Deus e o mundo sob novas maneiras, também as nossas ações renovadas começam a acontecer. Somente quando um novo nível de consciência religiosa surgir é que irá emergir uma nova realidade.
Uma conversão é essencial, como indica o papa, porém não pode ser uma conversão espiritual tão somente. Em vez disso, esta conversão deve ocorrer em todos os níveis da vida eclesial – espiritual, teológico, estrutural, organizacional, inter-religioso – até que o mundo comece a sentir o impulso espiritual do amor no coração de toda a vida.
Laudato Si’ abre as portas para um novo mundo ao contestar um mundo egoísta desconectado e convidar a todos para um novo mundo de inter-relação. Mas a Igreja deve modelar os próprios princípios que promove: cuidados mútuos, inclusividade, interdependência, dignidade de todos os povos, recursos e responsabilidades compartilhados, todas as criaturas juntas unidas como irmãos e irmãs, entrelaçadas no amor de Deus. Teilhard de Chardin teve uma visão de Igreja em um universo inacabado, e eu incentivo o Papa Francisco a olhar para a visão evolutiva de Teilhard em vista do século XXI, a fazer de Teilhard de Chardin um Doutor da Igreja e a levar o bom trabalho que ele iniciou ao próximo nível de evolução.
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Lex credendi, lex vivendi: Uma resposta a Laudato Si’. Artigo de Ilia Delio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU