29 Junho 2015
A carta do Papa Francisco sobre o meio ambiente – Laudato Si’ – tem capturado a atenção do mundo, mas poucos vêm considerando até que ponto ela está baseada na obra de um sacerdote filósofo alemão pouco conhecido.
Romano Guardini – depois de João Paulo II e Bento XVI, a referência mais vezes citada – oferece algumas das características mais marcantes da encíclica: o seu senso de crise, o seu antagonismo em relação aos ídolos tecnocráticos, a sua esperança de uma renovação espiritual. O que devemos pensar da influência desta figura obscura sobre o documento papal mais sensacional dos últimos tempos?
A história de Francisco e Guardini remonta algumas décadas. Há muito Francisco admira Guardini, talvez porque ambos são filhos de emigrantes italianos, ambos atenderam ao chamado ao sacerdócio e ambos passaram algum tempo estudando química.
A reportagem é de Matthew Schmitz, vice-editor da página eletrônica First Things, publicada por Washington Post, 25-06-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na época em que era um jovem seminarista jesuíta na década de 1950, Francisco manteve um exemplar do livro de Guardini “O Senhor” na sua estante. Em 1986, depois que seus adversários ganharam o controle da província jesuíta argentina, Francisco se mudou para a Alemanha com a intenção de escrever uma dissertação sobre a obra inicial de Guardini, “Contraste”. A dissertação nunca foi escrita, mas Laudato Si’ nos mostra que Francisco tenta aplicar ao máximo o pensamento de Guardini.
O livro que Francisco cita de Guardini em Laudato Si’ é O Fim da Idade Moderna, um tomo obscuro escrito em uma época de guerra mundial. O livro de Guardini começa com a premissa de que “só há uma norma pela qual uma época pode ser justamente julgada (…) Em que medida ela permitiu o desenvolvimento da dignidade humana?”
Nos termos de Guardini – e não em termos de PIB, de expectativa de vida ou de qualquer outra estatística –, Francisco encontra o nosso próprio querer temporal. A tecnologia “se juntou indissoluvelmente” com uma economia da “ganância descontrolada” que permite que injustiças se combinem em uma força impessoal – às vezes chamada de “progresso”, às vezes de “mercado” – pela qual ninguém reivindica responsabilidade ou aceita a culpa.
A nossa glorificação da tecnologia, Guardini sustenta, leva-nos a ver tudo e todos como meios, e não como fins. Isso acarreta consequências que vão não só da exploração econômica à guerra nuclear, mas também “do controle dos nascimentos à gravidez interrompida, da inseminação artificial à eutanásia, da criação de raças animais à destruição da vida indesejável”.
A crítica de Guardini atravessa as categorias habituais de esquerda e direita. Visto com desconfiança pelos católicos tradicionais de sua época, Guardini conseguiu também um cargo de professor numa universidade protestante, em vez de católica (mais tarde ele seria forçado a debandar por causa dos nazistas, a cuja ideologia ele silenciosamente se opôs).
Guardini acabou se tornando uma importante fonte de inspiração para muitos dos pais do Concílio Vaticano II, incluindo João Paulo II e Bento XVI. Nos últimos anos, tem sido lido mais de perto por católicos conservadores, mas talvez isso possa mudar.
Dado o quanto Francisco se baseia em Guardini, vale a pena observar as discordâncias entre eles. Enquanto que Francisco é otimista sobre a possibilidade de erigir uma burocracia mundial para combater a crise atual, Guardini recua diante da ideia de um “planejamento universal”. O que realmente motiva as chamadas para o gerenciamento dos recursos naturais de acordo com as “estatísticas” e “teorias” não é uma preocupação prática em vista do melhor resultado, tanto quanto como um desejo espiritual de impor a sua vontade sobre os outros.
Os dois homens também enxergam papéis diferentes para a Igreja. Enquanto Francisco acredita que a Igreja pode expressar desejos universais e conduzir todos os homens de boa vontade à cura do planeta, Guardini diz que o cristianismo “será forçado a distinguir-se de forma mais acentuada de um ethos predominantemente não cristão”. Francisco espera cooperação; Guardini, conflito.
Por detrás dessas diferenças políticas e eclesiais há uma diferença filosófica. Guardini acredita que o nosso futuro será um futuro iliberal – seja humanamente sob um consenso cristão, seja desumanamente sob o controle de um tecnocrata.
A antiga ideia liberal de “conviver com os outros”, recusando-se a “incorporar absolutos à existência”, está morta. Uma tal visão “nunca poderá resolver a situação existencial que enfrentamos hoje”. Para irmos além de um paradigma tecnocrático gerencial, devemos deixar de lado a linguagem gerencial do liberalismo.
Francisco acredita na possibilidade de um consenso global que não é explicitamente cristão. Crentes e não crentes podem cooperar partilhando de uma “conversão ecológica” e, então, dando continuidade para o salvamento do mundo.
Por toda a antimodernidade de sua retórica, Francisco continua a ser um liberal moderno. Ao contrário de seu herói intelectual, ele está confiante nas perspectivas da gestão burocrática do desacordo e da cooperação entre pessoas com pontos de vista amplamente diferentes. Guardini pode ser o grande mestre do Papa Francisco, mas este continua sendo a sua própria fonte inspiradora.
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Quem é o filósofo que possui tanta influência sobre o Papa Francisco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU