Por: Jonas | 24 Junho 2015
O espectro de Karl Marx (1818-1883) nunca deixou de importunar o capitalismo. No clima de anti-marxismo dominante nos anos 1980, muitos prognosticaram a morte de seu pensamento junto ao colapso dos “socialismos reais”. No entanto, o autor de “O Capital” voltou a emergir entre os escombros do Muro de Berlim, libertado da pesada hipoteca do século passado, quando era considerado o responsável intelectual dos comunismos. O Marx do século XXI, o que volta a ser lido e interpelado, é um Marx “mais secularizado” e sem “-ismos” tributários da ortodoxia soviética. Estava na hora de publicar uma “Antologia Karl Marx” (Siglo XXI), destinada aos estudantes e leitores em geral que necessitam se aproximar, pela primeira vez, da leitura de um pensador complexo.
O livro de 487 páginas inclui treze textos escritos entre 1843 e 1881, selecionados por Horacio Tarcus (foto), autor de um extraordinário estudo preliminar que permite traçar o itinerário intelectual que vai de trabalhos como “Sobre a Questão Judaica”, passando pelas “Teses sobre Feuerbach”, o “Manifesto do Partido Comunista” e “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, até o “El porvenir de la comuna rural russa”.
Fonte: http://goo.gl/zOu5Md |
Tarcus conta que há muitos anos não se editava uma antologia de Marx. “Nestes últimos anos, apareceram obras soltas como o ‘Manifesto Comunista’ e ‘O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte’, que tomam a edição soviética que está na Internet, com o velho sistema de notas de uma fortíssima intervenção ideológica, e que em geral não tem estudos introdutórios, nem maiores cuidados. O fato de que surjam estas edições é um sinal de que, há muitos anos, os textos de Marx entraram no universo dos clássicos”, afirma o historiador e criador do Centro de Documentação e Investigação da Cultura de Esquerdas na Argentina (Cedini). “Após trinta e poucos anos, volta-se a editar um livro na Biblioteca Cultura Socialista, que era dirigida por Pancho Aricó. Esta antologia de Marx é a primeira de uma série que recuperará a coleção, o que implica reeditar alguns clássicos do socialismo que consideramos vigentes e novos títulos. A Biblioteca estará sob minha responsabilidade, sendo assim, estou feliz porque temos um Marx na rua e uma Biblioteca em curso”.
A entrevista é de Silvina Friera, publicada por Página/12, 22-06-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Na Argentina, que Marx está sendo lido hoje?
Não consigo decifrar que a Argentina esteja lendo um Marx muito diferente do que se lê no restante da América Latina e no mundo. O retorno à Marx se deu em escala mundial. Se tivesse que apresentar um acontecimento de referência, diria que depois do intenso refluxo dos anos 1990, no contexto do neoliberalismo - com o auge dos novos filósofos franceses, com Marx sendo condenado junto com os professores pensadores e o marxismo contando com a maior desvalorização como paradigma teórico-crítico, incapaz de pensar a democracia nos anos 1980 -, o ponto de inflexão foi marcado pelo ano de 1998, quando foram completados 150 anos da publicação do “Manifesto Comunista”. Houve reedições em todo o mundo; a mais exitosa talvez seja a edição anglo-saxã feita por Verso Books, a editora de Perry Anderson. O ano de 1998 é o momento em que Marx retorna pela porta do Manifesto... O aniversário da publicação foi coberto pelos suplementos culturais e pela imprensa em todo o mundo. As principais universidades do mundo fizeram eventos sobre os 150 anos do Manifesto..., dos quais participou a intelectualidade crítica, não necessariamente marxista. Paradoxalmente, o mais importante ocorreu em Paris, a capital da reação antimarxista. Os governos nacional-populistas latino-americanos ofereceram um cenário muito mais favorável à circulação do pensamento socialista em geral e do marxismo em particular, ainda que nenhum deles tenha um compromisso com o marxismo. O marxismo já não está, como até os anos 1970, no programa dos partidos socialistas, nem dos governos populares. No entanto, é indubitável que o esforço destes governos em conceber políticas que conduzissem a deixar o neoliberalismo encontrou no socialismo e em Marx um companheiro de rota, às vezes em tensão, às vezes incômodo com as ideologias nacionalistas ou desenvolvimentistas, mas com um diálogo muito maior do que o que significou os anos 1990.
A expressão “emancipação política”, que vem da linguagem de Marx, foi recuperada em vários países da América Latina nos últimos tempos, não é?
Sim. Minha intenção é recolocar um Marx integral, partindo do chamado “jovem Marx” e seu humanismo filosófico. Para além da emancipação política, há uma emancipação humana que tem a ver com uma dimensão social. Marx pensa sua teoria da exploração dentro de uma teoria mais ampla sobre a opressão e a emancipação. O Marx desvalorizado dos anos 1990 é um Marx reduzido a uma espécie de determinismo econômico, de jacobinismo político, de simplificação da análise social, sendo que o pensamento de Marx é muito mais complexo, muito mais sofisticado, e abre mais perspectivas para pensar o mundo presente do que essa caricatura construída pelos novos filósofos e a nova direita dos anos 1980 e 1990. O que querem é questionar os socialismos reais e responsabilizam Marx como pai da criatura.
O grande problema foi postular que o comunismo é sinônimo de marxismo?
Claro, mas há uma relação complexa aí. Os socialismos reais foram erguidos em nome de Marx, mas o marxismo funcionou – para dizer em termos marxianos – como uma verdadeira ideologia de autolegitimação destes regimes. A responsabilidade que uma teoria possui a respeito dos regimes que se levantam em seu nome sempre é relativa. Nos anos 1990, era muito difícil pensar na contramão desta associação, mas a partir de 1998 e com a mudança de século se buscou no marxismo categorias que permitiram pensar o que foi o ciclo dos comunismos, de modo que havia um marxismo que era possível colocar contra os socialismos existentes. Caso se repasse a história do marxismo do século XX, boa parte da produção mais crítica, mais intensa, aquelas obras mais produtivas, foram escritas na contramão dos regimes comunistas. Destaca-se a obra de León Trotsky, mas não é a única. As críticas de Rosa Luxemburgo ao próprio Trotsky, a obra mais crítica do jovem Georg Lukács contra a filosofia que está se estabelecendo na União Soviética, a obra do alemão Karl Korsch ou os conselhistas holandeses e alemães até chegar a Socialismo ou Barbárie na França, com Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. São marxismos dissidentes, marxismos críticos; o próprio Antonio Gramsci, embora tenha sido um homem da Internacional Comunista, estava pensando na contramão do pensamento político comunista.
Estes pensadores da dissidência foram os que melhor interpretaram Marx?
Poderíamos dizer que foram os leitores ou os intérpretes mais produtivos, mais incisivos, mais profundos. O estalinismo é uma leitura dogmatizante que se apropria do marxismo e o converte em ideologia de um regime de poder. Ao contrário, estas leituras são de correntes críticas ou de intelectuais críticos que se confrontaram com esses poderes. Quando nos perguntamos se há crise ou não do marxismo, estamos pensando no marxismo como ideologia dos regimes comunistas ou no marxismo de Walter Benjamin, de Gramsci, de Jean-Paul Sartre e de Karl Korsch? O marxismo como ideologia dos regimes comunistas não foi objeto de reabilitações, mas nestes últimos anos foram vistas revalorizações do marxismo crítico. A obra de Gramsci continuou sendo lida e editada, a obra de Benjamin foi quase objeto de uma redescoberta, a obra de Theodor Adorno, presente em autores como Fredric Jameson, nos Estados Unidos, ou John Holloway, no México, mostra que é um autor que continua sendo produtivo. Sartre viveu décadas de refluxo e passou a ser uma má lembrança em seu próprio país, mas nestes últimos anos vem sendo objeto de revalorizações e reedições. Marx volta a emergir, volta a encontrar uma densidade teórica que excede uma experiência feita em seu nome. A respeito dessa associação entre marxismo e comunismo, não se pode declarar Marx culpado, nem tampouco, como poderia pretender certo trotskismo simplista, absolutamente inocente. Não se poderia tornar Adam Smith responsável pelos piores horrores do capitalismo. O vínculo de uma doutrina, de uma teoria, de uma filosofia, com os movimentos que a inspiram sempre é complexo. O autor dessa teoria ou doutrina nunca é totalmente inocente, nem totalmente culpado. Evidentemente, há em Marx uma série de anticorpos frente a uma concepção totalitária. Embora o estalinismo tenha conseguido se amparar no marxismo, até certo ponto, para edificar um regime de partido único, de anulação da sociedade civil, de controle e de repressão, é impossível encontrar em Marx textos que abonem semelhantes práticas. Marx não é em absoluto um estadista, por isso incluí o texto da “Crítica ao Programa de Gotha”, porque ele não concebe, como Ferdinand Lassalle, uma sociedade regida e dominada pelo Estado, um Estado que se chamaria “o estado do povo”, que governaria em nome do povo. Marx reage com muitíssimo vigor contra essa ideia. Para ver esta apropriação estalinista do marxismo há que recolocar a história do marxismo na Rússia.
É por isso que inclui, para encerrar a antologia, “El porvenir de la comuna rural russa”?
Exatamente. A emergência da questão nos anos 1860 abre um horizonte revolucionário impensável poucos anos antes. Marx começa a pensar que a revolução não começaria pelo Ocidente, como havia acreditado até então, mas, sim, pelo Oriente. A luta contra o czarismo poderia ser o chamado inicial a explosão de uma revolução, que Marx segue pensando como em 1848, uma revolução pan-europeia onde a ruptura da cadeia poderia vir pela luta anti-czarista, pela emergência de uma nova geração de revolucionários. Esta revolução, que começaria pelo Oriente e não pelo Ocidente, o leva a repensar elementos substanciais de sua concepção da história. E lhe serve para avançar um passo a mais em sua ruptura com a filosofia hegeliana, com a qual vem rompendo, mas este é um elemento do descentramento, de ferida narcisista que Marx precisa elaborar por meio das cartas que escreve e reescreve a Vera Zasúlich, para encontrar uma fórmula adequada de como entender sua concepção da história. O grande paradoxo é que os interlocutores e herdeiros de Marx não são os chamados “pais do marxismo russo”. E ao contrário: (Georgi) Plekhanov, o pai do marxismo russo, precisa ocultar estas cartas de Marx para fundar o marxismo na Rússia. De modo que o marxismo no qual se forma (Vladimir) Lenin, este marxismo de Plekhanov, é um marxismo construído à custa dos textos de Marx. Justamente a crise do leninismo permite revalorizar esse socialismo tachado de romântico, de pré-marxista, de populista. Esta é a operação de Pancho Aricó: recuperar o marxismo de (José Carlos) Mariátegui e o marxismo dos populistas russos. E de algum modo, sem ser anti-leninista, eu diria que a operação de Aricó consiste em recolocar o leninismo dentro das múltiplas e diversas tradições do marxismo. Sempre digo aos meus alunos, a partir da primeira aula: não é que Lenin não era marxista é que Marx não era leninista. A operação consiste em construir esse marxismo-leninismo, que é uma ideologia. O marxismo-leninismo-estalinismo é uma torção sobre essa ideologia; com isto, tampouco quero dizer que Lenin era estalinista. Stalin era leninista, mas Lenin não era estalinista.
E para prolongar esta provocação, Marx disse que não era marxista.
Exatamente. Tem a ver com o efeito de desconhecimento que um autor pode chegar a ter sobre a construção de doutrina que se faz em seu nome. Em parte, poderia se dizer que Freud não era freudiano, na medida em que não se reconhecia no freudismo de (Alfred) Adler ou de (Carl) Jung. Isto nos leva à questão do legado teórico de um texto e seus problemas de interpretação e ao caráter relativamente aberto de toda obra. Marx é um pensador descontente com o seu próprio sistema e o reformula constantemente, até pouco antes de sua morte. O pensamento crítico recoloca o caráter aberto de uma obra e mostra como todo texto, inclusive o que tem maior pretensão de cientificidade, apresenta lacunas que o doutrinário preenche. E possui tensões ou contradições que a doutrina resolve de uma forma ou de outra. O pensador, o filósofo crítico, sempre abre questões. O doutrinário precisa oferecer respostas, não é? E não digo que o pensador é bom e o doutrinário é ruim. Não faço um maniqueísmo, são funções diferentes.
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Marx, para além de muitas de suas interpretações. “O pensador, o filósofo crítico, abre questões” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU