Por: André | 26 Mai 2015
O acadêmico inglês acredita que Francisco é um discreto construtor de relações que estão desbloqueando a Igreja. “Sempre se moveu fora do radar”, acrescenta Austen Ivereigh.
A análise do “caso argentino” sempre despertou particular interesse em pesquisadores estrangeiros. Nessa tradição se alinharam Alain Rouquié, Robert Potash ou Joseph Page para estudar a relação entre o poder militar e a política e a sociedade, ou indagar sobre o corpus biográfico de Juan Perón, na vontade de entender as chaves do movimento peronista. O acadêmico inglês Austen Ivereigh soma-se a este lote.
Fascinado pela América Latina e pelas leituras de Borges e Cortazar, Ivereigh chegou à Argentina em 1987 para estudar a influência da Igreja nas décadas de 1930 e 1940. Passou vários meses no arquivo da revista católica Criterio e, no seu devido tempo, apresentou sua tese de doutorado na Universidade de Oxford. Já havia abandonado seus estudos sobre a Argentina quando, no dia 13 de março de 2013, cobrindo o conclave como comentarista da televisão inglesa, foi surpreendido pela eleição de Bergoglio. E outra vez fez o mesmo caminho: voltou ao país para pesquisar e depois escrever O Grande Reformador. Francisco. Retrato de um Papa radical.
A entrevista é de Marcelo Larraquy e publicada por Clarín, 24-05-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
O que é preciso entender do peronismo para entender o Bergoglio?
O peronismo não é uma doutrina coerente, mas uma forma de canalizar valores e culturas da nova nação argentina dos anos 1930 e 1940, muito influenciada pela Igreja do bairro, do padre, impregnada por valores católicos, populares, basicamente de imigrantes. É uma cultura que emerge sem expressão política, porque a classe política estava hermeticamente fechada e a narrativa liberal do século XIX já não correspondia a esta nova realidade argentina. É a Igreja da infância de Bergoglio.
O que Bergoglio recolheu do peronismo para governar a Companhia de Jesus ou agora em seu papado?
Bergoglio não é um Papa de documentos e de instituições, mas de pessoas, de relações. É um brilhante construtor de relações. Essa capacidade de cativar e de inspirar as pessoas para que trabalhem segundo uma visão conjunta, que é precisamente a que tinha Perón, e pode ser perigosa se cair no culto à pessoa e se converter em demagogia. É a crítica republicana ao peronismo.
Bergoglio é personalista, mas promove a colegialidade para o seu governo. Há aí um matiz.
Sim, ele tem essa capacidade. Muitos jesuítas jovens, por essa visão tão completa, chegaram a adorá-lo. Mas para outros era asfixiante e monolítico, e não era pluralista. E é também a descrição que se faz de Perón. Popular, exitoso, mas que não permitia outras visões: Bergoglio aprendeu a lição em seu período de exílio interno em Córdoba, quando foi “escanteado” pela Companhia. O que temos agora é um Papa que aprendeu a criar espaços, que permite que haja dissidência e perspectivas diferentes. Mas ao mesmo tempo não teme tomar decisões impopulares e suportar as consequências. A Igreja não é uma democracia.
Em seu livro menciona que mal foi eleito na Europa se dizia que era um “Papa da ditadura”, por acusações de cumplicidade que depois se revelaram falsas, e também que era o “Papa das favelas”. Como você o caracteriza?
Creio que é um Papa de processos. Explico-me melhor: ele chegou à conclusão de que é o Espírito Santo quem está a cargo da Igreja e não ele, e que o que corresponde a ele é criar espaços. Não quer impor determinado programa, mas desbloquear a Igreja para que abra suas portas e para que as pessoas se aproximem. É um construtor de pontes.
Por que bateu de frente com o kirchnerismo? Qual foi a natureza do conflito?
Minha impressão é que Bergoglio, depois da crise de 2001, queria que uma nova política fosse construída a partir da sociedade civil, a partir das necessidades e valores do povo expressados em instituições vigorosas. E Kirchner cria uma política hermética a partir do Estado, cria uma frente política excludente.
No Vaticano diz-se que seu governo é desconcertante. Inclusive se perguntam se por trás desse turbilhão de ações há um pensamento.
Sim, há um pensamento. Uma opção a favor dos pobres e excluídos, e um novo enfoque missionário colocando a ênfase na ação misericordiosa. Havia grupos católicos que se sentiam cômodos com Bento XVI e João Paulo II porque restauraram a clareza. E se desconcertam com Francisco, porque está dizendo: a doutrina é um ponto de partida, mas não é suficiente. É preciso sair em busca das pessoas, curar suas feridas. É um homem que procura construir. Não é um filósofo ou um teólogo nesse sentido. Não lhe interessam as discussões abstratas, mas a ação.
Como explica sua chegada ao Papado sem fazer parte da cúria romana nem colocar a ênfase na doutrina?
A metáfora que utilizo no livro é a do gaúcho que chega com a primeira luz da manhã, sai do pampa e ninguém sabe de onde veio. E por que parece que veio do nada? Porque Bergoglio construiu relações de maneira discreta, trabalhou-as na sombra. Moveu-se fora do radar. Por isso, ser o comunicador do mundo também é uma novidade para ele.
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“Para o Papa, a doutrina é um ponto de partida, mas não é suficiente”. Entrevista com Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU