26 Mai 2015
A psicanálise, segundo Christian Dunker, ocupa hoje papel importante na vida brasileira. Não é apenas sua ampla aceitação entre a população como forma de tratamento que a tem colocado em destaque, mas também a função cada vez mais civilizatória que vem exercendo em locais onde o vazio cultural é mais costumeiro. É normal, por exemplo, encontrar psicanalistas que junto de seus escritórios abrem clubes de leitura e que, além disso, são chamados a opinar sobre questões do cotidiano. Desse ponto de vista, a reflexão iniciada no recém-lançado livro de Dunker, Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma Psicopatologia do Brasil entre Muros, da Boitempo Editorial, não é um ponto fora da curva. Ao fazer sua crítica social, ele coloca o Brasil no divã.
Psicanalista e professor titular do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Dunker tem dezenas de artigos científicos publicados no Brasil e no exterior e, em 2012, ganhou o Prêmio Jabuti com sua tese de livre-docência Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica, publicada pela Annablume. Na nova discussão que está propondo, no entanto, o professor não se atém apenas a questões da psicanálise, mas as usa para interpretar o País, identificando na “vida em condomínio” uma imagem capaz de elucidar muito do momento atual brasileiro.
Em entrevista Dunker fala sobre as várias faces do mal-estar brasileiro, trata de como a lógica do condomínio - muito maior do que apenas o condomínio em si - criou barreiras sociais e, por fim, comenta os reflexos desse modo de vida brasileiro dentro e fora de seus muros. “Quando todo mundo é igual, isso se torna uma pólvora, um combustível. No condomínio, que fica abrigado da guerra de todos contra todos, cria-se uma guerra de todos contra todos entre iguais.”
A entrevita é de André de Oliveira, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 24-05-2015.
Eis a entrevista.
O senhor pode fazer um histórico do mal-estar brasileiro até chegarmos ao condomínio como imagem capaz de ilustrar o país?
A grosso modo, no momento anterior, que eu vou caracterizar como o momento da ditadura e o que a antecedeu, nossa forma de mal-estar estava muito baseada na oposição entre campo e cidade.
Existia um problema que precisava ser superado: saber como urbanizar e conquistar o Brasil, que tem uma área gigante e desabitada. Ou seja, o grande interpretante diagnóstico era a oposição entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Isso fazia parte de um entendimento que pensa o coletivo como um processo comum. Nós estávamos em uma linha reta, poderíamos avançar, estagnar ou ir para trás. O Brasil era encarado como uma espécie de Belíndia, metade Bélgica, metade Índia. A ideia é que a Bélgica precisava puxar a Índia. Como essa contradição ia ser resolvida? Você tinha uma discussão sobre os destinos do Brasil como uma totalidade.
O senhor identifica o subdesenvolvimento como sendo o mal-estar daquela época?
Sim. Era o sentimento de que nós não estávamos onde deveríamos. Mas outra coisa precisa ser dita. Existe uma ideia forte de que o mal-estar é um empuxo para uma nomeação. É como uma situação social em que acontece uma coisa que não deveria ser mencionada, mas é. Ou ao contrário. Quer dizer, a gente não pode confundir essa experiência com o nome que damos para ela. O mal-estar é uma coisa mais complicada, que está aí. O que a gente faz é jogar para cima dele um nome e ir o retificando. Por exemplo, não se chamava o mal-estar de pobreza ou de descalabro do governo, como se faz agora. Dávamos outros nomes. Mapear o mal-estar é uma coisa que você faz meio indiretamente: você vai vendo como é que os nomes mudam e aí infere o que se alterou na configuração social. A gente poderia dizer que tínhamos um mal-estar que foi hipernomeado por “subdesenvolvimento”. Ele é uma construção coletiva e também existencial. Tem a ver com a posição que temos diante do mundo. Daí essas leituras de que estávamos na periferia, por exemplo.
E o senhor acredita que a nomeação desse mal-estar mudou durante a ditadura militar?
Sim. Eu localizo isso em meados dos anos 1970, mas principalmente a partir dos anos 1980, quando esses diagnósticos de mal-estar começam a ser insuficientes. É justamente nessa época que surgem os primeiros condomínios. Ele representa a perda de uma preocupação com o ponto de vista da totalidade [que é como superaríamos o subdesenvolvimento brasileiro] e passa a assumir uma moral da sobrevivência. As pessoas se demitem de tentar entender como fazer para Bélgica e Índia andarem juntas e recolhem-se em uma porção de terra, defendida por muros, onde conseguem recriar um mundo em que possam governar, em que são senhores das leis e em que planejam tudo. Ele é o princípio de formação de uma identidade sintomática.
Mas como o condomínio aparece nessa mudança de ponto de vista?
O condomínio pega justamente esse arco em que você precisa redefinir o mal-estar. Ele não vai ser mais o subdesenvolvimento, a partir daquele momento ele será renomeado por violência. O mundo se tornou perigoso, por isso os muros do condomínio. Mas alguém pode perguntar: o mundo já não era um lugar perigoso? Era, mas não era assim que uma pessoa da década de 60 olhava para a diferença social. Ela não era uma coisa perigosa. Quem gestou a retórica do perigo? Foi a ditadura, que falava incansavelmente de inimigos internos e externos. Nesse período, o Brasil se fechou, porque, na retórica deles, nós tínhamos que nos defender criando monopólios, áreas de clientelismo, de restrição de circulação. Isso acabou gerando uma prática de produzir bolsões. Em seguida, deu origem a um novo sintoma, que são os condomínios. Nessa nova estrutura, é óbvio que criar um modo de vida em que o inimigo está lá fora é quase que natural. De repente, a rua virou um bicho perigoso. Isso tem a ver com transformações urbanas, com migração? Sim, um pouco. Mas tem a ver com a emergência de uma cultura que se interpreta a partir desse novo nome: violência. A dinâmica das coisas passa por esse novo nome. A partir daí você tem toda uma nova retórica política em torno de vender segurança.
Só que essa forma de viver em condomínio não é exclusivamente brasileira, certo? Os subúrbios americanos são um bom exemplo de algo similar ao que temos aqui. Como, então, ela pode falar tanto do nosso País?
Eu a identifico como única do Brasil, sim. Tem uma coisa muito interessante das propagandas dos primeiros condomínios. É que no formato americano de subúrbios que, de fato, a gente basicamente importou, os condomínios eram vendidos como um lugar de confraternização e de resolução de diferenças, entre outras, étnicas. Lugar em que você teria o oriental, o negro, o branco, o do sul e o do norte convivendo. No fundo, as diferenças foram apenas homogeneizadas; não à toa, estamos acostumados a ver isso em uma série de sátiras, como o filme Beleza Americana. Então, qual é a diferença pro caso brasileiro? Quando os condomínios foram vendidos, não existia referência alguma nas propagandas brasileiras de que aquele era um lugar em que pessoas diferentes poderiam viver juntas. Pelo contrário, ele vem instituir práticas que eram sociais como normativas, vem para profissionalizar as diferenças: os empregados uniformizados devem entrar por uma porta, os reais habitantes daquele espaço por outra. Por que isso? Porque no fundo esse espaço foi criado a partir dessa suposição de que lá fora é perigoso.
Quando o senhor fala do condomínio, fala mais dele como uma lógica presente no País do que apenas do espaço condomínio propriamente dito?
Sim. Ele é só um caso modelo, essa história vai além do condomínio. Na configuração das cidades, por exemplo, acredito que ele forma uma estrutura com a favela, prisão e shopping center. Ele forma uma variação com o monopólio, com as zonas restritas dentro daquilo que deveria ser um espaço público. É um fake do espaço público, uma deformação e uma substituição. Ao mesmo tempo que você tem essa demissão dupla do Estado; de um lado a favela, de outro o condomínio, você começa a ter os grandes empreendimentos de cessão, como o Projeto Jari. É como se o Estado estivesse falando que não consegue, que se demite de sua função. Aí você se livra, você está por sua conta. Quem manda em quem entra e quem sai do shopping? Ninguém, mas a ideia é que se consiga selecionar um grupo de consumidores, excluindo outro. Acho que isso capta melhor o que eu quero dizer com a lógica do condomínio. É uma lógica que alcança portarias invisíveis, crachás que estão além da regra, mas que funcionam.
E o senhor acredita que a “vida em condomínio” ainda está em ascensão?
Esta é uma questão em aberto, é opinar sobre algo que está acontecendo agora, mas eu acredito que não, acho que está em declínio. Mas aqui é importante dizer que existem algumas narrativas do sofrimento e que duas delas são essencialmente formadoras da lógica do condomínio. Uma é o objeto intrusivo, ou seja, você sofre porque tem alguma coisa de fora te fazendo sofrer. A outro é o pacto mal-feito, que é quando alguém está quebrando alguma regra. O condomínio faz parte de uma lógica de bem-estar, é a lógica de um ideal tornado realidade, porque teoricamente ele elimina essas duas narrativas de sofrer. Não existe mais sofrimento, mas sabemos que isso não é verdade. Assim, eles surgiram como espaços de luz e felicidade, mas resultaram numa redução da nossa capacidade de lidar com diferenças. Freud tem um nome técnico para isso: é o narcisismo das pequenas diferenças.
E por que isso mostra que essa forma de viver começa a entrar em declínio?
A pequena diferença se amplifica. Quando todo mundo é igual, ela se torna uma pólvora, um combustível. No espaço que fica abrigado da guerra de todos contra todos, cria-se uma guerra de todos contra todos entre iguais. Aparecem disputas pelo melhor tênis, o carro mais caro, o jardim mais verde. Quando isso acontece, a gente começa a ficar intolerante, colérico, irascível, mal-humorado. Aí também entra a figura do síndico, que é um gestor, um cumpridor de normas, um fazedor de regras que vai legislar em cima de conflitos, estabelecendo um lego de normas em nome do bem-estar. Isso é a judicialização dos conflitos. É a ausência completa de palavra para lidar com a diferença, um tipo de autoridade impessoal e sistêmica que leva para outras formas de sofrimento. É o sentimento de que a gente não sabe direito qual é o nome da autoridade que nos comanda.
É nesse momento que o senhor acredita que condomínio como ideia de bem-estar começa a ruir?
Sim. É a fonte do retorno do mal-estar. Ao prometer para alguém que tudo o que ela quer está disponível, se reduz seu desejo à demanda. Uma imagem boa é a da criança mimada que ganha tudo. Qual é o problema disso? É que você confunde o que ela pede com o que ela deseja. É nessa lógica que começa a aparecer o adolescente que se dopa demais, a criança hiperativa, aquela dona de casa tipo Desperate Housewives [série americana de TV que retrata a vida de donas de casa em um subúrbio americano], o executivo eternamente ansioso com sua produtividade e desempenho. É uma resposta natural ao modo como as pessoas estão vivendo. Na primeira fase do sintoma da vida em condomínio, está tudo tranquilo, na segunda você começa a sentir o cheiro do ralo. Alguma coisa não vai bem, mas você não sabe o que é, porque teoricamente tudo deveria estar bem, já que as formas de sofrimento foram isoladas do condomínio.
Tudo isso começa a aparecer dentro dos muros, mas como o senhor enxerga esse tipo de insatisfação para além deles?
Está no jovem que não quer mais um carro, que quer bicicleta. Está na tentativa de reocupação de áreas centrais da cidade. Mas também está nas pessoas que vão para a Paulista protestar. Esse momento é vivido como angústia, que é uma das expressões fundamentais do mal-estar. O problema é que junto disso está vindo uma onda muito forte de ódio. E não é o ódio saudável que ajuda a separar quando preciso. É o ódio que junta. Uma vez que falar de violência já não responde totalmente a questão do mal-estar, começam a surgir outras nomeações. As pequenas diferenças dos condomínios fizeram com que se perdesse a ideia de “nós”, por isso é necessário criar um novo “eles” para se reafirmar. Vamos nomear isso: são os comunistas, os corruptos, os coxinhas, os ladrões. Aí você vê ressurgirem coisas como a retórica do inimigo vermelho. É um absurdo. Ninguém mais quer uma revolução, a esquerda virou tão somente a defesa do social, ninguém mais fala em estatizar bancos. Só que esse discurso era o que havia de reserva e ele torna a ser característico de empreendimentos atuais: Bolsonaro indo para a praça pública com um revólver no cinto, black blocks quebrando tudo, um cidadão sendo vaiado em um ambiente como o de um hospital ou restaurante.
Mas, apesar do acirramento, essa não é a divisão natural entre esquerda e direita?
Existe um elemento novo. Quase sempre, ou pelo menos nesse arco histórico que a gente está discutindo, a esquerda pensava a cultura, as formas de vida alternativas. E a direita pensava economia, política. O que está acontecendo? Uma parte da direita está se redefinindo com um discurso moral de vanguarda. Somos “nós” contra “os ladrões”, “os que não podemos confiar”, “os bandidos”. Numa reconstrução do argumento, você chega numa versão da lógica do condomínio com ódio explícito. É o Feliciano tentando pautar a cultura. E isso é inédito. Esse momento, tudo isso, sugere que o muro não está exercendo mais sua função. É um momento novo.
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Todos contra todos. Entrevista com Christian Dunker - Instituto Humanitas Unisinos - IHU