20 Mai 2015
A beatificação do arcebispo martirizado Oscar Romero em 23 de maio irá reconhecer o que já é celebrado em toda a América Latina desde o seu assassinato no altar em 24 de março de 1980, em El Salvador.
Numa época de perseguição, Romero deu a sua vida pelo seu rebanho, tal como faz um bom pastor. Ele modelou a forma como de seria um bispo em uma Igreja comprometida com a justiça aos pobres. A morte de Romero e o batismo de sangue pelo qual passou o povo de El Salvador durante 12 anos de guerra civil (1980-1992) tem, inevitavelmente, grandes implicações para a Igreja universal – e para nós da América do Norte.
A reportagem é de Pat Marrin, publicada por National Catholic Reporter, 19-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A determinação do Papa Francisco em levar adiante a causa de beatificação de Romero reconhece este testemunho. Essa determinação também revela a influência que Romero está tendo sobre os objetivos do próprio Francisco como papa – mover a Igreja global para mais perto daquele tipo de Igreja que emergiu em El Salvador com Romero, cuja história é um exemplo para uma igreja comprometida com os necessitados.
Este artigo explora algumas de suas características: uma Igreja fiel às reformas do Concílio Vaticano II, plenamente engajada no mundo moderno e em suas lutas econômicas e sociais; uma Igreja pastoral que estende a mão aos sofredores e marginalizados da sociedade; uma Igreja que levanta a sua voz publicamente; uma Igreja profética, desafiadora dos sistemas mundiais que oprimem e exploram os pobres; e uma Igreja evangelizadora que pratica o que prega e vive o que reza.
Uma Igreja do Vaticano II
Dom Vincenzo Paglia, principal defensor da causa [para a beatificação] de Dom Oscar Romero, chamou-o de um “mártir da Igreja do Concílio Vaticano II”. A escolha de Romero em “viver com os pobres e defendê-los da opressão” advém dos documentos do Vaticano II e do encontro, de 1968, dos bispos latino-americanos em Medellín, na Colômbia.
Foi em Medellín que a frase “opção divina pelos pobres” primeiramente entrou para a linguagem oficial da Igreja, uma importante mudança numa época em que a hierarquia católica na América Latina era, por muitos, vista como estando alinhada com os ricos e poderosos.
No centro do debate sobre a natureza da Igreja que continuou durante o Vaticano II estava se a entrada de Deus na história humana em Jesus valia somente para vida eterna no além, ou se a salvação incluía a presença divina na luta por justiça social, pelo desenvolvimento humano e pela libertação da pobreza e opressão deste mundo.
A “Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual” respondeu a esta questão já em suas primeiras linhas: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (Gaudium et Spes, § 1).
Para Romero, a Encarnação significava que a vida, a morte e a ressureição de Jesus formam uma realidade presente, são o motor da história, ativo em cada geração da Igreja. Assim como o Bom Pastor dá a vida pelo seu rebanho, da mesma forma Romero escolhe morrer com o seu povo querido em vez de correr para um lugar seguro ou comprometer o Evangelho para acomodá-lo às forças que atacam a Igreja. Depois de Medellín, a teologia precisou lidar com a história.
Uma Igreja na história
Quando movimentos populares de libertação fulguravam nos países em desenvolvimento durante o período pós-colonial da década de 1960, os Estados Unidos viram uma infiltração comunista em todo o lugar e intervieram com os seus interesses de Guerra Fria em todo o mundo. Isto definiu o contexto no qual forças geopolíticas e econômicas complexas bateram-se de frente na América Latina, com consequências trágicas. El Salvador se via em meio a uma situação complicada na década de 1970. Enquanto que a influência do Vaticano II levava a uma maior defesa da Igreja para com os direitos humanos dos pobres, regimes entrincheirados se tornaram mais repressivos, apelando aos EUA por apoio e acusando opositores, incluindo sacerdotes católicos e freiras, de estarem propagando a ideologia marxista.
Romero foi nomeado bispo de San Salvador em 1977 porque era considerado um líder espiritual seguro, conservador, que não iria desafiar o status quo no pequeno país centro-americano administrado por poucas famílias ricas que eram apoiadas pelos militares.
Mas dentro de poucas semanas após a instalação de Romero, um de seus pastores rurais e amigo próximo, o padre jesuíta Rutilio Grande, foi morto por soldados do governo após apoiar trabalhadores campesinos pobres que tentavam se organizar em busca de uma reforma agrária e melhores salários. Romero saiu desta crise como um pastor devoto e defensor do povo. Seis sacerdotes e dezenas de agentes pastorais, catequistas e membros fiéis da Igreja foram mortos nos meses seguintes. Quando perguntado por um repórter o que fez enquanto arcebispo, Romero respondeu: “Eu juntei os corpos”.
Romero mergulhou no sofrimento das vítimas e de suas famílias. Tornou-se o representante dos que não tinham voz, usando suas homilias dominicais, transmitidas por rádio no país e na região, para contar suas histórias e exigir que o governo se responsabilizasse pelas centenas de pessoas detidas, torturadas e desaparecidas, quando as tensões se agravavam em direção a uma guerra civil.
Romero era acusado pelos críticos, dentro e fora da Igreja, de estar “se metendo na política” e de subverter a missão espiritual da Igreja, a qual, diziam eles, era a de salvar almas. Longe de abandonar os ensinamentos da Igreja, Romero estava aplicando os documentos do Vaticano II e de Medellín e as encíclicas do Papa Paulo XVI à realidade do povo de Deus em El Salvador.
Uma Igreja dos pobres
Uma vez que Romero decidiu desafiar a minoria rica de El Salvador, apoiada pelo exército, o seu destino foi juntar-se à maioria pobre. O seu período como arcebispo (1977-1980) se tornou um martírio de calúnias com constantes ameaças de morte, que durou três anos. Romero e a Igreja martirizada de El Salvador revelaram o custo de uma Igreja que defende os pobres.
A cumplicidade histórica da Igreja com a riqueza e o poder era um dos escândalos da Igreja pré-Vaticano II. Isso continua sendo um desafio, como evidenciado nos recentes esforços para limpar o Banco Vaticano de contas secretas e da lavagem de dinheiro. A questão é se o silêncio da Igreja pode ainda ser comprado com uma filantropia para obras de caridade advinda da riqueza criada de forma injusta, que explora os pobres e ignora o bem comum.
O Papa Francisco insistiu que a verdadeira solidariedade com os pobres, na luta deles em participar na configuração do futuro para a família humana inteira, é essencial para a missão de evangelização da Igreja.
Uma Igreja pastoral
Uma tal Igreja não acontecerá sem bons líderes. Romero deu forma à imagem do Papa Francisco de um pastor “com cheiro de ovelhas”, mergulhando na vida dos trabalhadores, dos estudantes e das famílias, em particular das crianças e dos idosos. Onde quer que fosse, as pessoas o cercavam e o abraçavam. Enquanto aumentavam os ataques pessoais vindos dos níveis mais altos de poder, inclusive ataques que emanavam do Vaticano, Romero encontrava consolo e força no povo. Ele descobriu neste povo aquilo que John Henry Newman chamava “o terceiro Magistério” – a experiência dos leigos –, que forma o sensus fidelium sobre o qual a doutrina da Igreja, em última instância, se fundamenta.
O Papa Francisco sabe, por experiência própria na Argentina, que é aqui onde os bispos encontram a Igreja dos pobres e recebem as suas credenciais como líderes servos.
Uma Igreja colegiada
“Vaticano II” era sinônimo para o diálogo em direção ao consenso. As quatro sessões deste concílio ajudaram os bispos a redescobrir o seu papel como parceiros apostólicos do papa. O processo de tomada de decisão é tão importante quanto o resultado. Uma participação plena e ativa de todos em discernir e possuir uma política pastoral é o que nos constitui como Igreja.
Romero liderava por consenso, consultando o clero, os agentes pastorais, os religiosos e os leigos, em suas homilias e nas quatro cartas pastorais que escreveu como bispo, documentos que abordaram todos os aspectos da vida da Igreja em crise. Ele foi um “mártir de reuniões”, convocando e participando de infinitas reuniões para escutar, exaustivamente, cada ponto de vista antes que as decisões fossem tomadas.
Ciente dos olhares sob o qual se encontrava, Romero gravava tudo, até mesmo as suas reflexões pessoais, em um gravador, todos os dias. Ele deixou registros escritos que o protegeram dos críticos revisionistas, que o chamavam de marxista, um pateta que cedey às influências dos jesuítas e um herege.
Estes seus registros meticulosos mostram o quanto estava engajado com a sua igreja local.
Romero valorizava fazer sondagens, consultas em lugar de tomar decisões a portas fechadas, porque via o quanto esta forma levava a soluções pastorais melhores. O Papa Francisco reafirmou este mesmo princípio quando abriu o Sínodo dos Bispos 2014 sobre a família à ampla participação dos leigos e incentivou o debate entre os participantes. Ele também reafirmou as conferências regionais dos bispos e a subsidiariedade em todos os níveis.
Uma Igreja colegiada fica mais bagunçada e corre mais riscos do que aquela que preza a continuidade em detrimento da adaptação, que preza o cumprimento em detrimento do discernimento. O Papa Francisco quer uma Igreja viva, aberta às surpresas de Deus. É isso o que nos capacita a resolver os paradoxos aparentes ao juntarmos a misericórdia à justiça, o amor à verdade, os ideais à realidade.
Adoração autêntica
Romero compreendia o poder da adoração pública para revelar os mistérios divinos mais profundos. Especialmente nas missas de domingo, ele recordava os fiéis da identidade batismal e da comunhão deles como membros do corpo de Cristo. As suas homilias faziam com que as Escrituras e os ciclos litúrgicos ganhassem vida na experiência das pessoas, unindo suas lutas e seus sofrimentos com aqueles de Jesus. Mesmo nos momentos mais violentos, Romero garantia-lhes que jamais estariam sozinhos, pois Deus estava acompanhando o seu povo em sua peregrinação através da história.
Os dias finais de Romero refletiam a Quaresma e a aproximação da Semana Santa. A sua última homilia, proferida na semana anterior ao Domingo de Ramos – dia do seu funeral –, baseou-se no Evangelho de João (12,24-26): “Eu garanto a vocês: se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto”. Momentos depois, completamente paramentado, de pé no altar de uma pequena capela de hospital, foi atingido e morto por um atirador de elite. O significado da missa revelou-se em detalhes, e a Palavra de Deus que ele havia recém pregado “hoje se cumpriu” (Lucas 4,21).
A morte de Romero resumiu o seu sacerdócio e o uniu ao sacerdócio de milhares de mártires que já haviam morrido e que morreriam nos anos que se seguiram ao seu assassinato.
A adoração que está correta virtualmente, porém estando vazia das realidades que ela simboliza, torna irrelevante a religião. Somente quando a liturgia faz justiça e conecta a vida de Jesus às nossas vidas é que ela se torna eficiente como uma formação cristã.
O Papa Francisco busca reevangelizar a Igreja, hoje, fazendo as mesmas conexões. Ele está escrevendo o seu papado a partir das leituras do Lecionário que prega em suas missas diárias. Através da palavra e do exemplo, a vida da Igreja está sendo proclamada como a vida, a morte e a ressureição de Jesus que se desdobra dentro do ano litúrgico e dentro da história.
Chamado à conversão
Uma lição desconfortável porém inescapável de história aguarda os católicos norte-americanos que quiserem saber sobre o mais novo santo e mártir. A beatificação de Romero atrairá a atenção mundial para El Salvador e para as perguntas: “Quem foi Oscar Romero, quem o matou, e por quê?”
A responsabilidade pelos crimes cometidos em El Salvador continua a se esquivar da plena adjudicação. Mesmo assim, é difícil negar que, entre os muitos fatores que criaram uma instabilidade política e econômica na região, estava a longa história do envolvimento norte-americano, que incluía a derrubada de governos não alinhados com os nossos interesses nacionais e o apoio a governos corruptos, repressivos, que serviam às nossas pautas na Guerra Fria.
Dentro deste quadro, os EUA financiaram a guerra em El Salvador que matou mais de 75 mil pessoas, a maioria civis. Soldados salvadorenhos treinados e assessorados pelos militares norte-americanos, usando armas, aviões e helicópteros norte-americanos, massacraram milhares de pessoas indefesas em El Mozote e no Rio Sumpul. As tropas de elite que que assassinaram seis sacerdotes jesuítas, uma trabalhadora doméstica deles e sua filha no campus de uma universidade em San Salvador, no ano de 1989, haviam recém retornado de um treinamento na Escola das Américas [um dos institutos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos à época situado no Panamá].
O caminho para a santidade de Dom Oscar Romero é um chamado para que nós saibamos do papel que o nosso país está desempenhando no mundo. A mensagem de paz e reconciliação, de justiça e misericórdia de Romero dirige-se a nós. Além disso, Romero aponta agora para o caminho a seguirmos na direção que o Papa Francisco disse querer levar toda a Igreja.
Que papel os católicos americanos e o nosso governo eleito desempenharão aqui depende de vivenciarmos, ou não, uma profunda transformação da mente e do coração. Podemos questionar sistemas econômicos dos quais nós nos beneficiamos e que se constroem às custas dos pobres do mundo? A nossa própria sobrevivência está em jogo em um mundo cada vez mais instável. O custo da mudança é a nossa conversão para uma solidariedade maior com os nossos irmãos e irmãs de todo o mundo. Um mundo diferente é possível e necessário.
Será preciso uma Igreja global, empenhada em alterar a direção da história no sentido de um futuro mais justo, sustentável. Romero e o povo de El Salvador deram suas vidas por uma tal Igreja, e o Papa Francisco parece determinado a convidar todos nós para fazermos parte dela.
Beato Oscar Romero e Mártires de El Salvador, rezem por nós.
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A beatificação de Romero sinaliza para onde Francisco está conduzindo a Igreja? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU