04 Mai 2015
"A própria questão dos alimentos mostra com clareza a lógica diferente que anima a perspectiva do mercado e a dos direitos. Segundo a primeira, que incorpora uma definição de justiça baseada no intercâmbio entre equivalentes, é legítimo excluir do acesso a um bem – incluindo os alimentos – aqueles que não têm os recursos para adquiri-lo, enquanto para a segunda "é estrito dever de justiça e verdade impedir que as necessidades humanas fundamentais permaneçam insatisfeitas e que pereçam os homens por elas oprimidos" (João Paulo II, carta encíclica Centesimus Annus, 1991, n. 34)", escrevem Paolo Foglizzo e Chiara Tintori, em editorial publicado na revista Aggiornamenti Sociali, de maio de 2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o editorial da revista dos jesuítas italianos, "um mundo justo, sustentável e convivial precisa aprender a compor melhor a pluralidade de possíveis perspectivas em torno dos alimentos: cada uma é portadora de uma verdade, que, sem ser levada em consideração, é impossível chegar a uma real solução para os problemas; ao contrário, eles se agravam, corroendo aquele capital social e aquela confiança de que até mesmo o mercado – que não é capaz de resolver os problemas sociais, limitando-se a estender a sua lógica – precisa para poder funcionar, mas sem ser capaz de produzi-los".
Eis o texto.
Chegamos. Depois de tantas discussões sobre a sua utilidade, a desorientação gerada pelas investigações judiciais, o temor de não ver realizados os espaços de exposição, a Expo abre as portas.
Muitas são as perspectivas para se olhar para o evento ou para se mover através dos pavilhões (para quem os visitar) e, a partir deles, avaliar os seus resultados. Para aproveitar plenamente as potencialidade e, ao mesmo tempo, governar os seus riscos e as suas possíveis ambiguidades, parece-nos fundamental manter a atenção sobre o tema escolhido pelos organizadores: os alimentos, em toda a sua profundidade e riqueza.
Justamente porque não há homem sem alimentos, este último se presta a se tornar o teste decisivo para fazer uma espécie de checape do estado do nosso mundo e para projetar o nosso olhar e a nossa ação rumo ao objetivo de um desenvolvimento autenticamente humano, que saiba conjugar quantidade e qualidade, equidade e sustentabilidade.
De fato, os alimentos são o campo em que se apoiam as relações fundamentais com as quais é entretecida a vida de cada pessoa e de cada sociedade: podem florescer na direção da vida boa para todos, ou se aparafusar ao longo de percursos contraditórios e de exclusão.
Em primeiro lugar, nos alimentos, cada um experimenta a relação consigo mesmo, com o próprio fato de ser um corpo e com as próprias necessidades fundamentais. A necessidade de nutrição nos lembra da fragilidade da nossa condição e a nossa necessidade de cuidado. O modo pelo qual comemos é um indicador da relação que temos com nós mesmos, como demonstram as cada vez mais difusas patologias que se enraízam em transtornos alimentares.
Os alimentos, além disso, são sinal da relação com os outros habitantes do planeta: não é por acaso que a imagem elementar à qual se recorre para explicar o conceito de justiça distributiva é a de uma torta dividida em partes iguais, sem que ninguém fique com a boca seca enquanto outros se empanturram e desperdiçam.
Não muito diferente é a imagem convivial do banquete, utilizada para falar de relações harmoniosas entre pessoas e grupos sociais, étnicos e religiosos: a mesa posta e o alimento compartilhado sempre desde sempre a representação da paz no seu sentido mais pleno, que não se limite à ausência de guerra.
Ao contrário, precisamente através da mesma imagem "alimentar", podemos focar a unidade profunda de justiça e paz, de equidade e convivialidade. Não se trata de contrapor o "devido" ao "compartilhado" ou ao "doado", mas de tomar consciência de que estamos diante de planos inextricavelmente ligados entre si: não há autêntica convivialidade quando os pratos dos comensais não contêm a mesma comida (em termos de quantidade e de qualidade), e, portanto, a convivialidade incorpora a justiça, que representa a sua base.
Ao mesmo tempo a consciência da igualdade entre os comensais, implícita na demanda de uma justa distribuição, não pode deixar de evoluir na fraternidade e na harmonia convivial.
Os alimentos também são um canal privilegiado da relação da humanidade com o ambiente e com o planeta: tocamos aqui, apenas para citar algumas, a questão da pegada ecológica da cadeia agroalimentar, da biodiversidade, da correta gestão da água, do solo e dos resíduos.
Por fim, desde sempre, os alimentos, justamente por causa do seu íntimo valor simbólico, são um elemento fundamental da experiência religiosa e das suas práticas. Se todas as religiões têm prescrições alimentares, isso vale sumamente para a fé cristã, em que Deus escolhe o alimento como o sacramento do dom de Si mesmo à humanidade.
Os alimentos, portanto, representam uma espécie de alfabeto relacional com o qual podemos traçar o mapa da nossa vida e do mundo contemporâneo, revelando aqueles que o Papa Francisco chamou de os seus "paradoxos" (mensagem de vídeo para o encontro "As ideias da Expo 2015 – Rumo à Carta de Milão", do dia 7 de fevereiro de 2015).
Nestas páginas, indicaremos alguns dos mais evidentes deles, para depois voltar a nossa atenção para as dinâmicas sistêmicas que lhes deram origem. O sucesso da Expo, em termos de autêntico desenvolvimento humano, está ligado não ao número de visitantes, mas ao fato de representar uma oportunidade para enfrentar esses paradoxos e buscar como oferecer uma alimentação justa, sustentável e convivial para todos os habitantes do planeta.
O acesso, o excesso e o desperdício
O paradoxo mais macroscópico é que "há alimentos para todos, mas nem todos podem comer" (ibid.): sabemos disso há décadas, mas isso não pode tornar tal fato evidente ou menos absurdo.
Segundo os dados divulgados pela FAO em 2014 (www.fao.org), o número daqueles que sofrem de fome no mundo diminuiu em mais de 100 milhões na última década e em mais de 200 nos últimos 20, mas as pessoas em estado de desnutrição ainda são 805 milhões: portanto, persiste um problema no acesso aos alimentos, que não faltam, mas estão disponíveis apenas para aqueles que têm meios para comprá-los.
Igualmente paradoxal é o fato de que, no mundo, ao lado de 800 milhões de desnutridos, vivem 500 milhões de obesos e mais de um bilhão de pessoas acima do peso. Cerca de 65% da população mundial vive em países onde as consequências do excesso de alimentos fazem mais vítimas do que a desnutrição.
Fome e obesidade são dois lados da mesma moeda, até mesmo em países da África subsaariana, como Nigéria e Uganda, cronicamente afligidos por desnutrição e carestias. Entram em jogo aqui estilos de vida e escolhas de consumo, muitas vezes desvinculados de efetivas necessidades ou ditadas por condicionamentos aos quais amplas faixas da população não têm os instrumentos para reagir de modo adequadamente crítico.
Por fim, no mundo de hoje, a fome convive com o desperdício de alimentos. A FAO estima que, em nível mundial, ele é igual a 1,3 bilhão de toneladas por ano, cerca de um terço da produção total de alimentos para consumo humano, em um valor de cerca de 750 bilhões de dólares por ano: uma quantidade mais do que suficiente para dar alimentos para os 800 milhões de vítimas da desnutrição.
Nos países pobres, trata-se principalmente de alimentos que são desperdiçados por falta de adequados sistemas de conservação (cadeia do frio, armazéns de estocagem dos cultivos capazes de defendê-los dos parasitas etc.), que causam o seu apodrecimento antes do consumo, agravando a insegurança alimentar das camadas mais pobres da população.
Nas sociedades opulentes, no entanto, a dinâmica do desperdício faz com que sejam jogados fora alimentos ainda perfeitamente comestíveis, agravando, dentre outras coisas, o problema, muitas vezes já complexo, da gestão dos resíduos.
A FAO também estima que, nos países desenvolvidos (Europa, América do Norte e Oceania), o desperdício de alimentos na fase do consumo oscila entre 95 e 115 kg per capite por ano (105 em relação à Itália). Também nesse caso, entra em jogo a capacidade de gerir compras e consumo, em particular onde o custo relativamente modesto dos produtos alimentares torna menos perceptível o dano devido ao desperdício, ao menos em nível individual; mas a questão também põe em causa a organização do sistema de produção e de distribuição dos alimentos, de uma rotulagem dos produtos que torne corretamente compreensíveis as indicações sobre a validade, à possibilidade de dar uma "segunda vida" às remanências no setor da alimentação coletiva (por exemplo, os restos dos restaurantes), à criação de circuitos alternativos para a distribuição dos produtos hortifrutícolas com defeito à vista, mas perfeitos do ponto de vista nutricional.
Mercado, direito e bem comum
Como começamos a entrever, os paradoxos dos alimentos colocam-se na interseção de dinâmicas, como por exemplo o consumo, que se desdobram em uma pluralidade de planos diferentes: individual, social, econômico, político etc. Sob essa luz, eles representam as linhas de falha em que se manifestam as tensões profundas que percorrem o nosso mundo.
Chegamos ao mesmo resultado se refletimos sobre como os alimentos podem ser considerados de modo muito diferente de acordo com o ângulo de visão a partir do qual se olha para eles.
Parecem-nos particularmente relevantes três perspectivas, que correspondem a três lógicas sistêmicas diferentes, com base nas quais regem-se instituições e dinâmicas do mundo contemporâneo.
Em primeiro lugar, os alimentos, sem dúvida, são um produto, e um produto de mercado, uma vez que ao mercado, como instituição econômica e social, é substancialmente confiada a cadeia de produção e distribuição dos alimentos.
Essa fato certamente tem aspectos positivos, particularmente pela inegável capacidade do mercado de estimular a eficiência e, portanto, aumentar a produção: o fato de que a disponibilidade de alimentos no mundo seja, no total, superior às necessidades caracteriza a nossa época, graças ao progresso técnico-econômico que se acumulou ao longo dos séculos, mas não toda a história da humanidade, que, por longos períodos, ao contrário, teve que fazer as contas com uma real penúria alimentar.
No entanto, o mercado é muito menos eficaz do ponto de vista da distribuição, pois é capaz de satisfazer apenas aquelas necessidades que, associando-se a uma capacidade de despesa, transformam-se em demanda. Essa é a raiz do problema do acesso aos alimentos por parte daqueles que são pobres demais para poder comprá-lo, evidenciando a existência de necessidades que o mercado não é estruturalmente capaz de satisfazer e para cuja satisfação é preciso buscar lógicas alternativas.
Na lógica do mercado, os alimentos, assim como qualquer outro produto, são uma ocasião de lucro. Quando a busca do lucro representa o único critério da ação, sem adequados balanços – culturais, normativos, éticos etc. –, ele se torna uma das causas dos paradoxos lembrados antes: a mentalidade consumista que daí deriva, incentiva o mau consumo alimentar, que põe em risco a saúde de muitos, e o desperdício, visto que, sobre o alimento jogado fora, ganha duas vezes, quando é vendido e quando é descartado.
Uma segunda perspectiva lê os alimentos como direito, dentro daquele percurso de elaboração de instrumentos de tutela e promoção da dignidade humana, que deu origem ao corpus dos direitos humanos.
Sobre a questão do direito à alimentação e sobre a ainda insuficiente tutela jurídica de que foza, Filippo Pizzolato refletiu no número de fevereiro da nossa revista ("Il diritto all’alimentazione. Un bisogno fondamentale povero di tutele", em Aggiornamenti Sociali, 2 [2015] 131-141), artigo ao qual remetemos.
É interessante sublinhar, porém, que a própria questão dos alimentos mostra com clareza a lógica diferente que anima a perspectiva do mercado e a dos direitos. Segundo a primeira, que incorpora uma definição de justiça baseada no intercâmbio entre equivalentes, é legítimo excluir do acesso a um bem – incluindo os alimentos – aqueles que não têm os recursos para adquiri-lo, enquanto para a segunda "é estrito dever de justiça e verdade impedir que as necessidades humanas fundamentais permaneçam insatisfeitas e que pereçam os homens por elas oprimidos" (João Paulo II, carta encíclica Centesimus Annus, 1991, n. 34).
Um terceiro olhar reconhece nos alimentos um bem comum da humanidade no seu conjunto, assim como o ambiente e a natureza de que a nossa espécie precisa para sobreviver: portanto, um recurso do qual é preciso encontrar as modalidades de proteção e de desenvolvimento mais corretas, de modo que todos possam usufruir deles, segundo o tradicional princípio da destinação universal dos bens, proposto pela doutrina social da Igreja.
Trata-se de uma lógica a mais a ser composta com as anteriores. O exemplo dos transgênicos ajuda a esclarecer isso. Sem poder aqui entrar na questão – embora crucial – dos possíveis riscos ligados à sua utilização na linha do respeito ao princípio de precaução, limitamo-nos a observar como a sua própria existência repousa em boa parte sobre um aparato jurídico de tutela dos direitos de propriedade intelectual que assegura aos detentores das relativas patentes não apenas lucros muito elevados, mas também um domínio quase absoluto, a ponto de negar às populações e aos países que os cultivam qualquer poder de decisão quanto ao seu uso.
Falaram sobre isso, nas nossas páginas, o cardeal Peter Turkson, presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz ("Per un dialogo autentico sugli OGM", em Aggiornamenti Sociali, 4 [2014] 278-291), e depois Claudio Malagoli ("Brevetto alimentare: una nuova forma di colonialismo?", Aggiornamenti Sociali, 12 [2014] 827-835).
A atual configuração dessa matéria, portanto, não tutela adequadamente a natureza de bem comum dos alimentos, embora permanecendo em aberto a questão sobre como compor essa tutela com a promoção da pesquisa científica e tecnológica.
No setor alimentar, assim como no dos fármacos, "existem formas excessivas de proteção do conhecimento por parte dos países ricos, através de uma utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual" (Bento XVI, carta encíclica Caritas in Veritate, 2009, n. 22).
Um mundo justo, sustentável e convivial precisa aprender a compor melhor a pluralidade de possíveis perspectivas em torno dos alimentos: cada uma é portadora de uma verdade, que, sem ser levada em consideração, é impossível chegar a uma real solução para os problemas; ao contrário, eles se agravam, corroendo aquele capital social e aquela confiança de que até mesmo o mercado – que não é capaz de resolver os problemas sociais, limitando-se a estender a sua lógica – precisa para poder funcionar, mas sem ser capaz de produzi-los.
Um compromisso contra os sofismas
Na mensagem de vídeo já citada do dia 7 de fevereiro, o Papa Francisco recordou como, no mundo de hoje, os alimentos não são apenas terreno de paradoxos, mas também de sofismas, isto é, de argumentações instrumentais, voltadas a despotencializar a carga de injustiça e de desumanização desses paradoxos.
O evento Expo e os milhões de pessoas que vão visitá-lo poderão permanecer prisioneiras deles, ou encontrar uma oportunidade para desmascará-los. Esse é, a nosso ver, o verdadeiro desafio da Expo, o mais difícil de vencer, mas também o que promete deixar uma herança mais relevante no percurso da humanidade rumo a um desenvolvimento equitativo e sustentável.
Para enfrentar esse desafio, a Santa Sé participa da Expo com um pavilhão próprio, enquanto a Cáritas estará presente com um estande próprio e com inúmeras iniciativas, com algumas das quais a nossa revista também irá colaborar.
O compromisso cultural da Aggiornamenti Sociali – propor uma reflexão sobre os paradoxos e sobre os sofismas que circulam quando se fala de alimentos – começou bem antes que fossem abertos os portões da Expo.
As nossas páginas – de papel e virtuais – dos últimos meses rastreiam isso e continuarão a fazê-lo ao longo dos seis meses da exposição, estimulando uma fruição crítica do evento.
Sob essa chave, a Aggiornamenti Sociali optou por apoiar o Protocolo de Milão (www.protocollodimilano.it) e aqueles conteúdos que dele desembocarão na Carta de Milão, um documento que será proposto à assinatura dos países participantes e visitantes.
Trata-se de uma série de compromissos para enfrentar, em nível de escolhas individuais e políticas locais, nacionais e globais, os paradoxos dos alimentos. Nas intenções dos organizadores e do governo italiano, será essa a principal herança da Expo para o mundo. Interessa-nos que ele seja bonito, estimulante e o máximo possível isento de sofismas. Caso contrário, será bem pouco útil.
Também graças ao trabalho dos últimos meses, em vista da Expo, descobrimos que os alimentos não são apenas terreno de paradoxos e de sofismas, mas também de pesquisas e de reflexões sobre valores e boas práticas de alimentação justa, sustentável e convivial, que esperam ser divulgadas e compartilhadas por um número crescente de pessoas.
Por isso, disponibilizamos aquelas encontradas nas diversas iniciativas que organizamos no e-book Le dimensioni del cibo. 12 chiavi per entrare in Expo (disponível aqui, em italiano) e no livro Nutrire il pianeta? Per un’alimentazione sostenibile, giusta, conviviale (organizado por Matteo Mascia e Chiara Tintori, Ed. Bruno Mondadori, Milão, 2015), que apresentaremos na Expo no dia 13 de junho.
Para manter a promessa de mudar o mundo, boas análises, boas reflexões e boas práticas representam um recurso irrenunciável, que, para desdobrar as suas potencialidades, requerem o empenho de todos para se traduzirem em boas políticas e boas normas, voltando a soldar em um ciclo virtuoso o nível das escolhas pessoais de estilo de vida com o da construção de estruturas sociais mais justas e sustentáveis para todos, hoje e amanhã.
Interessa-nos que um evento como a Expo não se resolva na fruição individualizada daqueles que a visitarão, mas ponha em movimento percursos coletivos, também em escala global, nessa direção.
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Expo Milão: os alimentos para além dos sofismas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU