Por: Jonas | 30 Outubro 2014
“Kobane é agora um peão crucial em um jogo impiedoso manipulado por Washington, Ancara e Erbil. Nenhum desses atores quer que o experimento de democracia direta em Kobane e Rojava tenha êxito, seja expandido e comece a ser conhecido em todo o Sul Global”, escreve Pepe Escobar, em artigo publicado por Rebelión, 28-10-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
As valorosas mulheres de Kobane – onde curdos sírios combatem desesperadamente contra o Estado Islâmico (ISIS) – estão a ponto de ser traídas pela “comunidade internacional”. Estas guerreiras também combatem, além dos terroristas do califa Ibrahim, os planos traiçoeiros dos Estados Unidos. Turquia e da administração do Curdistão iraquiano. O que realmente ocorre em Kobane?
Comecemos falando de Rojava. O verdadeiro significado de Rojava – as três províncias de maioria curda do norte da Síria – é transmitido no editorial (em turco) publicado pelo ativista encarcerado Kenan Kirkaya. Nele, argumenta que Rojava é o local de um “modelo revolucionário que desafia nada mais e nada menos do que ‘a hegemonia do sistema capitalista, de estado-nação’ – indo muito mais além de seu significado regional ‘para curdos, sírios ou para o Curdistão’”.
Kobane – uma região agrícola – está no epicentro deste experimento não violento de democracia, possibilitado por um acordo no início da tragédia síria entre Damasco e Rojava (não apoiem a mudança de regime contra nós, e os deixaremos tranquilos). Aqui, por exemplo, argumenta-se que “inclusive se apenas um único aspecto de um verdadeiro socialismo pudesse sobreviver ali, milhões de descontentes seriam atraídos para Kobane”.
Em Rojava, a tomada de decisões acontece por meio de assembleias populares – multiculturais e multireligiosas. Os três máximos funcionários em cada municipalidade são um curdo, um árabe e um cristão assírio ou armênio; e pelo menos um destes três deve ser mulher.
As minorias não curdas têm suas próprias instituições e falam seus próprios idiomas. Entre uma grande porção de conselhos de mulheres e jovens, também há um famoso exército feminista, a milícia Estrela YJA (“União de mulheres livres”, e a estrela simboliza a deusa mesopotâmica Ishtar).
O simbolismo não poderia ser mais representativo: pensem nas forças de Ishtar (Mesopotâmia) combatendo contra as forças do ISIS (originalmente uma deusa egípcia), convertida em um califado intolerante. No jovem Século XXI, as barricadas femininas de Kobane se encontram na vanguarda da luta contra o fascismo.
Inevitavelmente, deveria haver um bom número de pontos de intersecção entre as Brigadas Internacionais combatendo o fascismo na Espanha, em 1936, e o que está acontecendo em Rojava, conforme destaca um dos pouquíssimos artigos a esse respeito, publicados nos meios de comunicação dominantes ocidentais.
Por si, estes componentes não bastaram para enlouquecer wahhabis e takfiris profundamente intolerantes (e seus poderosos patrocinadores em petrodólares do Golfo). Existe a situação política geral.
A luta em Rojava é dirigida essencialmente pelo PYD, que é o ramo sírio do PKK turco, as guerrilhas marxistas em guerra contra Ancara, desde os anos 1970. Washington, Bruxelas e a OTAN – sob permanente pressão turca – sempre associaram o PYD e o PKK aos “terroristas”.
Um cuidadoso exame do indispensável livro do líder do PKK Abdullah Öcalan, “Confederalismo democrático”, revela que essa equação terrorista/estalinista é um engano (Öcalan está confinado na ilha-prisão de Imrali desde 1999).
O que o PKK e o PYD buscam é o “municipalismo libertário”. De fato, é exatamente o que Rojava tem buscado: comunidades autogovernadas que aplicam a democracia direta, utilizando como pilares conselhos, assembleias populares, cooperativas dirigidas pelos trabalhadores – e defendidas por milícias populares. Daí, o posicionamento de Rojava na vanguarda de um movimento mundial de economia/democracia cooperativa, cujo objetivo em última instância seria deixar de lado o conceito de estado-nação.
Este experimento não apenas tem lugar politicamente no norte da Síria. Em termos militares, foram o PKK e o PYD os que realmente conseguiram resgatar essas dezenas de milhares de yazidis acurralados pelo EI/ISIS no Monte Sinjar, e não as bombas estadunidenses, como diziam os meios de informação dominantes. E agora, como detalha a copresidente do PYD, Asya Abdullah, o que se requer é um “corredor” para arrombar o lugar de Kobane pelos terroristas do califa Ibrahim.
As tramas do sultão Erdogan
Ancara, enquanto isso, parece propor prolongar uma política de “muitos problemas com nossos vizinhos”.
Para o Ministro de Defesa turco, Ismet Yilmaz, “a principal causa do EI é o regime sírio”. E o Primeiro Ministro, Ahmet Davutoglu – que agora inventou a defunta doutrina de “zero problemas com nossos vizinhos” para começar –, enfatizou repetidamente que Ancara somente intervirá com tropas, em Kobane, para defender os curdos, se Washington apresentar um “plano pós-Assad”.
E depois existe um personagem que ultrapassa a realidade: o Presidente turco Tayyip Erdogan, conhecido também como sultão Erdogan.
Os decretos do sultão Erdogan são bem conhecidos. Os curdos sírios devem combater contra Damasco, sob o comando dessa ficção decadente: o Exército Livre Sírio (que deve ser treinado, precisamente, na Arábia Saudita); devem deixar de lado qualquer ideia de autonomia; devem aceitar docilmente a solicitude turca de que Washington confia em uma zona de exclusão aérea sobre a Síria e também uma fronteira “assegurada” no território sírio. Não é surpreendente que tanto o PYD como Washington tenham rejeitado essas demandas.
Sultão Erdogan propôs relançar o processo de paz com o PKK; e quer conduzi-lo a partir de uma posição de força. Até agora sua única concessão foi permitir que peshmergas curdos iraquianos entrassem no norte da Síria, como contrapeso para as milícias do PYD-PKK, e impedir dessa maneira o fortalecimento de um eixo curdo anti-turco.
Ao mesmo tempo, sultão Erdogan sabe que o EI/ISIS já recrutou até 1.000 donos de passaportes turcos – e que a quantidade continua aumentando. Seu pesadelo adicional é que a mistura venenosa que destrói “Siraq” se estenda poderosamente, cedo ou tarde, dentro das fronteiras turcas.
Cuidado com estes bárbaros nas portas
Os terroristas do califa Ibrahim já telegrafaram sua intenção de massacrar e/ou escravizar toda a população civil de Kobane. No entanto, Kobane, por si, não tem nenhum valor estratégico para o EI/ISISW (é o que o próprio Secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, disse na semana passada; porém depois, previsivelmente, retratou-se). No entanto, a muito persuasiva comandante do PYD é plenamente consciente da ameaça do EI/ISIS.
Kobane não é essencial em comparação a Deir ez-Zor (que tem um aeroporto que atende ao Exército Árabe Sírio) ou Al-Hasakah (que tem campos petrolíferos controlados por curdos com a ajuda do Exército Árabe Sírio). Kobane não tem aeroporto, nem campos petrolíferos.
Por outro lado, a queda de Kobane geraria uma imensa publicidade positiva adicional para o muito hábil empreendimento do Califa, ampliando a percepção de um exército vitorioso, especialmente entre novos potenciais recrutas, com passaportes da União Europeia, assim como estabelecendo uma sólida base muito próxima da fronteira turca.
Essencialmente, o que o sultão Erdogan está fazendo é combater tanto a Damasco (a longo prazo) como os curdos (a médio prazo), ao passo que realmente confere via livre (a curto prazo) ao EI/ISIS. E, no entanto, mais adiante, o jornalista turco Fehim Tastekin tem razão: o treinamento de inexistentes rebeldes sírios “moderados” na tão democrática Arábia Saudita, apenas conduzirá à paquistanização da Turquia. Um remix – de novo – do cenário ocorrido durante a jihad afegã dos anos 1980.
Se em si isto já não fosse suficientemente confuso, em uma mudança do terreno de jogo – revertendo seu dogma “terrorista” –, Washington mantém agora um acordo cordial com o PYD. E isso apresenta uma dor de cabeça adicional para o sultão Erdogan.
Ainda existe o dar e receber entre Washington e o PYD. No entanto, alguns fatos dizem tudo: mais bombardeios dos Estados Unidos, mais lançamentos do ar pelos Estados Unidos (incluindo grandes lançamentos pelo ar fracassados, onde as novas armas acabam ficando nas mãos dos terroristas do Califa).
Não se deve esquecer um fato chave. Enquanto o PYD foi mais ou menos “reconhecido” por Washington, o chefe do PYD, Saleh Muslim, foi se reunir com o astuto líder do Governo Regional do Curdistão (KRG), Masoud Barzani. Nessa ocasião, o PYD prometeu “compartilhar o poder” com os peshmergas de Barzani no governo de Rojava.
Os curdos sírios que foram obrigados a abandonar Kobane e a se exilar na Turquia, e que apoiam ao PYD, não podem voltar à Síria; mas curdos iraquianos podem ir e voltar. Este suspeitoso acordo foi negociado pelo chefe de inteligência do KRG, Lahur Talabani. O KRG, crucialmente, relaciona-se muito bem com Ancara.
Isto lança mais luz sobre o jogo de Erdogan: quer que os peshmergas – que são ferozes inimigos do PKK – tornem-se a vanguarda contra o EI/ISIS e que, dessa forma, enfraqueça a aliança PYD/PKK. Mais uma vez, a Turquia usa curdos contra curdos.
Washington, por sua parte, está manipulando Kobane para legitimar completamente – utilizando uma veia “humanitária” R2P (Responsabilidade de proteger) – sua cruzada contra o EI/ISIS. Nunca se recorda suficientemente que todo o assunto começou por um bombardeio enviesado de Washington sobre a preparação pelo espúrio, fantasmal, grupo de Jorasán de um novo 11-S. Jorasán, previsivelmente, desapareceu por completo do ciclo de notícias.
Em longo prazo, a tramoia estadunidense é uma séria ameaça para o experimento de democracia direta em Rojava, que Washington apenas pode interpretar como – Deus nos livre! – um retorno do comunismo.
Portanto, Kobane é agora um peão crucial em um jogo impiedoso manipulado por Washington, Ancara e Erbil. Nenhum desses atores quer que o experimento de democracia direta em Kobane e Rojava tenha êxito, seja expandido e comece a ser conhecido em todo o Sul Global. As mulheres de Kobane correm um perigo mortal de ser, se não escravizadas, cruelmente traídas.
E o assunto se torna ainda mais sinistro quando a ação do EI/ISIS em Kobane é vista essencialmente pelo que é: uma tática diversa, um trampolim para o governo de Obama. Na realidade, os terroristas do Califa apontam para a província Al-Anbar no Iraque – que já controlam em grande parte – e ao crucial cinturão de Bagdá. Os bárbaros estão nas portas, não apenas de Kobane, mas também de Bagdá.
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O mistério de Kobane - Instituto Humanitas Unisinos - IHU