29 Setembro 2014
Liderada por candidatas que fizeram carreira política longe das máquinas partidárias dos Estados, a corrida eleitoral pode marcar uma inflexão importante no presidencialismo, avalia o cientista político e historiador Luiz Felipe de Alencastro. Se Aécio Neves não reverter a queda em intenções de votos, o segundo turno não terá candidato tucano pela primeira vez desde 1989, e o único candidato formado na política dos Estados (após a morte de Eduardo Campos, que também tinha essa origem) estará fora da disputa. Alencastro observa que Marina Silva se formou politicamente na luta ambientalista e no período em que foi ministra do governo Lula. Em sua opinião, aquela possibilidade tenderia a reforçar o federalismo no país, reduzindo o peso dos Estados mais importantes na formação de futuros eventuais presidentes, e abriria caminho para uma renovação política.
A entrevista é de Diego Viana, publicada pelo jornal Valor, 26-09-2014.
Na entrevista Alencastro criticou a ausência da política externa como tema de debate entre os candidatos à Presidência. Após o empenho do governo de Luiz Inácio Lula da Silva para expandir a presença do Brasil na geopolítica global, sua sucessora recuou, disse e deu-se um "apagão". Também falou sobre a ascensão de Marina Silva nas pesquisas, o significado de episódios de racismo e as manifestações de rua do ano passado.
Alencastro retornou ao país neste mês, após uma carreira como professor de história do Brasil na Universidade Sorbonne (Paris IV). O Centro de Estudos do Brasil e do Atlântico Sul, que dirigia, associado à sua cátedra, está sendo transferido para o Brasil. Terá sede na Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, onde Alencastro é professor titular.
Eis a entrevista.
Temos a perspectiva, pela primeira vez desde 1989, de um segundo turno sem o PSDB. O que isso significa?
O presidencialismo no Brasil mudou. O presidencialismo paradigmático é aquele em que os presidentes costumam sair de uma base estadual. É assim nos EUA e foi assim no Brasil antes da ditadura. Juscelino foi prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais. Jânio Quadros, prefeito e governador de São Paulo. Aécio Neves é de Minas, base regional. Se ele ficar fora do segundo turno, teremos Marina Silva e a presidente Dilma Rousseff, que não vêm desse paradigma. Os Estados desapareceriam como centro da política, algo que vem desde a formação do Brasil como Estado nacional. A contrapartida será abrir o quadro para uma renovação muito forte da política brasileira, como já se vê pelo fenômeno extraordinário de termos duas mulheres disputando a Presidência, uma delas negra. Isso dá prova do dinamismo da política brasileira.
Além da subida de Marina, um efeito da morte de Eduardo Campos foi a redução drástica do índice de indecisos.
Dilma vai para o segundo turno sem reserva de votos. Se, no quadro anterior, a eleição fosse para o segundo turno, uma parte dos votos de Campos ia para Dilma. Agora, os votos do Aécio vão todos para Marina. Não ter essa reserva é um problema grave para Dilma. Quanto a Aécio, os estragos em sua campanha, com o descolamento de cabos eleitorais no interior e a rarefação das fontes de financiamento, me parecem irreversíveis, apesar da recente melhora em intenções de voto.
Depois do impulso inicial, a subida de Marina parece ter estagnado, reabrindo o leque de possibilidades.
É importante ter um segundo turno. O Brasil é um país complicado e merece essa discussão. No primeiro turno, como se diz, candidatos são eliminados. O presidente é escolhido no segundo. Marina promete reduzir o Estado, mas também se empenharia na política social, o que é contraditório. Mas me preocupa o fato de ela não ter sido capaz de montar um partido político. Ela vem de um fiasco inicial que o destino mudou de maneira espetacular, o que certamente reforçou nela a ideia da mão do destino, mas sua própria base política, e agora a organização do programa de governo, está mostrando que há contradições.
Marina tem sido criticada por voltar atrás em várias posições. Isso afeta o eleitorado?
Marina tem repetido a ideia de governar com os homens de bem. "Homens de bem" é um conceito ingênuo, mas também perigoso. De repente, durante o governo, ela descobre que seus assessores não são homens tão de bem como pensava, porque ninguém sabe bem o que é isso. O que Marina vai fazer? Essa expressão passa também a ideia de um país sem conflito, sem grupos sociais com visões profundamente divergentes. É despolitizante. Ela vai ser presidente de um país dividido, com interesses conflitantes. Isso é normal num país complexo. Um país onde os interesses não se exprimam no jogo institucional ou é ditadura ou é um país passivo diante do Estado.
Não haveria uma despolitização anterior? Dilma, por exemplo, foi eleita como gerente, e não por causa de habilidades políticas.
Por que Lula decidiu sozinho, impôs, não teve convenção, nem nada. É claro, já tem uma despolitização. O PT foi decapitado também. Hoje, o puxador de voto do PT em São Paulo é o Andrés Sanchez, ex-presidente do Corinthians. Não tem liderança política. O mensalão decapitou o partido. Não surgiu outra liderança com experiência política. A única liderança que apareceu foi o [Fernando] Haddad, e ainda dando cotovelada para abrir espaço dentro do PT.
Ainda assim, a conquista da Prefeitura de São Paulo é considerada uma grande vitória para o PT.
A eleição de Haddad em 2012 desequilibrou a política nacional, porque está ligada a uma mudança. Imediatamente, colocou Eduardo Campos na corrida sucessória, rompendo com o PT. Campos viu que vinha uma nova geração e ele não seria o candidato natural à sucessão de Lula. Se Haddad fizer dois bons mandatos de prefeito, ganha notoriedade nacional. Por isso o cerco em cima dele, as ações nos tribunais contra o IPTU progressivo.
O eleitorado conservador parece ter visto em Marina Silva uma tábua de salvação quando o PSDB entrou em crise.
É um desastre para o Brasil a derrocada do PSDB, um partido de governo, que tem a experiência do Estado. É por isso que nunca houve aliança entre PT e PSDB. A polarização, que parece arcaica, expressa o fato de que os dois partidos têm uma concepção diferente do Estado, e por isso não se aliam. O PMDB e outros partidos se alinham com todo mundo porque não têm concepção nenhuma.
Por que o eleitor conservador precisa de tábua de salvação? Não tem um quadro próprio capaz de gerir o país?
Isso é exemplarmente demonstrado na declaração do Agripino Maia (DEM-RN), coordenador da campanha de Aécio, quando diz que o principal objetivo é levar o tucano ao segundo turno e, se não puder, tudo contra o mal maior, que é o PT. Essa frase é rústica, uma forma primária de fazer política. Qual é seu programa de governo? É tudo contra o PT. O Clube Militar expressou um sentimento semelhante recentemente.
Marina pode ser classificada como anti-PT?
Marina diz que não faz política tradicional, mas foi muito hábil. Logo que saiu candidata, ela disse: "Não vou me candidatar a um segundo mandato". Essa foi a regra que Aécio tinha exigido de Campos. Os dois se declararam contra a reeleição e foram criticados, mas para eles era fundamental. Era a chance de um herdar os votos do outro no segundo turno e depois passar a chance ao fim do mandato.
Não seria um acordo fácil de romper?
Sim, mas o interessante é que Marina fez o mesmo acordo sem dar declarações tonitruantes contra a reeleição. Fez a politicagem mais eficaz, e com toda a razão. Mas não se recusa ao jogo político de jeito nenhum.
Pelo que o senhor está dizendo, ela anunciou que seu mandato vai ser um tampão.
O que é uma grande ilusão, porque, fora do governo, o PT vai ser um grande partido de oposição. Vai desabar aqui e lá, mas vai se reestruturar. Marina é uma liderança carismática vinda de um partido tão pequeno que não conseguiu se viabilizar. Ela se instalou num partido maior, que não é seu. Esses ingredientes estavam presentes nas crises de 1961 e 1992. Por isso, não me parece absurdo lembrar Jânio Quadros e Fernando Collor.
O governo Dilma mexeu em vários pontos da economia, como a redução dos juros, as concessões na infraestrutura e a desoneração da indústria, sem que houvesse progressos reais. O arsenal se esgotou?
A política de juros falhou e isso foi fundamental para o resto afundar. Mas algumas coisas estão andando, como o pré-sal. Fala-se muito da Petrobras, mas a produção aumenta regularmente. A ferrovia Norte-Sul vai destravar o interior, que terá acesso ao mar. Vamos, finalmente, ter ferrovias. Os aeroportos deram certo. O governo errou muito com a taxa de retorno das rodovias. Travou tudo. Quando soltou, nos aeroportos, foi adiante. Outro erro é que Dilma continua na política anticíclica, que era boa quando os preços das exportações estavam altos. Não podia continuar, muita gente avisou, e agora o ministro Guido Mantega, que perdeu a credibilidade há tempos, transmite mensagens de otimismo inapropriadas. O papel do ministro não é fazer "wishful thinking".
A política externa tinha ganhado em importância com Lula, que se esforçou para elevar a posição internacional do Brasil. O governo Dilma parece ter voltado atrás nessa estratégia.
Dilma provocou um apagão na política externa. Colocou como ministro das Relações Exteriores alguém com quem ela não se entendia, o [Antonio] Patriota. Quando foi aos EUA, em abril de 2012, chegou lá e o Congresso estava em recesso. Fechado. Nem a imprensa brasileira, que era contra Dilma, se deu conta de que ela foi lá durante um recesso: como o Itamaraty organizou a visita assim? É como chegar a Brasília no mês de janeiro. Por outro lado, ela reagiu muito bem ao não ir na visita de Estado americana. Dilma reagiu nesse embalo, mas não tem uma política articulada. Coisas como a criação do banco dos Brics, por exemplo, já eram questões antigas. Dilma nunca deu uma entrevista coletiva para correspondentes estrangeiros sobre política externa, separando os grandes assuntos, como fazem em outros países.
Correspondentes estrangeiros têm manifestado estranheza com a ausência da política externa nos debates presidenciais. O senhor tem a mesma impressão?
A grande lacuna do debate é a política externa. O primeiro parceiro comercial do Brasil é a China e ninguém aqui sabe nada sobre a China. Há poucos especialistas em China no Brasil. Demorou 40 anos para aparecer o ensino da África aqui, quando já estava na cara que os portugueses iam dar com os burros n'água no começo dos anos 1960 e que esses países lusófonos estariam em contato com o Brasil de novo. Espero que não demore tanto para estudarmos a China.
Como lhe parece a política externa nos cálculos políticos dos candidatos?
Não conta nada. Mas o presidente da República é chefe da sexta maior economia do mundo, está no G20 e toma decisões inclusive sobre casos como o da Argentina, país que está acuado por um juiz de segunda instância nos EUA. Aécio, por exemplo, não tem a menor noção do tema, nunca abriu a boca a respeito, não fez uma viagem ao exterior. Fernando Henrique Cardoso tinha uma rede internacional por causa da universidade e Lula, por causa do movimento sindical.
Naturalmente, há jornais e aparelhos políticos europeus querendo se aliar a conservadores brasileiros e dariam espaço para alguém que chegasse lá. Não há uma foto de Aécio com conservadores europeus.
E quanto a Marina?
É a mesma ausência de articulação. A bandeira do meio ambiente, em que o Brasil tem posição de destaque, com a defesa da Amazônia, é um tema de interesse mundial e ela é uma militante de base. Foi convidada na Olimpíada de Londres para desfilar, foi a única brasileira. Há gente no mundo todo interessada no que ela tem para dizer, mas ela não coloca em debate a política externa.
O eleitor não se interessa por política externa, os candidatos tampouco, o governo menos ainda...
O país sofre com isso. É uma questão de desinteresse e incompreensão. Dilma tinha um posto-chave no governo Lula, não podia ter deixado o tema tomar esse rumo. Quando [o embaixador] Roberto Azevedo foi eleito presidente da Organização Mundial do Comércio, vários países votaram nele porque era o Brasil de Lula, e houve gente que reclamou porque ela não ligou para agradecer. O Brasil arrancou a presidência da FAO, da OMC, Olimpíada, Copa do Mundo, por quê? Porque estava presente e ativo.
Uma crítica diz respeito à recusa em fechar tratados bilaterais de comércio.
Isso é para ser comido em fatias. Os tratados, hoje, se organizam em bloco. O Brasil é muito pequeno, viraria aperitivo de grandes. A Europa e os EUA estão organizando o Tratado do Atlântico Norte. A China está organizando a Ásia e engole parte da América Latina. O Brasil podia jogar no Atlântico Sul, na África, destravar o Mercosul. A alternativa de acordo bilateral é boa para o México, uma economia reflexa da economia americana.
O senhor fez uma célebre defesa das cotas raciais nas universidades, no STF, em 2010. Como avalia o que ocorreu de lá para cá?
Na época, argumentava-se que as cotas criariam conflitos. E não há conflito. Há mais conflito com o trote do que com alunos negros. Os estudantes receberam essa novidade pacificamente. Tem sido um sucesso. A coisa mais visível para quem não morava no Brasil, progressivamente, é a presença da população negra em postos de classe média.
Como interpreta o xingamento racista ao goleiro Aranha, do Santos, e a expulsão de estudantes mineiros que protagonizaram um trote racista?
Isso é típico. Indica que a sociedade aceitou que o conflito racial existe. Como no romance "Gabriela, Cravo e Canela", de Jorge Amado. O marido mata a mulher por adultério e não é inocentado: vai preso. Isso é uma ruptura na cultura jurídica machista. Fazer um insulto racista e ser posto diante das consequências penais do ato é novidade. E choca. Cria-se a ruptura na história do direito civil. Como o motorista que pegou 92 anos de cadeia por dirigir bêbado e matar três pessoas. A estupefação da família da moça que fez o insulto racista reflete isso.
Vivendo em Paris na época, como o senhor acompanhou o que ocorria no Brasil em junho de 2013?
Estamos entrando no pós-colonialismo. A polícia colonial é essa que se conhece, porque quando é para bater em pobre e negro, é pancada pura. A polícia está tendo que aprender, como a África do Sul depois do apartheid. Recentemente, dois policiais militares que se recusaram a atacar uma manifestação, porque poria vidas em risco, foram absolvidos pela Justiça Militar. Tinham sido presos por desobedecer aos comandantes e foram inocentados. Isso é um debate típico do pós-colonialismo., e me lembra [Nelson] Mandela com a polícia do apartheid, dizendo: "Não atirem mais"! Em maio de 1968, isso foi uma virada na França. As manifestações lá são violentas e as pessoas diziam: "A polícia não atira nos filhos da burguesia". Sete anos antes, em 1961, a polícia matara centenas de argelinos durante uma manifestação em Paris, muitos deles afogados no Sena. Era uma polícia colonialista.
O senhor está dizendo que há um movimento consistente de superação da violência policial no Brasil?
Acho que sim. É um momento histórico, de ruptura. Ter uma polícia que não sai mais atirando é um contraste que deve ser cada vez mais marcado. Diante do Masp [Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista, lugar usual de manifestações] não morre ninguém, mas dez quilômetros adiante morrem três ou quatro.
A mudança histórica não viria quando dez quilômetros adiante também não morressem?
Claro, mas criar o contraste nítido é importante. Pense, por exemplo, na emenda constitucional que estendeu os direitos trabalhistas dos trabalhadores domésticos. O substantivo já diz tudo. As domésticas têm sido há séculos sinônimo de exploração de trabalho adolescente, feminino, de negação de direitos sociais. A mudança na lei marca uma etapa de civilização pós-colonial, como a educação dos PMs para controlarem manifestações sem brutalidade.
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"Estamos entrando no pós-colonialismo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU