Por: Jonas | 10 Setembro 2014
Uma mostra do narcisismo social ou apenas moda passageira? Belén Igarzábal (foto), especialista em Psicologia e Comunicação, esmiúça os significados culturais daquilo que já é considerado o fenômeno do ano. A intimidade como espetáculo, a nebulosa fronteira entre o real e o virtual.
A reportagem-entrevista é de Mariana Carbajal, publicada por Página/12, 07-09-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/sjGEQu |
Com a expansão dos celulares com câmera, conectados à Internet, a moda dos selfies se impôs e se consolidou neste ano. Desde o papa Francisco e o presidente Obama, líderes políticos, celebridades, gente sem fama, até astronautas em missão espacial, cada vez mais pessoas registram o seu aqui e agora, sozinhas ou acompanhadas, para depois postar e fazer circular seu autorretrato pelas redes sociais instantaneamente.
O fenômeno chegou a tal ponto que, em 2013, no mundo foram publicados cerca de um milhão de selfies por dia, conforme revelou um recente informe. Uma das últimas tendências são os selfies extremos, uma imagem de um lugar inóspito e bem perigoso. Várias empresas já usam este furor dos autorretratos para promover seus produtos. Já não é necessário espiar pelo buraco da fechadura: a porta se abre sozinha para exibir cenas que antes ficavam no âmbito da privacidade.
Porém, não são poucas as pessoas – e mais homens do que mulheres – que sempre retocam seus selfies antes de publicá-los, procurando construir uma identidade, um perfil, um corpo desejado. Na era da intimidade como espetáculo, “construo minha imagem e a publico”, reflete Belén Igarzábal, diretora da área de Comunicação e Cultura da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais).
“E, aí, existe algo muito forte que tem a ver com a exposição constante do eu e com a visão do outro. Hoje, essa visão se torna exponencial. Não somente pelo que eu publico, mas também pelo que publicam de mim. É assim o modo como o selfie age sobre o problema do eu, do outro e desse olhar que me completa”, acrescenta a pesquisadora. O autorretrato não seria o que é sem os comentários que se espera que apareçam imediatamente. O que expressa a irrupção e apogeu dos selfies sobre nossa cultura? São os sinais de uma sociedade cada vez mais narcisista ou apenas se trata de uma moda passageira? Igarzábal analisa e esmiúça o tema, em uma entrevista ao jornal Página/12 que, como não poderia deixar de ser, registrou-se em um autorretrato.
Igarzábal é psicóloga, fez Mestrado em Jornalismo e está concluindo sua tese de doutorado sobre Psicologia e Comunicação. Pesquisa, entre outros enfoques, o devir das redes sociais. “As fotos tomadas como autorretrato existem desde que nasceram as câmeras de fotos. O registro de se tirar uma foto de si mesmo com alguém ou em um determinado lugar não é algo novo. O que é novo é a capacidade de circulação imediata dessas fotos. Daí, que os selfies são autorretratos que se pode postar e circular pelas redes sociais, instantaneamente. O auge tem a ver com os telefones celulares, dispositivos portáteis que nos acompanham a cada momento e que tem mais de 100% de penetração em nosso país (Argentina). E mais ainda, com o aumento da utilização dos smartphones. Jovens e adultos, todos, têm um celular com possibilidade de tirar fotos e fazê-las circular na Internet e redes sociais, no mesmo instante em que se tira a foto”, destaca Igarzábal.
Um estudo de Techinfographics.com mostrou, dias atrás, alguns dados sobre esta tendência. Dos milhões de selfies postados por dia, ao longo do ano passado, 14% foram retocados digitalmente. Entre os números apresentados, 36% das pessoas admitiram que alteraram seus selfies. Contudo, foram mais homens do que mulheres os que admitiram apelar para esse truque, sempre antes de postá-los nas redes sociais. Entre os homens, 34% disseram que retocam cada selfie, ao passo que essa porcentagem chega a apenas 13% entre as mulheres. Em relação às redes sociais, por onde circulam mais autorretratos, o Facebook lidera o ranking, com 48% dos selfies, seguido por WhatApp (27%), Twitter (9%) e Instagram (8%). O estudo destacou que os selfies representam 30% das fotos adotadas por pessoas com idades entre os 18 e 24 anos.
- Alguns falam do fenômeno social do ano. É tanto assim?
- Sim, pode ser. Um ano foi o Facebook; em 2012, foi dito que era o Twitter. Este ano, a moda dos selfies. Pode ser, mas não me parece um fenômeno tão novo, que signifique uma mudança nas formas de comunicação. É algo que existia, entrou na moda e se tornou massivo. Isso, sim. É uma moda que explodiu. De qualquer forma, não significa que não seja um fenômeno totalmente representativo de nossa cultura atual – opina Igarzábal.
O selfie grupal mais famoso e retuitado na história dessa rede social se deu na última entrega dos prêmios Oscar, pela apresentadora de televisão Ellen DeGeneres. Diante da câmera de seu celular, juntaram-se estrelas de Hollywood, como Meryl Streep, Brad Pitt, Angelina Jolie e Julia Roberts. Em alguns segundos, a imagem estava no Twitter, e em menos de 50 minutos já havia batido o recorde de retuítes, superando a marca que, até então, ostentava o selfie postado pelo presidente estadunidense Barack Obama, ao vencer, em 2012, pela segunda vez, as eleições dos Estados Unidos. Nela, abraçava sua esposa, Michelle Obama. Até aquele momento, havia sido retuitada 778.329 vezes. Na manhã seguinte da entrega dos Oscar, a imagem havia sido retuitada mais de dois milhões e meio de vezes.
Outro selfie famoso, e que gerou bastante polêmica na Casa Branca, foi também de Obama, no funeral de Nelson Mandela, junto com o primeiro-ministro britânico, David Cameron, e sua par dinamarquesa Helle Thorning-Schmidt.
Selfies dos pés, com boca sedutora, com olhos de surpresa, cara de sapo, em fazendas e áreas rurais, individuais ou grupais, a moda dos autorretratos foi variando vertiginosamente. A última moda parece ser a de tirar autorretratos em lugares extremos: ultrapassar os limites é a consigna para se mostrar ao mundo.
Para Igarzábal, esta tendência está relacionada a um fenômeno maior, que tem a ver com as características de nossa sociedade atual. “A partir da modernidade, da constituição das grandes cidades, estabeleceu-se uma divisão muito mais rígida entre o espaço público e o privado. Começou a existir uma divisão mais marcada entre o público e o privado e, consequentemente, um retraimento para o interior do lar e uma fragilização da participação do espaço público real..., ainda que a divisão real/virtual não me agrade, porque o virtual também é real. E também existiria uma pergunta prévia que é: o que é a realidade? E como tudo é recorte, relato. Porém, esse é outro tema mais longo. Então, a partir das novas tecnologias e da Internet, as paredes dos lares, das instituições, da escola, tornam-se porosas e a ‘realidade externa’ começa a penetrar e a realidade ‘interna/privada’ começa a vazar e se mostrar no espaço público”, destaca a pesquisadora da Flacso, titular da área de Comunicação e Cultura.
Inclusive, não apenas pela Internet, já a partir da televisão, a partir dos meios de comunicação de massa, começa a se exibir a intimidade. O êxito dos reality shows tem a ver com isso, aponta. “Por um lado, por questões mais psicológicas do prazer de olhar e de se exibir, mas também com este fenômeno de olhar pelo buraco da fechadura o que faz o vizinho, coisa que não tenho acesso nesta forma de vida urbana que se massificou. O reality mostra o ‘homem comum’, em sua cotidianidade - ainda que seja em uma casa artificial -. Em seguida, as redes sociais vêm permitir essa exibição da intimidade para todos os que possuam um dispositivo de registro e distribuição. Isto se complementa com este fenômeno que também as tecnologias e Internet permitem, em que todos nós somos produtores de conteúdos. Então, são vários fatores: o tecnológico que permite ser produtor de conteúdo, e nesse conteúdo me expor e me mostrar... e, é claro, olhar o outro”, analisa Igarzábal.
- Na maioria das pessoas, há uma necessidade de registro de tudo...?
- Sim, claro. O desejo de controle do mundo – desde a ciência moderna até o serviço meteorológico – também tem a ver com a possibilidade de registro e imortalização de todo momento. Se o registro, é meu e é eterno.
- O que está em jogo em um selfie?
Um selfie é um recorte de minha identidade. É algo que quero contar. Tudo é recorte. Tanto o que eu digo, como o que escrevo e o que mostro. O selfie é uma narração em imagem e conta algo de mim. O que importa é mostrar um estado e ânimo, o registro de haver estado em um lugar ou com uma pessoa determinada. Não é apenas uma paisagem, é o registro de que a pessoa esteve ali. E há algo em tirar a foto no próprio momento em que está acontecendo uma experiência. A prática de tirar a foto atravessa a experiência e a modifica, especialmente por meio do compartilhar - receber comentários ou expor comentários -. A foto faz parte da experiência. Não é como antes, quando se registrava um fato que era mostrado depois. Hoje, o registro dessa situação faz parte e modifica a própria situação. Inclusive, complementa-a com o ausente, nesse mesmo momento. Com outro que, nesse momento, não está fisicamente presente, mas que comenta, retuita ou curte.
De qualquer forma, adverte Igarzábal, há diferenças nos tipos de selfies. Pode-se dizer que existe o selfie de registro de um lugar, onde pode aparecer o rosto, mas também os pés ou as mãos. É o registro de que a pessoa esteve ali. Também existe o autógrafo visual com o famoso. “E também o autorretrato somente com a exposição do eu, de um estado de ânimo, de um sorriso, de um beijo. E nisso existe algo muito forte que tem a ver com a exposição constante do eu e com o olhar do outro”, disse.
- É como se esse olhar terminasse de retocar o autorretrato...
- O olhar do outro é fundamental na constituição do eu. Desde a mãe, pai ou tutor que olha nos olhos da criança para lhe dar de comer e, depois, quando vai crescendo, faz isso para reafirmá-lo. Essas visões se multiplicam e vão formando a autoimagem e a autoestima. Hoje, essa visão se torna exponencial. Não apenas pelo que eu publico, mas também pelo que publicam de mim. E, especialmente, pelo que comentam dessa foto que publico, as curtidas ou pelo que dizem de mim. Essa visão é muito fugaz hoje, muda como muda rapidamente a timeline. Por isso, também se necessita de mais registros. Para alimentar constantemente esse olhar, essa opinião do outro sobre eu mesma e com retroalimentação positiva para o eu. É assim a forma como o selfie age sobre este “problema”, o problema do eu, do outro e desse olhar que me completa.
Ainda que possua mais eco entre os jovens, não é uma moda que se limita a eles. “É próprio de todos os que dispõem de um dispositivo e conectividade. Nos jovens se nota mais, porque está relacionado ao fato de terem nascido com estes dispositivos e estão acostumados. Além disso, a adolescência e a juventude são uma etapa onde está em efervescência o tema da própria imagem, do duelo pelo corpo, as formas infantis de se vincular e a reafirmação desta nova identidade. Nesse sentido, este fenômeno se encaixa perfeitamente com essa época. Porém, acredito – conclui a especialista – que os selfies atravessam todas as idades”.
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A era selfie - Instituto Humanitas Unisinos - IHU