Por: Cesar Sanson | 04 Agosto 2014
Em mais uma estreia histórica da Flip, Davi Kopenawa, líder do povo indígena ianomâmi, sobe ao palco da principal festa literária brasileira para falar de livros, mas também de ameaças de morte.
A reportagem e entrevista é de Camila Moraes e publicada por El País, 03-08-2014.
No Brasil fala-se português. Mas na sexta-feira foi possível escutar, pela primeira vez na Festa Literária de Paraty, outro idioma brasileiro que remete a uma nação muito anterior à chegada de uma língua oficial. A voz era de Davi Kopenawa, o líder espiritual e representante do povo ianomâmi, que subiu ao palco da tenda principal e abriu sua fala se apresentando e cumprimentando o público em seu próprio idioma.
Esse foi mais um momento histórico da 12ª Flip. O primeiro, na quinta-feira, foi a presença do primeiro autor russo a participar da festa, Vladímir Sorókin. Mas que pouco se compara à importância desse resgate tardio, em que um autêntico representante do povo brasileiro se sentou para falar ao lado da fotógrafa Claudia Andujar, que registra e apoia essa comunidade de Roraima e do Amazonas, na fronteira com a Venezuela, desde os anos 70.
Davi veio à Flip para anunciar o lançamento da tradução ao português pela Companhia das Letras, em 2015, de A queda do céu, livro sobre o conhecimento ancestral de seu povo, ditado por ele e escrito pelo antropólogo francês Bruce Albert e editado em 2013, não para a nossa surpresa, primeiro na França. Mas encontrou-se, no meio do caminho de Boa Vista a Paraty, com uma nova ameaça de morte que surge da luta dos ianomâmi contra os garimpeiros que invadem suas terras para extrair ouro.
Preocupado com sua segurança e a do filho, que trabalha com ele na Hutukara, fundação de proteção à causa ianomâmi que ele preside, o líder indígena falou sobre o mito da "queda do céu", descrito no livro e que ele vê agora repetido na vida, como foi há centenas de anos atrás. E finalizou sua participação pedindo proteção ao Governo federal e aos "não índios" ali presentes para que não haja morte – nem a dele, nem a do "planeta inteiro".
Eis a entrevista.
O povo ianomâmi luta contra o garimpo, para ter a sua terra respeitada e receber apoio do Governo para sobreviver. Que outras ameaças fazem parte dessa luta?
O garimpeiro não gosta do índio, porque a gente mora em cima do ouro. Não conheço o dono da loja que compra o ouro, mas sei que ele tem muito dinheiro pra pagar duas ou três pessoas, os criminosos, pra me matar. O fazendeiro também é muito perigoso. Nós expulsamos os fazendeiros que estavam na terra ianomâmi, aí começaram a falar mal de mim também. No dia 11 de junho entraram umas pessoas na sede da Fundação Hutukara. Apareceram perguntando de mim e do meu colega Armindo, mas a gente já tinha ido. Aí me avisaram que estão atrás de nós. Também lutamos para ter escola boa, transporte, essas coisas. E para proteger nossa terra.
Por que você está sendo ameaçado de morte?
Estão me ameaçando desde 1986. Agora, a ameaça aumentou. Em 2013, eu critiquei de novo os garimpeiros. A Hutukara fez um documento sobre o garimpo nas terras ianomâmi. É sempre igual. Só parou um pouco quando o presidente Collor de Mello expulsou eles, destruiu a estrada e demarcou a terra. Mas depois de um ano, entraram de novo. Não gostaram do meu trabalho, da minha luta, que eu fale com a Funai. Tem um chefe do garimpo que nunca aparece, só dá dinheiro, transporte e manda as pessoas lá. É o senador Romero Jucá Filho, que dá apoio pro garimpo continuar. Eu pedi proteção para a Funai, eles vieram e quebraram 15 balsas e destruíram coisas deles, então os garimpeiros ficaram bravos comigo.
Quando você voltar para casa, a Funai e outros órgãos vão te proteger?
Eu avisei a Funai, a Polícia Federal. Pedi apoio pra proteger a gente, porque não temos segurança. Estou preocupado com o meu filho, porque ele sempre fica lá na casa aonde chegam os garimpeiros. É muito grave, porque eles não querem nem saber, mandados eles matam mesmo. Eu me cuido, fico na minha comunidade. Lá eles não chegam, porque precisa pegar avião mais ou menos uma hora e meia.
É a primeira vez que esta importante festa literária dá espaço ao pensamento indígena. O que você pensa disso?
Antes não tinha, né? Pois é. Eu estava esperando isso. Queria conversar com o povo brasileiro. Eu sou brasileiro. Gostei quando me convidaram, foram primeiro lá em Boa Vista, conversaram comigo, conheceram, tiraram foto.
Do que fala o livro A queda do céu, que você lançou na França e que irá lançar no Brasil?
Eu conto. Meu amigo se chama Bruce Albert, é francês. Ele foi lá na terra ianomâmi, ficou um mês, depois um ano, aprendendo a língua ianomâmi, entrevistando o conhecimento do povo ianomâmi para poder escrever o livro dele. Aí nós pensamos: antropólogo que chega da cidade só fica coletando conhecimento do povo indígena, coisas que o ianomâmi conhece. Aí eu falei pra ele: "Agora você não vai mais fazer o seu, não, vai fazer o meu. Você pode ajudar?".
Gravamos tudo com gravador em ianomâmi, depois ele traduziu para o francês. Eu falei sobre o mundo, a terra, a floresta, caça, peixe, tudo o que tem. Falei de shabiri, que significa espírito. No passado, o céu caiu e matou todo o povo. Nosso deus, Omam, se protegeu e não morreu. O que eu queria mostrar é esse conhecimento do meu povo ianomâmi, dos pajés que conhecem shabiri e têm o sonho, que serve pra sonhar sempre e não esquecer. Conto pra vocês que não conhecem a nação ianomâmi. Estou feliz com isso. Foi publicado já na França, aí eu fui lá lançar o livro.
Como é a relação de vocês com a fotógrafa Cláudia Andujar?
A Cláudia é amiga. Faz fotografias dos ianomâmi, de quando eu era jovem já [risos]. Aí ela vende os livros dela e leva o dinheiro lá pra terra ianomâmi. Ela sempre dá apoio.
Aqui em Paraty, você fez uma visita a uma aldeia indígena guarani. Como foi?
Conversaram comigo e contaram a situação deles. É o mesmo problema do nosso povo indígena. Não é diferente em nada. Têm uma terra pequena, não têm lugar para caçar, para plantar. Não têm escola boa, porque o ministério da Educação não dá apoio.
Você soube dos povos indígenas isolados que estão no Acre e fizeram contato pela primeira vez com os não índios?
Eu soube hoje por uma amiga que tem índio isolado que fez contato. Chegaram lá no Acre. Então me falaram da Funai que vão lá conhecer e conversar. Acho que morreu o chefe deles, que cuidava da saúde de todos, por isso eles procuraram ajuda.
Você acha que existem muitas outras comunidades isoladas?
Existem, sim. Tem outro parente lá em Roraima, outro povo escondido ianomâmi. São os iauari. Eles não deixam a gente chegar lá. A gente deixa panela e machado pra eles no caminho, mas eles não pegam. Usam pedra mesmo. Tem mais comunidades ainda. É melhor deixar eles lá, eu acho. Fazem contato com eles, depois não cuidam. Não mandam médicos, nada, então é melhor deixar e só aceitar quando eles pedem.
Foto: Bruno Torturra (divulgação).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Fala-se ianomâmi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU