18 Julho 2014
Desmond Tutu, um dos líderes religiosos mais ilustres do mundo, fez uma intervenção extraordinária no debate sobre a morte assistida, apoiando o direito dos doentes terminais de acabar com suas vidas com dignidade.
O artigo foi publicado no jornal The Observer, 12-07-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Escrevendo para o jornal The Observer, o arcebispo anglicano aposentado de 82 anos, reverenciado como a "consciência moral" da África do Sul, diz que as leis que impedem as pessoas de serem ajudadas a acabar com suas vidas são uma afronta às pessoas afetadas e suas famílias.
Ele também condena como "vergonhoso" o tratamento de seu velho amigo Nelson Mandela, que foi mantido vivo por inúmeras e dolorosas internações e forçado a suportar uma sessão de fotos com políticos pouco antes de sua morte aos 95 anos de idade.
Tutu, que pede uma "mudança de mentalidade" no debate sobre o direito de morrer, escreve: "Eu tive a sorte de passar a vida trabalhando pela dignidade da vida. Agora eu gostaria de aplicar a minha mente para a questão da dignidade da morte. Eu reverencio a santidade da vida - mas não a qualquer custo".
A intervenção de Tutu chega em uma semana importante no debate sobre a morte assistida. Na sexta-feira, a Câmara dos Lordes vai testemunhar um dos momentos mais significativos de sua história recente, quando seus membros debaterão um projeto de lei sobre a morte assistida proposto pelo ex-lorde chanceler, Lorde Falconer. Um número recorde de lordes - 110 até agora - se inscreveram para falar.
No sábado passado, o ex-arcebispo de Canterbury, Lorde George Carey, falou a favor do projeto de lei. Mas, em um artigo no Times, Justin Welby, o atual arcebispo e chefe da Igreja da Inglaterra, reafirmou a hostilidade tradicional da Igreja a qualquer movimento que colocaria em risco o princípio da santidade da vida. Em um sinal de que o debate agora foi desencadeado dentro da Comunhão Anglicana, o bispo de Carlisle, James Newcome, pediu que uma comissão real analise essa "importante questão" por extenso.
A legislação proposta por Falconer tornaria legal para um médico entregar um medicamento letal a um paciente terminal que acredita-se ter menos de seis meses de vida.
Tutu observa que a lei de Falconer será debatida no Dia de Mandela, que comemoraria o aniversário de 96 anos do primeiro presidente negro da África do Sul. Ele pede para o seu próprio país para seguir o exemplo da Grã-Bretanha em examinar uma mudança na lei.
"No Dia de Mandela, vamos estar pensando em um grande homem", escreve ele. "No mesmo dia, 18 de julho de 2014, em Londres, a Câmara dos Lordes vai realizar uma segunda audiência sobre projeto de lei do Lorde Falconer sobre a morte assistida. Os estados do Oregon e Washington, nos Estados Unidos, Quebec, Holanda e Suíça já deram esse passo. A África do Sul tem um constituição duramente conquistada da qual temos orgulho e que deve fornecer uma base para orientar as mudanças a serem feitas sobre o estatuto jurídico dos desejos de fim de vida de forma a apoiar uma morte digna".
Em declarações feitas ao The Observer, Falconer, que disse que estava confiante de que agora sua lei viverá no parlamento para além do debate de sexta-feira, afirmou que a intervenção de Tutu ilustrava que a fé religiosa não deve ser um obstáculo ao apoio de uma mudança na lei. Ele disse: "Estou muito contente que alguém de sua estatura participe neste importante debate. É um debate em que os países olham para outros países em busca de orientação. Alguém da estatura do arcebispo Tutu, com toda a sua compreensão e experiência humana, falar sobre isso é realmente bem-vindo. Ele é um bispo anglicano que tem mostrado a sua força moral para o mundo melhor do que ninguém. Espero sinceramente que isso possa indicar que a religião não é uma barreira a este projeto de lei".
Um rabino de Londres, Jonathan Romain, falando em nome de 60 líderes religiosos que defendem as propostas de Falconer, disse acreditar que o apoio à lei era a "resposta religiosa" para uma situação em que o progresso da medicina tem permitido que as pessoas vivam em um estado físico e mental que muitos sentem ser intolerável. Ele disse: "Eu não vejo nenhuma santidade no sofrimento, nada de santo na agonia".
Jane Nicklinson, viúva do ativista Tony Nicklinson, portador da síndrome do encarceramento que lutou pelo direito de ser ajudado a morrer no Reino Unido, disse acreditar que a opinião pública estava agora em favor da mudança, acrescentando: "Eu espero que isso seja verdadeiro entre aqueles que realmente importam - os tomadores de decisão".
As propostas de Falconer estão sendo ferozmente combatidas por figuras-chave como Welby e ativistas pelos direitos das pessoas com deficiência. Richard Hawkes, presidente-executivo da Scope, instituição de caridade para deficientes, disse temer que a lei possa colocar algumas pessoas sob pressão para acabar com suas vidas. Ele disse: "Por que é que quando pessoas que não tem deficiência querem cometer suicídio, tentamos convencê-las a não o fazer, mas quando uma pessoa com deficiência quer cometer suicídio, nos concentramos em como tornar isso possível?".
No entanto, em seu artigo para o The Observer, Tutu diz que ele foi movido pelo caso de um sul-africano, Craig Schonegevel, que sofria de neurofibromatose e se sentiu forçado a acabar com sua vida, engolindo 12 comprimidos para dormir e amarrando dois sacos plásticos ao redor de sua cabeça com elásticos, porque os médicos não puderam ajudá-lo.
Tutu escreveu: "Alguns dizem que os cuidados paliativos, incluindo a sedação para assegurar a ausência de dor, devem ser suficientes para a jornada rumo a uma morte fácil. Algumas pessoas opinam que com bons cuidados paliativos, não há necessidade para a morte assistida, não há necessidade para as pessoas pedirem para receberem legalmente uma dose letal de medicação. Esse não foi o caso de Craig Schonegevel. Outros afirmam o seus direitos à autonomia e consciência - porque ficar na névoa da sedação quando há a alternativa de estar alerta e verdadeiramente presente com os entes queridos?".
Ele também revela que já teve uma conversa com a sua família sobre a sua própria morte. "Eu percebi que eu não quero que minha vida seja prolongada artificialmente", escreve ele. "Eu acho que quando você precisa de máquinas para ajudar a respirar, então você tem de fazer perguntas sobre a qualidade de vida experimentada e sobre a forma como o dinheiro está sendo gasto. Isso pode ser difícil para a consideração de algumas pessoas.
"Mas por que uma vida que está terminando está sendo prolongada? Por que o dinheiro está sendo gasto dessa forma? Ele não poderia ser melhor gasto com uma mãe que vai dar à luz a um bebê ou com um transplante de órgãos necessários a uma pessoa jovem. O dinheiro deve ser gasto com aqueles que estão no início ou no fluxo total de suas vidas. Naturalmente, essas são as minhas opiniões pessoais e não da minha Igreja".
Houve uma amarga controvérsia na África do Sul, em abril do ano passado, quando o presidente Jacob Zuma e outros políticos do Congresso Nacional Africano visitaram Mandela em sua casa juntamente com uma equipe de TV. O estadista parecia fraco, de olhos remelentos e alheio à situação. A família de Mandela e seus assistentes pessoais condenaram o golpe de publicidade, descrevendo-o como explorativo e de mau gosto. Tutu ecoa essa visão. "O que foi feito para Madiba foi vergonhoso", escreve ele. "Houve aquela ocasião em que Madiba foi televisionado com líderes políticos, o presidente Zuma e Cyril Ramaphosa. Você podia ver que Madiba não estava totalmente lá. Ele não falou. Ele não estava se conetando. Meu amigo não era mais ele mesmo. Foi uma afronta à dignidade de Madiba".
"As pessoas devem ter uma morte digna", continua ele. "Para mim, isso significa ter conversas com aqueles que cruzaram por sua vida e estar em paz. Isso significa ser capaz de dizer adeus a seus entes queridos - se possível, em casa".
Ele acrescenta: "Eu posso ver que eu provavelmente me inclino para o argumento da qualidade de vida, enquanto que os outros sentem-se mais confortáveis com os cuidados paliativos. Sim, acho que muita gente ficaria chateada se eu dissesse que eu queria a morte assistida. Eu diria que eu não me importaria, na verdade".
Tutu, que presidiu a Comissão Verdade e Reconciliação da África do Sul e admitiu que estava "zangado com Deus" durante o apartheid, nunca teve medo de assumir posições impopulares ou de suscitar debate. Mandela disse uma vez sobre ele: "Às vezes, estridente; muitas vezes, suave; nunca com medo e raramente sem humor, a voz de Desmond Tutu será sempre a voz dos sem voz".
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Apelo de Desmond Tutu pelo ''suicídio assistido'' às vesperas do debate histórico dos lordes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU