10 Julho 2014
"Todos iremos morrer e todos iremos ser esquecidos no final. Eu ainda não tenho a sofisticação suficiente para achar isso triste. Mas a sociedade parece um tanto estoica sobre o assunto, para dizer o mínimo. Hoje milhares estão fazendo campanhas pelo “direito de morrer” e pelo “direito de ser esquecido” como se estivessem realmente preocupados com a possibilidade de que isso não acontecerá", escreve David Mitchell em artigo publicado pelo The Observer, 06-07-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O que nossos descendentes irão pensar disso? “Caramba, esses caras eram um tanto pessimistas! O que mais eles queriam? O direito à automutilação? O direito de se sentir humilhado? O direito à decomposição? O direito de ter alguém que você odeia a aparecer em seu funeral e dizer que você gostava dele?” Os historiadores dos séculos futuros poderão ser perdoados por concluir que toda esta época se encontrava clinicamente deprimida.
Pensemos sobre o caso. Os historiadores dos séculos futuros poderiam ser perdoados por pensar praticamente qualquer coisa, uma vez que estamos prestes a negar-lhes acesso a informações confiáveis. Em maio, quando o Tribunal de Justiça da União Europeia confirmou a noção do direito dos cidadãos de serem esquecidos online, até que parecia razoável a ideia. É bom que as pessoas tenham condições de vasculhar o passado delas. Todos cometemos enganos, porém a internet faz destes enganos tatuagens virtuais, marcas indeléveis de nossos momentos de loucura, visíveis para qualquer um que use os Óculos do Google.
Por que umas poucas fotografias de estudantes bêbados deveriam impedir pedidos solenes das pessoas em se tornarem contabilistas ou irmãs religiosas? Nem todo mundo que se fantasia de nazista é, de fato, um nazista, ou ainda continua sendo. Consideremos Richard Burton e Clint Eastwood em “Where Eagles Dare” – eles sequer são nazistas neste filme.
O tribunal não ordenou que tais verdades pouco lisonjeiras sobre as pessoas deviam de ser realmente deletadas dos websites – decidiu apenas que, se alguém pedisse por elas, os mecanismos de pesquisa deveriam parar de fornecer links para quando responder a pesquisas que incluíssem o nome da pessoa solicitante. Tudo isso ocorreu por causa de um espanhol, Mario Costeja González, que passou anos tentando suprimir a verdade embaraçosa de que, em 1998, a sua casa foi confiscada para pagar dívidas à seguridade social.
Ele pode ter ganhado a causa, mas é difícil imaginar como ele poderia ter falhado mais em seu objetivo. Não sei nada sobre ele exceto o fato de que sua casa foi confiscada no intuito de pagar dívidas à seguridade social. Na verdade, não consigo pensar nenhuma outra coisa que tenha ocorrido em 1998. Tendo pesquisado no Google, soube que este ano foi também aquele em que Geri Halliwell deixou as Spice Girls, sem dúvida um passo em falso em sua carreira, informação que, hoje, ela pode se inscrever para ocultar da internet. A posteridade já parece menos provável de lembrar disso do que o confisco da casa de González, que, graças ao seu empenho, pode ser o último evento na história humana a ser relatado de forma confiável na rede de computadores.
Pode-se pensar que esta seja uma resposta sem sentido. Afina de contas, o tribunal especificou que o direito a ser esquecido não se aplicava “caso parecer, por razões particulares, como o papel desempenhado pelo sujeito na vida pública, que a interferência em os seus direitos fundamentais esteja justificada pelo interesse preponderante do público geral”. Mas na semana passada houve sinais de preocupação de que esta qualificação não está dando certo. Na manhã de quarta-feira, o Google informou à BBC que, ao responder a “certas buscas”, ele não iria mais fornecer um link para uma postagem de blog do ano de 2007 feito por Robert Peston.
Esta informação foi tão alarmante quanto intrigante, como uma palavra cruzada anexada a uma bomba. O blog sequer menciona Geri Halliwell. Ele apenas menciona uma pessoa: Stan O’Neal, ex-chefe de Merrill Lynch, que foi demitido por quase arruinar um banco com títulos tóxicos. Mas não foi O’Neal quem solicitou a supressão do artigo; segundo chefe de comunicações do Google, Peter Barron, foi um “membro comum do público que deixou um comentário no blog de Robert”, garantindo-nos de que “se pesquisarmos pelo blog Merrill Lynch, este irá aparecer. Caso pesquisarmos por Stan O’Neal ele irá aparecer. Somente se pesquisarmos pelo termo estrito do nome do comentador individual é que o blog não irá aparecer”.
Lendo os comentários, minha aposta vai para Oren Vinishavsky cuja postagem é racista. Mas o texto ainda aparece caso pesquisarmos pelo seu nome. No entanto, ao pesquisarmos no Google vários dos demais nomes (por exemplo: Peter Abatan ou Derek Farmer, cujas contribuições não são ofensivas) somos conduzidos a uma página que traz o aviso: “Alguns resultados podem ter sido removidos sob a lei de proteção de informações vigente na Europa”. Então, talvez seja um destes, embora eu não consiga entender o motivo. Talvez o culpado estivesse cabulando o casamento de um primo desprezado porém vingativo quando postou. De qualquer forma, é estranho porque este blog constitui, obviamente, um jornalismo decente sobre uma coisa importante, e não apenas sobre a notificação de despejo de um cidadão espanhol aleatório.
O que está acontecendo aqui e o que irá acontecer? O Google, que se opôs à decisão do tribunal, foi inundado por 70 mil solicitações para a remoção de links em suas pesquisas. Os solicitantes supostamente incluem um político britânico que está tentando voltar à cena, um alguém condenado por possuir imagens de abuso infantil e um médico que não quer que avaliações negativas de pacientes estejam presentes nas pesquisas (ele deveria ter consultado Harold Shipman sobre como pôr um ponto-final neste problema). Estará o Google deliberadamente usando o blog de Peston para demonstrar como o pensamento dos juízes europeus pode resultar numa censura não adulterada?
A única coisa de que eu sempre gostei na internet era a que ela iria ajudar os historiadores: supondo não haver um surto que destrua todos os dados, milhões de fontes escritas pesquisáveis seriam deixadas para a posteridade. Sem isso, a internet não é outra coisa senão aliciamento, fechamento de livrarias e oportunidades incríveis de fraudes. Assim, a notícia de que Ozymandias pode solicitar a supressão dos registros de seus trabalhos caso eles invoquem demasiado desespero no Poderoso – ou seja, nos empregadores potenciais – é um golpe real.
Pode-se dizer que Ozymandias esteja morto e que, assim, não poderá solicitar que se suas pernas virtuais destroncadas sejam enterradas na areia do “não pesquisável” (manterei esta metáfora comigo). A internet pode ainda ser exata a respeito dos falecidos, pode-se pensar. Eu não penso assim. Eles são exatamente as pessoas sobre as quais podemos falar qualquer coisa, verdadeira ou falsa, porque estas não podem ser caluniadas. Apenas os vivos têm o recurso jurídico para garantir a exatidão, mas por que alguém iria se incomodar em corrigir as coisas se elas podem apenas deletar tudo o que está escrito sobre elas?
O direito das pessoas de suprimir mentiras desagradáveis que são contadas publicamente está sendo estendido a verdades desagradáveis, até o momento em que elas morrem, quando vem de repente a temporada de caça à calúnia. A internet vai se tornar inteiramente construída por dois tipos diferentes de inverdades: elogio contemporâneo puro e boatos difamatórios póstumos.
Ninguém tem o direito de ser esquecido mais do que tem o direito de ser lembrado. O nosso único direito a esse respeito deveria ser o de não mentirem a nosso respeito. E então talvez possamos tentar ver os fatos pouco lisonjeiros do passado das outras pessoas à luz de nossas próprias imperfeições. Eu não pensaria menos de alguém por causa que sua casa fora confiscada 16 anos antes. Mas pensaria menos dela caso ela viesse a ser uma pessoa mentirosa.
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O direito de ser esquecido fará da internet uma obra de ficção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU