30 Junho 2014
"O Trono de Ferro é um claro símbolo do poder belicista que se impõe sobre o mundo conhecido. Sua mensagem é clara: enfrentar quem se assenta neste trono pode significar ter sua espada fundida às outras, ou seja, derrota iminente e morte certa. Um detalhe deste símbolo é bastante importante: as espadas foram fundidas pelo sopro dos dragões que pertenciam ao primeiro rei de Westeros e por isso ele se tornou soberano de todos os reinos. Semelhante ao arsenal atômico contemporâneo, a presença dos dragões se constitui na maior ameaça que se poderia enfrentar em tempos de guerra." Renato Ferreira Machado, doutor em Teologia, reflete teologicamente sobre o seriado Game of Thrones.
Eis o artigo.
Em abril de 2011 o canal HBO exibiu o primeiro episódio daquela que se tornaria uma das séries de televisão mais assistidas de sua história. Com uma média de 18, 4 milhões de espectadores por semana, Game of Thrones já concluiu sua quarta temporada e se encaminha para um novo período de tramas, aventuras e, certamente, mortes violentas e inesperadas. Baseado na série de livros A Song of Ice and Fire, de George R.R. Martin, o seriado se situa em um ambiente medieval no qual guerras dinásticas são empreendidas pela conquista do Trono de Ferro, no reino fictício de Westeros. Sete reinos, em alianças e conflitos, escrevem uma história sangrenta sobre o mapa idealizado por Martin: cada um com seu brasão e lema, cada um com suas motivações, claras ou secretas. Ao norte deste território uma gigantesca muralha de gelo, mantida por uma ordem secreta de guerreiros, vigia temidas ameaças que, avançando de terras selvagens, podem aniquilar todos os reinos conhecidos. Game of Thrones apresenta um mundo complexo, fantasioso e profundamente realista.
Um jogo de fronteiras
O teólogo alemão Paul Tillich (1886-1965), ao elaborar o método da correlação, que marcou profundamente sua produção teológica, lembrava que experiências de fé, antes de serem institucionais, são ontológicas e se dão na busca por um horizonte incondicional que dê sentido à existência. Desta forma, Tillich estabelecia que toda religião seria cultural – uma vez que se utiliza de linguagens inscritas historicamente para se expressar – e que toda cultura seria religiosa, pois as produções culturais podem ser compreendidas como expressões do transcendente humano, reinterpretando a realidade na busca de um sentido para ela. Junto a isso, Tillich destacava o perigo da idolatria nas experiências de fé, afirmando que, historicamente, muitas foram as realidades e ideologias que, se colocando como absolutas, atraíram o ser humano para verdadeiros vazios existenciais e sociais. Por esta razão, o teólogo afirmava que a experiência de incondicional se revelava nas questões últimas, diante das quais o ser humano experimentava sua integralidade existencial, abrindo-se ao absoluto e assumindo as lutas e esperanças pela concretização desta realidade. Na fronteira entre a experiência religiosa institucionalizada e a experiência existencial humana encontra-se a arte, que se constitui como expressão extática da busca pelo incondicional. Para Tillich, esta fronteira também precisa ser habitada pela Teologia. Game of Thrones pode ser compreendido nesta semântica teológica: junto ao vazio da disputa pelo poder através de violentas alianças políticas, a série apresenta a angustiante busca de seus personagens por um sentido existencial em meio à brutalidade da guerra. Junto a isso, cresce o temor diante da revelação de verdades ocultadas e mantidas à distância, atrás de muralhas de gelo.
Trono de espadas
Na capital de Westeros, Porto Real, ergue-se a Fortaleza Vermelha. Dentro dela, na sala do trono, encontra-se o Trono de Ferro, assento real construído com a fusão das espadas dos inimigos derrotados pelo primeiro rei dos Sete Reinos. Quem se assenta nesta mórbida cadeira governa a todos e de todos recebe tributos. Esta é, portanto, a posição mais disputada pelos clãs da ficção elaborada por Martin e, em nome dela, derrama-se todo sangue necessário para manter o poder. No início do seriado sabe-se que, pela primeira vez, há um rei que não é descendente da primeira família real, os Targaryen. Este rei, apelidado de "usurpador" – por ter arquitetado o assassinato de seu antecessor – viaja ao reino do norte para convidar seu antigo companheiro de batalhas, Eddard Stark, para ser seu regente. Com a viagem do clã Stark para Porto Real e a posterior traição e perseguição a esta família inicia-se a saga de Game of Thrones e desencadeiam-se os acontecimentos que tem sido mostrados ao longo das quatro temporadas. Muitos são os desdobramentos e detalhes destas narrativas, que acompanham as jornadas de diferentes personagens a partir da crise de Porto Real, mas queremos nos concentrar em algumas chaves de leitura que nos chamam atenção na série.
O Trono de Ferro é um claro símbolo do poder belicista que se impõe sobre o mundo conhecido. Sua mensagem é clara: enfrentar quem se assenta neste trono pode significar ter sua espada fundida às outras, ou seja, derrota iminente e morte certa. Um detalhe deste símbolo é bastante importante: as espadas foram fundidas pelo sopro dos dragões que pertenciam ao primeiro rei de Westeros e por isso ele se tornou soberano de todos os reinos. Semelhante ao arsenal atômico contemporâneo, a presença dos dragões se constitui na maior ameaça que se poderia enfrentar em tempos de guerra. Assim, os governantes que assumiam o Trono de Ferro acabaram se tornando, ao longo dos séculos, monarcas incontestáveis, pois poderiam encerrar rapidamente quaisquer conflitos que surgissem entre os sete reinos. No início do seriado, porém, a narrativa estabelece que os dragões foram extintos e que o reinado a partir de Porto Real se mantém por fidelidade, tradição e alianças econômicas e militares. O que as famílias Baratheon e Lannister não sabem é que os descendentes legítimos da família que governou os Sete Reinos por séculos planejam retomar o trono e levam com eles três ovos de dragão.
A ameaça dos escravos
O casal de irmãos, Viserys e Daenerys Targaryen, filhos do rei deposto arquitetam um plano para retomar o trono de Porto Real: uma aliança com os rebeldes nômades Dothraki para marchar contra o Trono de Ferro. O preço desta aliança seria a própria Daenerys, oferecida como noiva para Khal Drogo, líder dos Dothraki, junto a três ovos petrificados de dragão. Inicialmente aceitando seu destino passivamente, Daenerys começa a temer por sua vida nas mãos do brutal Khal Drogo e, orientada por outras mulheres do povo Dothraki, aprende a língua deles e conquista afetivamente seu noivo. Tal mudança faz com que seu irmão perca o poder que julgava ter e, de objeto de troca, Daenerys passa a ser protagonista, sendo reconhecida pelo povo Dothraki como khaleesi, algo equivalente à rainha. Quando Khal Drogo morre, em função de ferimentos adquiridos em um duelo, Daenerys entra em sua pira funerária, de lá saindo ilesa, junto a três filhotes de dragão, saídos dos três ovos que haviam sido deixados junto ao corpo do líder morto.
A partir de então, a série mostra a marcha de Daenerys com os Dothraki, em busca de alianças para atacar Porto Real e retomar o poder. Além de ter se revelado uma filha do fogo, sendo aparentemente invulnerável a este elemento, Daenerys possuía, agora, a mais temida arma de guerra, os lendários dragões que todos acreditavam ter se extinguido. Em sua peregrinação, ela enfrenta a cobiça de povos que desejam possuir os dragões e, o mais importante, começa a libertar as pessoas em situação de escravidão nos lugares onde passa. Com isso, passa a ter um exército comprometido com sua causa, tornando-se uma ameaça para o reinado estabelecido em Porto Real. É muito interessante observar o subtexto presente nesta linha narrativa: inicialmente, Daenerys é apenas uma moeda de troca para concretizar os planos de seu irmão e, ao conquistar seu lugar passa a transformar as relações de poder abrindo espaço para os excluídos e escravizados. É possível fazer uma leitura messiânica feminista desta personagem, pensando-se nas lutas empreendidas pelos movimentos ligados ao feminismo que, buscando libertar a mulher dos arquétipos que a escravizam, desencadeiam uma dinâmica libertadora para outros atores sociais em situação de opressão. Junto a isso, as investidas de reinos poderosos contra a rainha peregrina se dão na mesma proporção em que as superpotências econômicas investem contra os “povos do deserto”, na medida em que supõem que estes possuam armamento nuclear ou similares.
Muralhas de medo
Outro grande símbolo que se destaca na trama de Game of Thrones é a Muralha: uma parede de gelo, com mais de duzentos metros de altura e quinhentos quilômetros de extensão, que protege os Sete Reinos das ameaças das terras selvagens. A Muralha é guardada por um grupo de guerreiros juramentados chamado de Patrulha da Noite. Uma vez que alguém ingressa neste grupo, permanecerá nele até a morte e a ele se dedicará integralmente por toda sua vida. Na história narrada no seriado, o espectador conhece esta organização pelos olhos de Jon Snow, filho bastardo de Eddard Stark. A grande questão com a Muralha, porém, é: que tipo de ameaça, afinal, pode vir do outro lado para exigir tanta dedicação e prevenção?
Uma das ameaças são os povos chamados de selvagens, ou os que habitam as terras chamadas de Para Lá da Muralha: autointitulados de Povo Livre, são um complexo de tribos e clãs com cultura própria que vivem de forma independente dos Sete Reinos. Na medida em que a Patrulha da Noite foi realizando ataques “preventivos” a estes povos, uma inimizade muito grande foi se formando, tornando a patrulha e os Povos Livres inimigos mortais. Interessante observar que o Povo Livre chama os habitantes do sul de “ajoelhadores”, querendo dizer que estes vivem sujeitos a reis, leis e impostos, não sendo realmente livres. Na verdade, os povos do sul temem os habitantes do outro lado da muralha sem realmente conhecê-los. Apesar desta inimizade, porém, estes povos não constituem a maior ameaça que a Muralha guarda.
No episódio final da segunda temporada um grupo de sentinelas está coletando alimentos nas proximidades da muralha. Nisto, ouvem o toque de uma trombeta, indicando a volta de uma patrulha que havia saído. Em seguida, porém, há um segundo toque. Eles sacam suas espadas, pois os dois toques alertam para o ataque de “selvagens”. Ouve-se porém, um terceiro toque. Os patrulheiros se entreolham, amedrontados, e fogem. Um deles, mais obeso, fica para trás, escondendo-se atrás de uma pedra. Pelos seus olhos testemunhamos, então, o maior temor da Patrulha da Noite e dos Sete Reinos: um exército de mortos-vivos que avança pela neve rumo à muralha. São os Outros, ou os Caminhantes Brancos, forças ancestrais que se movem através da neve na forma de cadáveres humanos e animalescos reanimados. Guardando a aparência que tinham ao serem reerguidos – alguns, logo depois da morte, com suas feições intactas e outros já em decomposição – os Outros trazem os ferimentos mortais que ceifaram suas vidas. Nos Outros encontra-se parte da dimensão escatológica de Game of Thrones: em uma realidade regida pela violenta disputa de poder, tudo parece se resolver quando o oponente é eliminado. Quando estes oponentes se reerguem e marcham novamente em direção aos que os assassinaram, trazem com eles o caótico que quebrará a ordem estabelecida. Nada pode parar ou calar os mortos e as marcas de violência que trazem em seus corpos são acusação e julgamento para seus algozes.
Assim, também em nossa realidade, as muralhas que erguemos, separando fronteiras políticas e econômicas – seja de países, seja de condomínios – tem a função de manter afastados os “selvagens” que não integram nosso convívio e, sobretudo, as vítimas da desigualdades e disputa pelo poder, que não queremos mais enxergar. Da mesma forma que em Game of Thrones, porém, é no interior de nossas muralhas que se arquiteta e legitima a violência que rege o cotidiano. Nossas disputas de poder, alianças e preconceitos solidificam nossos tronos de ferro, erigidos não com espadas, mas com o trabalho e o sacrifício daqueles que mantemos para lá de nossos muros. Porém, quando os escravos são libertos e os mortos se pronunciam, inicia-se aquilo que Jürgen Moltmann denomina como Justiça do Reino: recapitula-se a história, fazendo-se a leitura do que fora silenciado. Neste Reino não há Trono de Ferro, mas mesa farta de alimentos para a qual todos são convidados e através da qual todos podem viver em comunhão.
Game of Thrones é uma obra ainda em aberto, tanto na literatura quanto na televisão. Por isso é bastante difícil dizer algo definitivo sobre a série. Da mesma forma, sua narrativa complexa, com muitos núcleos de personagens e tramas paralelas não facilitam uma análise sintética do todo. Por isso, neste texto, buscamos destacar alguns aspectos que nos chamaram atenção como chave de leitura teológica. Há muito a ser escrito, discutido e comentado sobre esta produção cultural, mas desde já podemos afirmar: Game of Thrones é uma das mais significativas ficções produzidas atualmente, exatamente por trazer, nas entrelinhas da fantasia muito de nossa realidade.
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Game of Thrones: a parábola do trono de ferro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU