16 Junho 2014
Pela primeira vez, o teólogo Hans Küng nos fala dos anos da sua juventude na Suíça, da decisão de se tornar sacerdote, dos estudos no prestigiado Pontifício Colégio Germânico em Roma, dos bastidores do Concílio Vaticano II, do qual participou a partir de dentro, por vontade do Papa João XXIII, da sua amizade com Ratzinger, que mais tarde se tornaria um dos mais implacáveis acusadores da sua teologia crítica; até a correspondência com o Papa Francisco sobre a reforma da Igreja.
O percurso e as batalhas do maior intelectual da Igreja, sob a insígnia de uma religiosidade crítica que rejeita o rígido dogmatismo da Igreja para abraçar um sentimento de fé mais racional e consciente e, por isso, mais humano.
Da densa autobiografia do teólogo do dissenso – intitulada Hans Küng. Una battaglia lunga una vita. Idee, passioni, speranze. Il mio racconto del secolo (Ed. Rizzoli, 1.176 páginas) – antecipamos um trecho sobre o episódio da despedida, em 1969, do futuro papa, Joseph Ratzinger, da Universidade de Tübingen.
O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 15-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Joseph Ratzinger ainda me testemunhou, nas suas memórias publicadas na Alemanha em 1998, "a simpática abertura e a franqueza" e "uma boa relação pessoal" no nosso período em Tübingen: "Devo dizer que, naquele momento, eu me sentia mais próximo do seu trabalho do que ao de J. B. Metz, que justamente sob meu conselho havia sido chamado para a cátedra de Teologia Fundamental de Münster".
A despedida de Joseph Ratzinger de Tübingen, para mim, no entanto, continua ligada a um mistério. No dia 26 de outubro de 1969, já ex-professor em Regensburg, ele ofereceu um belo jantar de despedida à sua antiga faculdade no hotel Krone, de Tubingen.
A noite, durante a qual ele também me agradeceu pessoalmente pela profícua cooperação, transcorreu no melhor dos climas. Só muitos anos depois, li um relato do filósofo e tradutor católico tcheco Karel Floss (senador depois da reviravolta de 1989). Floss sempre se interessou muito por teologia e pela Igreja, e eu sempre o apreciei. Ele permaneceu em contato comigo e com outros teólogos ocidentais, mesmo no tempo do regime comunista, e eu lhe enviei muitos livros.
No fim de julho ou início de agosto de 1969, Floss fez uma visita a Joseph Ratzinger em Tübingen, que o acolheu com cordialidade, mas logo lhe confiou ao seu assistente Martin Trimpe, que passou a noite com ele. Pouco depois da meia-noite, em um mirante sobre a Tübingen noturna, segundo o relato de Floss, ocorreu uma conversa enigmática na qual Trimpe lhe comunicou que a cooperação entre Ratzinger e Küng tinha acabado. Tinham que se separar por motivos salutares para ambos. Dado que não se podia continuar trabalhando com um homem como Küng, Ratzinger e os seus colaboradores não deviam se enfurecer totalmente. Küng se fazia notar cada vez mais como um hábil jornalista do que, dali a 20 ou 30 anos, ninguém mais saberia de nada.
Floss perguntou a Trimpe onde ele queria chegar, e este respondeu que Ratzinger iria para Regensburg, onde o bispo Graber pretendia lhe fornecer todo o necessário para continuar trabalhando em total tranquilidade. Para Floss, é o segundo choque da noite, porque ele sabia que, junto de Graber, procurariam asilo todas aquelas forças conservadoras que, também na Tchecoslováquia, estavam assustadas com as consequências do Concílio e que se opunham particularmente à renúncia do tomismo rigoroso.
Até aqui, o relato de Karel Floss, que recentemente me confirmou tudo em uma carta: "Cada palavra daquela noite em Tübingen está profundamente gravada na minha alma" (31 de maio de 2006). Agora, certamente eu seria o último a pôr sobre a balança as afirmações da meia-noite de um assistente sobre o seu professor. E nunca levei a sério a acusação de "jornalismo", que, no entanto, em geral, vem de colegas que gostariam de escrever melhor e de serem mais lidos, mas aos quais falta o engenho ou a capacidade estilística.
Ratzinger tinha editado junto comigo a edição do meu volumoso livro A Igreja, publicado dois anos antes da nossa coleção "Pesquisas ecumênicas" (Ed. Herder) e geralmente saudado como um honesto trabalho científico. Eu não sei qual deve ser a minha influência "enfurecedora" sobre os mais próximos colaboradores de Ratzinger e isso nunca foi objeto da minha curiosidade.
E, finalmente, quanto à impossibilidade de uma maior cooperação entre Ratzinger e eu, o assistente pode ter exagerado ou registrado plenamente a pessoa do seu mestre. A única certeza é que Ratzinger foi embora de Tübingen, onde cientificamente, sem dúvida, se está em primeiro plano, para se retirar (teologicamente) para a obediente Regensburg e para a província do bispo alemão mais reacionário, representante do marianismo e do curialismo. Mas só vim a saber dessa conversa anos depois.
E já se deve fazer a pergunta que é feita por outra testemunha da época, aquele Hermann Häring que logo seria promovido a doutor em teologia e se tornaria meu assistente no nosso Instituto para a Pesquisa Ecumênica e que, em 1980, se tornaria professor de teologia dogmática na Universidade de Nijmegen como sucessor de Edward Schillebeeckx. Através de argutas publicações, ele se revelou o melhor conhecedor e intérprete crítico da teologia da Ratzinger.
Häring acredita que eu me equivoquei enormemente a seu respeito. Não só Ratzinger não teria tomado consciência do fato de que, com relação às revoltas estudantis, eu estava fundamentalmente do seu lado, mas também claramente já teria se diferenciado de mim sobretudo na interpretação do Vaticano II.
De fato, em 1968, ele assinou a "Declaração pela liberdade da teologia", essencialmente elaborada por mim, à qual por fim se associaram 1.322 teólogos e teólogas de todo o mundo. Ele fizera o mesmo em 1969, com uma declaração de Tübingen pela eleição dos bispos e a limitação do seu ministério, elaborada não por mim, mas pelo canonista Neumann e por outros colegas seus.
Logo que deixou Tübingen, no entanto, Ratzinger retirou a assinatura dessa segundo declaração. Ele a assinara, ao que parece, por pressão dos colegas. Já se via bispo? Certamente, ele não podia prever que, em uma idade em que todos os outros bispos da Igreja Católica devem apresentar a sua própria renúncia, ele seria eleito bispo de Roma, o único (até agora) não vinculado a limites de idade. De todos os modos, de uma coisa eu estava consciente desde o início do nosso período comum em Tübingen: ele tinha a cátedra de teologia dogmática e de história dos dogmas; eu, a de teologia dogmática e ecumênica. Ocupávamo-nos ambos de teologia dogmática, mas nos movíamos a partir de um pano fundo diferente: Ratzinger, da Idade Média latina (Agostinho-Boaventura); eu, a partir da Idade Média (Tomás de Aquino), mas também da Reforma (Lutero), da era moderna (Hegel) e da era pós-moderna (Barth).
A minha esperança era de que nós não só nos completássemos, mas também aprendêssemos um com o outro; que, como eu estava interessado na teologia dos Padres da Igreja e da Idade Média, ele também o fosse pela teologia dos reformadores e pela atual exegese histórico-crítica. No fundo, devíamos e queríamos ambos aproximar a mensagem cristã aos homens de hoje, que, também segundo ele, não vivam mais espiritual e religiosamente na Idade Média.
De fato, estou convencido (e lembro a citada conversa com uma judia suíça em Jerusalém) de que é possível desenvolver a cristologia não apenas "de cima", a partir da encarnação do Filho de Deus, mas também "de baixo", do homem Jesus de Nazaré. Assim o entenderam os seus discípulos, e assim nós podemos compreendê-lo hoje, para depois ir mais a fundo e nos perguntar: "Quem é este homem?".
Sim, fiquei feliz quando Joseph Ratzinger, em 1968 ou em 1969, durante uma longa conversa no meu carro, concordou com a possibilidade, em princípio, de uma cristologia "de baixo". Justamente aqui, no entanto, supõe Häring, eu teria me equivocado. Presumivelmente, Ratzinger pensou que a experiência já demonstrava o fracasso do conceito de uma cristologia "de baixo".
De fato, eu me assusto quando vejo à minha frente o seu livro Introdução ao Cristianismo: é o curso que ele tinha ministrado no semestre de verão de 1967, em um lotado e atento auditorium maximum. Como naquela época, ele não só vê alguns artigos de fé em um marco vetero-eclesiástico-medieval, mas também não aceita a pesquisa contemporânea sobre Jesus; ao contrário, faz uma caricatura dela até se tornar irreconhecível, e, por isso, distorce profundamente exegetas do calibre de Bultmann ou Käsemann, embora sem nomeá-los.
Ele, que é capaz de um pensamento preciso e rigoroso, escreve aqui, de maneira indistinta, que revela um profundo condicionamento emocional. Eu mesmo já tive que representar no meu livro A Igreja, contra o meu projeto original, o anúncio do Reino de Deus através do Jesus histórico e redesenhei tal anúncio, de um lado, a partir de Bultmann e, de outro, do exegeta católico (verdadeiramente ortodoxo) Rudolf Schnackenburg, destacando uma congruência essencial entre os dois.
Como é que Ratzinger – perguntei-me já à época – pode se obstinar dessa forma em contrassensos e em ilações na interpretação do Novo Testamento? A posteriori, isso ficou mais claro para mim: a nossa relação com a Bíblia era muito diferente.
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Ratzinger, a Bíblia e eu. Artigo de Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU