01 Abril 2014
Amplamente usada durante o regime militar, a tortura ainda é prática comum no Brasil. Antes direcionada à atividade política, ela segue em uso contra a população, em geral os mais pobres e vulneráveis. Nos últimos três anos cresceu 129% o número de denúncias de tortura cometidas por agentes públicos no país. Entre 2011 e 2013, foram relatados 816 casos por meio do Disque 100, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, envolvendo 1.162 agentes do Estado. Só no ano passado, foram 361 registros.
A reportagem é de Cleide Carvalho, publicada pelo jornal O Globo, 01-04-2014.
Casos de tortura e violência policial já existiam no Brasil antes do golpe militar de 1964. No entanto, para a socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), Viviane de Oliveira Cubas, a ditadura formalizou os instrumentos, e a democracia não conseguiu romper com o modelo.
— O legado da ditadura foi a oficialização de práticas e condutas. Os policiais não se identificam com os cidadãos, e nenhuma polícia é bem-sucedida sem proximidade com a população — diz Viviane.
Pesquisador de História da polícia e coordenador científico do Observatório de Segurança Pública, o professor Luís Antônio Francisco de Souza afirma que, até 1969, a Polícia Militar se chamava Força Pública e era aquartelada, uma força reserva a ser usada apenas em situações de tumulto e onde não havia a Guarda Civil. Depois do AI-5, que suspendeu os direitos políticos e o voto, ela mudou de nome e assumiu o policiamento de rua. Ainda hoje a Constituição estabelece, no parágrafo 6 do artigo 144, que as polícias militares, incluindo bombeiros, são forças auxiliares e reserva do Exército, embora sejam subordinadas aos governadores dos estados.
— O militarismo é uma escola que precisa ter hierarquia e disciplinas rígidas. Numa guerra, os soldados do Exército matam e morrem e não podem questionar a ordem, que deve ser obedecida mesmo que não seja racional. O problema não é se opor ao militarismo, mas ao uso dele na segurança pública, que não pode ser isolada da comunidade — explica Souza.
Presidiários ainda sofrem com a prática
Segundo especialistas, os casos de tortura denunciados são infinitamente menores do que o real. E a Polícia Militar não é a única nem a principal instituição pública a usar a prática. Foi da Polícia Civil que surgiu o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que comandou as torturas no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo, por exemplo. E é dentro dos presídios que hoje são registrados o maior número de crimes deste tipo.
O problema é que o crime de tortura cometido por agentes públicos vira “lesão corporal” ou “abuso de autoridade” até chegar à Justiça. A pesquisadora Maria Gorete Marques Jesus analisou 51 processos de tortura abertos de 2000 a 2004 e julgados até 2008. Eram 203 réus, 181 deles agentes de Estado. Dos agentes de Estado, 127 foram condenados. Enquanto a ONU vincula a tortura como crime de Estado, no Brasil, ela é crime aplicável a pessoas comuns (mães, pais, padrastos etc). Doze réus da pesquisa eram cidadãos comuns e metade foi condenada. Entre os policiais, 70% foram absolvidos.
— Temos uma marca muito forte da ditadura. No caso de agentes do Estado julgados, a fala da vítima é sempre colocada em suspeição e tem pouca credibilidade. Como a tortura é um crime sem testemunhas, a vítima é quem tem de provar. Quando é uma mãe acusada de torturar um filho, é a fala dela que é questionada. Há ainda margem para classificar a tortura como outros crimes no caso de agentes de Estado. Vi um promotor tentando denunciar um policial por abuso de autoridade, enquanto o juiz dizia que era tortura. Este tipo de classificação mascara o número de casos — diz Maria Gorete, do NEV/USP.
Segundo Viviane, 18 anos após a primeira ouvidoria de polícia instalada no Brasil, em São Paulo, cinco estados ainda não têm o mecanismo. Ao pesquisar a ouvidoria de São Paulo, ela constatou que, enquanto no mundo todo as ouvidorias servem para ouvir a população, aqui ela também recebe queixas dos policiais — cerca de uma por dia entre 2006 e 2011. Na maioria dos casos, o problema é de relações do trabalho, o que, segundo Viviane, revela a ausência de canais internos.
A Ouvidoria não tem poder para investigar e apenas oficia reclamações à Corregedoria. No caso da PM, o inquérito policial militar corre em segredo de Justiça.
Uma pesquisa feita pelo NEV mostra que a população de fato relativiza a tortura, com certo grau de aceitação do uso para obter confissões. Foi perguntado aos entrevistados se “os tribunais podem aceitar provas obtidas através de tortura”. Em 1999 houve clara discordância, com 71,2% das respostas. Em 2010, o percentual caiu para 52,5%.
Embora a maioria diga que a polícia deve investigar sem violência, um terço dos entrevistados concordou que a polícia utilize meios ilegais, como ameaçar, bater, dar choques ou queimar com ponta de cigarro, ameaçar membros da família e até deixar sem água ou comida. “Quanto mais jovem o entrevistado, maior parece ser a tendência a apoiar o uso de práticas de tortura”, ressalta o estudo.
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Denúncias de tortura no Brasil cresceram 129% nos últimos 3 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU