Por: André | 28 Janeiro 2014
“É tudo menos uma questão de maldade ou bondade”, diz Leonardo Sakamoto (foto), quando perguntado sobre as causas do trabalho escravo. Para o jornalista e coordenador da ONG que divulga denúncias sobre o tema Repórter Brasil, a prática é fruto de um cálculo econômico e está ligada a um sistema de competitividade e pressão por preços baixos. Nesta entrevista, Sakamoto, jornalista e membro da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, fala, entre outras questões, da necessidade de aprovar a PEC do Trabalho Escravo, empacada no Senado desde 2012.
Fonte: http://bit.ly/1k0jm0Q |
A entrevista é de Yuri Al’Hanati e publicada no jornal Gazeta do Povo, 28-01-2014.
Eis a entrevista.
Quais as condições que fazem surgir o trabalho escravo?
O trabalho escravo não é resquício de formas antigas de exploração que vão desaparecer quando a modernidade chegar a todos os lugares. Ele é um instrumento utilizado sistematicamente para reduzir custos. No afã de melhorar a lucratividade ou aumentar a competitividade do seu negócio, vão se reduzindo custos dos direitos trabalhistas, até que você cruza uma linha que é a linha de dignidade e liberdade das pessoas. É claro que um fazendeiro ou um empresário não busca ter escravos. Mas eles vão cortando direitos e quando veem, já estão incorrendo nesse crime. E existem condições que tornam isso possível. Por exemplo, o sentimento de impunidade, que é ainda muito grande, e a pobreza.
Em que sentido as leis avançaram no tema?
O artigo 149 do Código Penal é da década de 1940 e teve sua atualização em 2003. Ele é claro na definição de trabalho escravo, e da punição. Agora a gente tem uma série de medidas a aprovar. A mais importante delas a PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco, sem indenização, de propriedades rurais e urbanas que praticam esse tipo de crime. O trabalho escravo é um cálculo econômico, então transformar o lucro em prejuízo é a melhor forma de combater esse crime.
Existe punição efetiva para a prática hoje no Brasil?
Você tem umas 40 ou 50 condenações por trabalho escravo, mas boa parte recorre em liberdade. É muito difícil um caso transitado em julgado que tenha como decisão final a cadeia para o réu. Mas eu sempre acho mais importante penalizar o caráter econômico. Não estou falando que a cadeia não é importante, até porque existem casos de trabalho análogo ao escravo com abuso de violência em que não há discussão, mas para coibir a prática são necessários elementos que causem prejuízo ao produtor.
Uma liderança ruralista me deu um depoimento interessante sobre a PEC: “pegue o praticante de trabalho escravo, jogue na cadeia e jogue a chave fora, mas não mexa na propriedade da família dele”. Isso é categórico do que a gente está falando. Coloca-se em primeiro lugar a propriedade privada, e só muito depois, a dignidade da pessoa, inclusive do próprio criminoso, que vai ser esquecido na cadeia. O medo dos ruralistas é esse. Eles não concordam com o trabalho escravo, mas acham que a propriedade privada é intocável. Infelizmente, no Brasil, o direito à propriedade se sobrepõe a todos os outros.
Quais são as principais resistências à aprovação da PEC do Trabalho Escravo hoje?
A PEC está sendo debatida desde 2012. Todo mundo achou que ia ser relativamente simples aprová-la, até porque a sociedade brasileira entende que não há discussão na questão do trabalho escravo, mas a bancada ruralista, percebendo que a aprovação da PEC é só uma questão de tempo, mudou de tática e passou a questionar o conceito de trabalho escravo. A depender deles, trabalho escravo se resumiria apenas a pessoas que tem bolas com correntes presas aos pés, morando em senzalas tradicionais. Mas o trabalho análogo ao escravo tem características diferentes. E o artigo 149 é bonito porque o bem tutelado ali é a dignidade, que é um conceito mais amplo, e que contém a liberdade em seu conjunto. Os ruralistas querem deixar na definição só a questão da liberdade, e tirar a da dignidade. Mas nós estamos no século 21, não temos de retroceder em conquista de direitos e falar “tudo bem, o cara pode trabalhar como um animal, mas se ele puder ir embora quando ele quiser, não é trabalho escravo”. Por favor, né?
Como está hoje a execução do plano nacional para a erradicação do trabalho escravo?
O primeiro plano foi lançado em 2003 e o segundo em 2008. O atual plano tem 66 ações visando a erradicação do trabalho escravo. Tem ações sendo cumpridas, outras não sendo cumpridas, e outras sendo cumpridas parcialmente. A gente avançou muito na sensibilização dos autores públicos, da população, na punição trabalhista, até mesmo na questão criminal e na punição do envolvimento do setor produtivo. A gente tem hoje o pacto pela erradicação do trabalho escravo, que reúne mais de 400 empresas, que respondem por 30% do PIB brasileiro. Mas o processo para tirar esse pessoal dessa condição é lento. Falta reinserir as pessoas que foram vítimas, e mandar alguns praticantes para a cadeia.
O modelo econômico atual favorece o surgimento desse tipo de crime?
Não quero ficar culpando o sistema por isso, mas há uma responsabilidade global que é uma constante pressão pela redução de preços. Há uma pressão sobre o produtor rural para que ele produza cada vez mais por menos, e ele pode fazer concorrência desleal jogando o custo do trabalho para baixo. O varejo tem uma responsabilidade, portanto. Então a gente tem de ver o sistema econômico em que ele está inserido. Por que se faz roupa em Bangladesh? Por que os EUA fazem Iphone na China? Quando se força que o preço caia vertiginosamente, isso acaba se traduzindo na diminuição da qualidade de vida dos trabalhadores.
O consumidor é responsável também?
Nesse sistema, todos somos responsáveis. O consumidor é o menos responsável, ao contrário do que as pessoas pensam, porque ele não tem informação suficiente para ser cobrado. A gente desenvolveu, na Repórter Brasil um aplicativo para celular chamado Moda Livre, que avalia lojas varejistas de acordo com suas políticas de combate ao trabalho escravo. Essa informação é útil para envolver o consumidor no processo, porque ele precisa ser um fiel na balança também. É um sistema complexo, e necessita de muitas ações e conectadas. A PEC do trabalho escravo, por si só, não vai acabar com ele.
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“Todos somos responsáveis”. Entrevista com Leonardo Sakamoto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU