24 Novembro 2013
“Não estamos mais tão certos de que podemos acessar uma “coisa em si mesma” por trás de nossas representações dela, e, ainda assim, muitas pessoas sentem uma certa limitação no sentido de que estão sendo limitadas, às vezes, pelas representações que as definem”, pontua o teólogo.
“Partindo do trabalho sobre a imanência de filósofos como Deleuze ou Agamben, por exemplo, seria possível procurar estabelecer um elo entre essas ontologias e as exigências de uma compreensão mais imanente do divino feitas dentro de certas teologias contextuais”, observa o teólogo Colby Dickinson na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Segundo ele, para Zizek “o cristianismo é singular na medida em que aponta para sua própria profanação, sua própria distância em relação a Deus – algo que, no fim das contas, forma o ponto zero para uma nova forma de pensamento sobre o sagrado. Assim, ele repreende Agamben levemente por sugerir que a profanação seja o único objetivo aqui, pois tal ‘profanação absoluta’ parece terrivelmente próxima de outra forma de revitalização do sagrado para além das noções falsas de sacralidade formadas por meio de práticas de fazer de outrem um bode expiatório”.
Dickinson menciona que o Papa Francisco parece querer enfatizar que “o cristianismo tem uma mensagem mais profunda do que muita gente supôs que ele contivesse, uma mensagem que explode nossa percepção muito mundana de como se forma comunidade, e que essa mensagem precisa ser enfatizada repetidamente. Acho que ele está genuinamente lembrando algo que não é inteiramente desconhecido do que os ‘retornos à religião’ da filosofia contemporânea têm demonstrado: há uma necessidade central de derrubar alguns muros de divisão e de fazer isso a partir de dentro desses muros, trabalhando com a tradição a fim de vê-la se tornar mais justa no presente momento”.
Colby Dickinson é professor assistente de Teologia na Universidade Loyola, em Chicago. Ele é autor de Agamben and Theology (London: T&T Clark, 2011) e Between the Canon and the Messiah: The Structure of Faith in Contemporary Continental Thought (London: Bloomsbury, 2013) e de vários artigos sobre a filosofia e teologia continental contemporânea. É editor de The Postmodern ‘Saints’ of France (London: T&T Clark, 2013) e The Shaping of Tradition: Context and Normativity (Leuven: Peeters, 2013).
Confira a entrevista.
Foto: http://bit.ly/1aCeYCd |
IHU On-Line - Quais são as peculiaridades da fé no pensamento continental contemporâneo?
Colby Dickinson - De muitas formas, penso que estamos reiterando continuamente uma tensão histórica particular, a tensão entre uma medida (ou regra) normativa e os que procuram opor-se a ela ou anulá-la, o que eu chamaria de os supostos movimentos “antinomianos” (anti-nomos ou anti-“lei”), com os quais ainda não sabemos o que fazer, seja em termos religiosos ou políticos.
Por sua vez, o antinomismo surgiu como um rótulo usado durante a Reforma para descrever as pessoas que aparentemente queriam eliminar a lei inteiramente – ou seja, as que, com efeito, interpretaram a crítica de Martinho Lutero contra o sistema católico (isto é, suas “regras”, direito canônico, sistema de indulgências, etc.) como renúncia, em algum sentido, de toda lei. De muitas formas, essa reação era algo que já estava embutido no posicionamento de Jesus para com a lei judaica, e essa possibilidade só fez inflamar mais ainda as paixões de alguns dos mais devotos seguidores de Lutero.
Este último, entretanto, como sabemos, teve de tentar evitar que essas medidas antinomianas se afastassem demais da “regra de Deus”, que o próprio Lutero ainda queria manter em alguma forma. Como nos recordamos, ainda havia conexões demais a serem estabelecidas por Lutero entre a igreja estabelecida na terra e as estruturas de poder político existentes; por isso, em seus escritos, ele tentou manter alguma fidelidade à forma da lei e sua “necessidade”, e sua capacidade de utilizar a “espada” para refrear seus cidadãos desregrados era algo que ele tinha grande interesse em unir com o ordenamento da sociedade por parte de Deus.
Impulso “antinomiano”
O que me fascina particularmente hoje em dia é a maneira pela qual o pensamento continental contemporâneo nos fez voltar à contemplação desse impulso “antinomiano” fundamental que sustenta muitos movimentos políticos e religiosos revolucionários. De muitas formas – e Jacob Taubes retoma isso diretamente em sua obra sobre A teologia política de Paulo [The Political Theology of Paul] –, o próprio cristianismo é, talvez, o impulso antinomiano original por excelência em relação ao judaísmo (lei judaica ou torá). Isso é algo que ele extrai dos estudos de Gershom Scholem sobre movimentos messiânicos dentro da história judaica, em particular a história de Sabbatai Zevi. Como Giorgio Agamben relataria tais impulsos mais tarde (e citações de Sabbatai Zevi também estão presentes em sua obra), talvez haja dentro do judaísmo um impulso “antinomiano” messiânico interno que questiona as representações normativas que o judaísmo tem de si mesmo (como, por exemplo, quando os profetas clamam contra as estruturas do ritual religioso, quando uma noção de messias se desenvolve pela primeira vez, etc.). Este último ponto só parece ser mais sustentado ainda pelas muitas formulações propostas por Jacques Derrida a respeito do messiânico como força desconstrutiva interna que atua dentro de uma dada estrutura, e esta é uma posição que foi interpretada como judaica (G. Ofrat), ateísta (M. Hägglund) ou até cristã (L. Lawlor).
Minha reação a essas intepretações diversificadas tem sido dizer que todas elas estão corretas em certo sentido, pois todas estão tentando acessar aquele cerne messiânico central de nosso pensamento político e religioso que continua a motivar a reestruturação de nossas normas (sociais, culturais, políticas, religiosas e até econômicas) dadas. Continuamos tentando encontrar novas formas de descrever como estamos constantemente gerando novos paradigmas, e continuamente nos deparamos com um muro: de onde vem a reforma revolucionária? Como alteramos as estruturas que parecem ser imutáveis e de que tantas pessoas dependem (“em que creem”) em seu cotidiano? A resposta de Derrida, muito semelhante à de Agamben neste tocante, é que ela vem de dentro do que já operava como uma forma estrutural canônica, mas uma forma que foi empurrada até seus limites e está em processo de se tornar consciente de suas limitações dentro de um novo contexto e de sua necessidade de que seja feita mais justiça.
Um segundo olhar
O que percebo no presente é que o fundamento da fé (organizada) está sendo objeto de uma segunda olhada entre os pensadores filosóficos continentais contemporâneos porque ela parece aderir à dinâmica fundamental (ou talvez até gerá-la) que está sob nossos paradigmas políticos e éticos no Ocidente. Por mais que, culturalmente, procuremos nos afastar das tradições religiosas organizadas, há algo persistente dentro delas que merece atenção, e até a atenção de ateus autoproclamados (e acho que o atual papa está consciente disso, e está indo ao encontro de parte desse desejo com suas observações públicas). Interpreto a referência contínua de Slavoj Žižek ao cristianismo exatamente como um exemplo que mostra como necessitamos muito reformular o que significa interpretar a relação entre religião e política como central para nossa atual rede de formas culturalmente inteligíveis – mesmo, ou talvez especialmente, quando as pessoas acham que a fé está se tornando obsoleta para muitos.
IHU On-Line - Nesse contexto, qual é a relação que pode ser estabelecida entre os conceitos de messianismo e as formas canônicas?
Colby Dickinson - Minha interpretação, em meu livro Between the Canon and the Messiah, é que temos continuamente necessidade de reconhecer, manter e também abordar as configurações atuais das tensões que existem entre formas canônico-culturais dadas (sejam elas religiosas, escriturísticas, sociais, políticas, etc.) – aquelas estruturas aparentemente permanentes que foram passadas adiante como parte de nossa “tradição” – e suas próprias forças messiânicas internas que procuram constantemente – sejam elas queridas ou não – anulá-las a fim de torná-las mais responsáveis, e mais justas. Isto é – e demonstrando a mais antiga linguagem filosófica que ainda usamos –, existe uma tensão entre o desejo de representar algo e a apresentação da “coisa em si” que sempre parece nos escapar, e que na verdade revela as limitações de qualquer representação.
Aparentemente sempre persistiu, dentro da especulação filosófica, uma ideia de que há uma coisa além de nossas representações que não conhecemos plenamente, ainda que, se a conhecêssemos, compreenderíamos imediatamente quão limitadas (“injustas”) eram nossas representações dessa coisa.
Essa é talvez uma das mais antigas e prementes questões religiosas e uma questão que ainda precisa muito ser repensada a partir de novas perspectivas, pois não estamos mais tão certos de que podemos acessar uma “coisa em si mesma” por trás de nossas representações dela, e, ainda assim, muitas pessoas sentem uma certa limitação no sentido de que estão sendo limitadas, às vezes, pelas representações que as definem.
O que estou tentando discernir é maneira pela qual essa tensão (religiosa e política) entre uma representação e uma apresentação para além da representação está muito envolvida nas lutas de uma forma representativa “canônica” e sua anulação (“desconstrução”) por parte de forças que estão operando a partir de dentro dela para reformulá-la e torná-la uma representação mais acurada de algo que não pode ser nomeado.
Forças messiânicas
Para alguém como Derrida, tal tensão só poderia ser testemunhada como a presença espectral da messianicidade (nunca um “messianismo” histórico) atuante dentro de qualquer forma canônica dada, e aquilo que identificava, para ele, os pontos mais maduros para desconstrução em nome de uma justiça que sempre era ativa, sempre ainda “por vir”, dentro da estrutura canônica (ou do texto canônico) com que ele estava trabalhando naquele momento particular no tempo.
Que certos pensadores achem que tal tensão não pode ser mantida e que deveríamos admitir ou que sempre há apenas representações diante de nós (Derrida, Žižek) ou que todas as representações deveriam ser eliminadas (o que Agamben parecia estar sugerindo durante anos como a verdadeira abordagem “antinomiana”, embora talvez não tanto recentemente), ainda estamos lidando com aquela mesma questão fundamental: o que devemos fazer com os impulsos antinomianos? Como tais forças messiânicas alteram as estruturas (canônicas) que criamos, e como lidamos com o impulso de destruir ou reformar tais estruturas? Podemos falar sobre os desejos inerentes que temos de trabalhar contra o sistema? Podemos aprender a vê-los chegando e negociar com eles mesmo enquanto estamos construindo sistemas atuais, como é o caso daqueles arquitetos que efetivamente planejam locais futuros de expansão dentro de um projeto atual, e coisas assim?
Como exemplo concreto dessa dinâmica, quando preenchemos alguns formulários-padrão do governo (americano), eles nos perguntam com que “raça” ou “etnia” nós nos identificamos – uma coisa notoriamente difícil de determinar para algumas pessoas – historicamente um funcionamento muito problemático de percentuais para algumas (isto é, os americanos indígenas, que não são mais classificados como tais se forem considerados afastados demais de seus ancestrais), ou a circunstância de ser completamente definido por um pequeno percentual para outras. Quando eu era pequeno, tais representações consistiam principalmente de apenas “branco”, “afro-americano”, “asiático” e “outro”.
Ao longo dos anos, essas categorias limitadas foram consideradas inadequadas (ou “injustas”), e as categorias foram ampliadas para incluir muitos outros agrupamentos. Estamos vendo essa ampliação contínua em nome de uma representação mais igual surgindo em todo o globo agora e incluindo certas coisas que anteriormente eram “inconcebíveis”, como o gênero (p. ex., a categoria oficial “terceiro gênero” da Austrália). É dessas ampliações que estou falando quando digo que uma forma canônica está sendo anulada em meio a clamores por mais justiça e em meio a um reconhecimento de que nossas categorias atuais são passíveis de serem anuladas a partir de dentro, mas esse é apenas um pequeno exemplo conveniente entre outros. Identidade nacional, reformas da imigração e muitos outros assuntos ainda circulam na periferia dessa mesma dinâmica fundamental.
Divisões canônicas
Eu deveria acrescentar, também, que a chave para reconhecer a anulação de uma dada forma “canônica” a partir de dentro é um mecanismo ativo de autorreflexividade ou autoconsciência (relacionada de muitas formas com as raízes da “confissão” e coisas semelhantes). Assim como S. Paulo foi capaz de “dividir as divisões” do universo judaico da antiguidade, levando-as da divisão de judeu versus gentio para uma reflexão interna mais profunda sobre como o próprio judeu estava dividido interiormente em Carne e Espírito, assim nós também somos capazes, se aplicarmos mecanismos de autorreflexão semelhantes, de perceber as limitações de nossas próprias divisões categóricas (canônicas). Refletir durante tempo suficiente sobre o que significa ser (ou representar-se como) um “homem” – como apenas um exemplo entre muitos – pode levar rapidamente a percepções profundas sobre como quaisquer descritores que procuremos usar para definir tal coisa podem também ser contestados, questionados e reposicionados em outras formas.
IHU On-Line - Como essas ideias se inter-relacionam e quais são os pontos de ruptura nas obras de Benjamin, Derrida e Agamben?
Colby Dickinson - Tenho estado interessado na adoção de métodos hermenêuticos por parte de Ricoeur, especialmente na medida em que eles parecem, às vezes, oferecer à teologia a única forma de entender como ela precisa se formular em meio a uma série de tensões (políticas) entre normas canônicas e sua anulação messiânica, e especialmente na medida em que tal tensão está no cerne tanto das escrituras judaicas quanto das cristãs. Penso que o próprio Ricoeur aponta para tal compreensão em muitos lugares de sua obra, particularmente em sua exposição das tensões dentro da atitude farisaica em A simbólica do mal, bem como em seu livro A memória, a história, o esquecimento, onde somos lembrados de versões canônicas da história e das distorções delas, mas também de seus esforços para produzir uma visão mais acurada da história.
Muitas vezes, interpreto Derrida como sendo realmente bem mais hermenêutico do que ele muitas vezes reconheceu, e acho que ele foi muitas vezes interpretado equivocadamente neste ponto; ele está bem mais próximo de Ricoeur do que muitos talvez suspeitem. Também de sua parte, a obra mais recente de Agamben intitulada O reino e a glória parece oferecer uma tensão hermenêutica que tem mais afinidade com Ricoeur do que talvez tenha sido percebido primeiramente em sua obra, que muitas vezes pode ter parecido favorecer demais apenas aquelas tendências “antinomianas” das quais já falei. Sua afirmação aí de que uma comunidade genuína pode possivelmente ser encontrada mantendo-se uma tensão entre a lei, por um lado, e a Igreja (ou forças messiânicas), por outro, é realmente surpreendente, e algo que parece ilustrar muito bem alguns dos aspectos hermenêuticos mais sutis que Ricoeur destaca, embora reste muito mais a ser dito sobre essa conexão.
Em meu próprio trabalho, até agora tentei – mas de fato só preliminarmente – visionar como poderia ser uma “hermenêutica teológica radical”, seguindo a obra de Ricoeur de muitas formas como guia. Não tenho certeza se minha versão da hermenêutica ainda acaba sendo uma hermenêutica no final ou se ela é “radical” demais (tendo, nesse sentido, talvez demais em comum com o uso da palavra “radical” no livro Radical Political Theology, de Clayton Crockett), mas gosto de pensar que alguma forma de hermenêutica sempre está atuante em minhas leituras de contextos e autores contemporâneos.
IHU On-Line - Nessa lógica, qual é a contribuição de Jan Assmann, Gershom Scholem, Jacob Taubes e Paul Ricoeur no estudo dos conceitos de messianismo e formas canônicas?
Colby Dickinson - De muitas formas – e neste ponto poder-se-ia consultar a obra de Jan Assmann para aprofundar esse assunto – pode-se dizer que qualquer representação canônica exerce algum grau de violência em sua inscrição do que poderíamos chamar de seus “sujeitos canônicos” – as pessoas cujas identidades são formadas em relação a uma dada cultura canônica.
Até mesmo a entrada na língua, para todas e todos nós, representa uma certa experiência de ser limitados em nossas expressões. Só temos um certo léxico específico para usar na descrição de nossas experiências e não temos condições, na maior parte, de expressar um sentimento para além do uso dessas palavras. Assim, passamos por violência ao nos identificar com uma forma canônica específica e ao permitir que certas representações nos identifiquem. Por exemplo, eu sou classificado corretamente como um “católico branco, americano, do sexo masculino, heterossexual, etc.”, embora também esteja bem consciente de que esses termos não relatam adequadamente muito do que eu sou e de que, às vezes, fico preso por esses descritores de maneiras com as quais não me sinto à vontade e contra as quais me rebelo. Faço o possível, na verdade, para interrogar esses termos na medida em que eles se aplicam a mim e contestar o que essas palavras significam quando elas parecem não se aplicar a mim tanto quanto efetivamente se aplicam a mim.
Pressupostos “antinomianos”
Essa oscilação entre aceitar uma dada norma canônica como inevitável e como o sacrifício necessário para um senso compartilhado de inteligibilidade cultural (ou língua) e buscar anular alguns dos aspectos mais constritivos ou violentos de um dado sistema cultural-linguístico é, ela própria, uma tensão inevitável e necessária. Por mais que tentemos, não conseguimos eliminá-la, embora, talvez, consigamos formar uma forma “pura” de crítica que nos permita reconceber a tensão. Penso que é isso que motivou o trabalho de Agamben, por exemplo, desde o início: tentar identificar como poderia ser essa crítica e como poderíamos nos envolver nela diariamente. Isso certamente é, em minha opinião, o que continua a animar certos pressupostos “antinomianos” em relação a como deveríamos abordar uma norma ou estrutura canônica dada.
IHU On-Line - De que forma podemos compreender a “violência” do Canon?
Colby Dickinson - Gastamos muito tempo tentando diferenciar entre as várias religiões e escrituras existentes hoje em dia, bem como as interpretações variadas dessas tradições que continuam a proliferar ao longo do tempo, mas não estou realmente convencido de que a maior parte dessa discussão nos ajude muito. O critério-padrão usado para classificar essas tradições religiosas é, muitas vezes, um critério muito vazio: qual delas é verdadeira?
Eu preferiria que começássemos a abordar as várias religiões do mundo – o que sempre significa abordar cada linha interpretativa particular de uma dada tradição religiosa, e que talvez possam, ou não, ser agrupadas sob um único nome (as “judaicidades” de Derrida é um termo que me ocorre nesse sentido) – perguntando a respeito da proximidade delas para com a violência, outra medida da “verdade”. E o que a proximidade delas para com a violência – bem como o fato de admitirem ou negarem essa proximidade – nos diz sobre sua existência contínua? Em outras palavras: são certas tradições religiosas (mesmo dentro de uma dada “religião”) capazes de se desconstruir e confessar que estão dispostas a se envolver em ações violentas para certos fins circunscritos? Esses fins são justificáveis, em última análise? E elas são transparentes (autorreflexivamente conscientes) a ponto de até reconhecer sua relação com violências específicas, existentes?
Minha proposta é que talvez um diálogo como esse nos ajude a discernir uma série de coisas em relação à religião em geral, começando por nossos desejos de rotular uma dada tradição escriturística ou litúrgica como “canônica”, de dar mais, e não menos, definição de nossos vínculos comunitários (quem está dentro, quem está fora, inclusão/exclusão) e de encenar representações violentas quando não temos condições de consolidar nossa comunidade como tal. Essencialmente, essa crítica provém diretamente do trabalho de René Girard sobre o bode expiatório, e a pergunta tem de ser feita mais diretamente: que grupos religiosos estão dispostos a fazer outros de bode expiatório, de modo que sua própria gente se sinta mais segura, mais unida, mais leal entre si, justamente através do sacrifício de outra pessoa ou outro grupo de pessoas? O vigoroso retrato feito por Girard dessa dinâmica dentro de muitas religiões e narrativas mitológicas diz que tais histórias aparentemente “sagradas” são, na realidade, pouco mais do que esforços ideológicos para formar o senso de coesão de um grupo e são aquilo que outras escrituras talvez de fato rejeitem (particularmente os cânones judaico e cristão, mas também outras, como certas escrituras hinduístas, entre outras).
Salto no escuro
Uma das coisas que eu gostaria de explorar mais do que Girard o faz é a maneira em que sua teoria poderia nos ajudar a perceber como até mesmo nossa busca de definições, representações, certeza e coisas semelhantes pode ser vista, às vezes, como formada a partir de dentro dessa busca de coesão grupal e segurança. Creio, com efeito, que nossas deduções muito “lógicas” podem, com frequência, ser uma resposta à percepção de uma ameaça e um momento de imposição violenta a uma situação que deveria permanecer isenta de sobredeterminação. Estou pensando nesse sentido especificamente em como as pessoas, hoje em dia, muitas vezes tentam “definir” sua fé, e o fazem com uma mentalidade que está tentando ter “certeza” a respeito dela.
John Henry Newman, de sua parte, salientou certa vez que a fé tem múltiplas camadas e que se chega a ela através de uma série complexa de probabilidades (p. ex., nosso contexto, situação familiar, experiências anteriores, argumentos racionais, entre outros) que convergem para levar uma pessoa à fé. A fé não é um simples “salto” para o escuro nesse sentido, embora possa implicar muitos pequenos saltos que estamos dispostos a dar por razões muito específicas em pontos muito específicos ao longo do caminho, ainda que esses fatores também possam verdadeiramente permanecer desconhecidos para nós para sempre. Tentar reduzir essa complexidade a uma “certeza” específica significa, em última análise, fazer alguma outra coisa de bode expiatório para produzir tal estado. Ou seja, a fim de me dizer que eu tenho uma fé configurada assim e assado, preciso esquecer isso ou aquilo, preciso deixar de me envolver com a fé de meu vizinho budista, etc. Mas essa redução da complexidade da fé é muito comum atualmente, e solapa muitas intepretações possíveis da religião que, muitas vezes, ficam completamente despercebidas.
Sagrado e violência
Acabo de concluir a leitura do vasto tomo intitulado Menos que nada, de Žižek, e fiquei bastante contente em ver que, em sua conclusão, há uma espécie de alternância entre as teorias de Girard e a obra de Agamben, justamente no tocante a essa questão da violência e do sagrado na medida em que ela tange a ideologia. O que Žižek sustenta é, mais ou menos, que a ideologia, seja em suas formas econômicas ou políticas, é configurada por uma certa relação entre o “sagrado” e a violência, e que pode ter pouco ou nada a ver com as reivindicações efetivas do cristianismo – um aspecto que ele sublinha de um modo que me lembra a forma como Vattimo se apropria de Girard. O que ele afirma, com efeito, é que o cristianismo é singular na medida em que aponta para sua própria profanação, sua própria distância em relação a Deus – algo que, no fim das contas, forma o ponto zero para uma nova forma de pensamento sobre o sagrado. Assim, ele repreende Agamben levemente por sugerir que a profanação seja o único objetivo aqui, pois tal “profanação absoluta” parece terrivelmente próxima de outra forma de revitalização do sagrado para além das noções falsas de sacralidade formadas por meio de práticas de fazer de outrem um bode expiatório. Sugeri, de modo geral, a mesma coisa no final de meu livro Agamben and Theology e, em outras publicações, escrevi sobre como essa interpretação compartilha a tese básica de Girard referente à violência e ao sagrado.
IHU On-Line - E que relações podem ser estabelecidas entre a violência e o sagrado? Esse binômio é atual para compreendermos o fenômeno religioso? Por quê?
Colby Dickinson - Tem havido bastante interesse em tentar verificar como, exatamente, poderia ser uma “teologia da imanência” na atualidade, e fico fascinado com o número de teólogos que, de tempos em tempos, se envolvem na tentativa de montar algo assim. Partindo do trabalho sobre a imanência de filósofos como Deleuze ou Agamben, por exemplo, seria possível procurar estabelecer um elo entre essas ontologias e as exigências de uma compreensão mais imanente do divino feitas dentro de certas teologias contextuais (p. ex., M. Daly, G. Jantzen, S. Welch). Aquilo de que muitas vezes se fala menos, penso eu, é como essas conclamações a uma teologia da imanência são, com frequência, realmente contestações políticas de associações masculinas tradicionais da transcendência com estruturas hierárquicas e dizem pouco – se é que dizem – sobre a natureza do divino – se, afinal, se pudesse dizer qualquer coisa a respeito do divino a partir de uma posição teológica (enquanto filosoficamente especulativa).
Penso, entretanto, que qualquer discurso sobre uma “teologia da imanência”, visto do interior de um contexto teológico tradicional, já é uma ideia assustadora para muitas pessoas. Maurice Blondel, que pessoalmente propôs, certa vez, um “método da imanência” como forma de se envolver com o que está à nossa frente e de enxergar suas limitações em si mesmo, remetendo-nos, assim, para o que é “transcendente” em relação a nós, foi, ele próprio, acusado de negar a transcendência de Deus, e acho que há muitas pessoas dentro da igreja atualmente que hesitam até mesmo em invocar uma expressão como “teologia da imanência”.
Colapso
Nesse sentido, fico muito intrigado com os vários filósofos “orientados pelo objeto” que tentam levar ao colapso a (enganosa) distinção tradicional entre o sujeito e seu objeto. Os esforços de Bruno Latour para desmontar esse dualismo sujeito-objeto, em minha opinião, sinalizam algo assim como o colapso da divisão-padrão entre transcendente e imanente, bem como uma abertura para um repensar completo da separação transcendência/imanência, embora muito trabalho ainda tenha de ser feito nesse tocante. O novo livro de Latour sobre linguagem religiosa (Rejoicing) é útil nesse sentido, assim como o é o novo livro de Adam Miller sobre Latour, que é um passo na direção certa, penso eu, e gostaria de ver muito mais pesquisa sendo realizada nessas áreas.
IHU On-Line - A partir das ideias de Rene Girard e de Agamben, podemos dizer que a lógica sacrificial invadiu outras esferas da sociedade, como a economia, por exemplo. Como você percebe essas relações e quais são suas consequências?
Colby Dickinson - Acho que esse momento em que vivemos agora – presos entre essas tensões de uma cultura crescentemente secularizada e um certo retorno da religião – é uma faca de dois gumes. Há muitas grandes oportunidades a serem aproveitadas para redescrever o papel valioso que a religião desempenha a continuará a desempenhar na vida das pessoas no futuro, mas também há, penso eu, uma cautela profundamente prática que deveríamos ter no sentido de que muitas pessoas vão utilizar esse espaço para fazer lobby em favor de mais poder político e reafirmar os vários fundamentalismos que já nos afligem. É por isso, mais uma vez, que acho que devemos começar examinando seriamente nossas próprias “confissões”, as raízes da consciência autorreflexiva que estão em nós e nos conclamam a tornar-nos mais conscientes dos rótulos injustos que aplicamos a nós e aos outros. Sem tal mecanismo de autorreflexividade, continuaremos perdidos.
Dessa maneira, penso que simplesmente aceitar a aparente cisão entre o sagrado e o secular muitas vezes significa deixar de perceber a verdadeira dinâmica à qual devemos prestar atenção: que o profano já está preso dentro do sagrado e vice-versa. Até mesmo essa mais fundamental divisão cultural para algumas pessoas pode, e deveria, ser dividida. Muitos muros podem ser derrubados se nos dermos conta de que nossa experiência de Deus deve, por sua própria natureza, ser, às vezes, uma experiência da ausência de Deus. Há uma longa tradição nesse caso, desde Paulo, passando por João da Cruz, até Thomas Merton e muitos outros, que sabe como falar dessas coisas, embora esse seja um diálogo que muita gente abandonou atualmente.
Acho que há muitas oportunidades singulares que são subsequentemente perdidas quando concluímos que não nos resta nada a dizer uns aos outros, quando a verdade é que resta tanta coisa a ser dita.
IHU On-Line - O que há por trás de uma “teologia da imanência” em nossos dias?
Colby Dickinson - Como já mencionei, estamos nos perguntando continuamente como devemos mudar as estruturas religiosas e políticas existentes, que é uma questão especialmente difícil quando as estruturas de que estamos falando implicam uma política profundamente arraigada dentro dessas estruturas religiosas. Olho o que o Papa Francisco está fazendo no momento, com os olhos arregalados que tenho visto numa série de teólogos dos Estados Unidos de momento. O que ele irá mudar, e como isso será visto pelas pessoas que ele pastoreia? Seus comentários recentes sobre o clericalismo como mentalidade estreita foram esclarecedores nesse sentido, pois ele percebe seu próprio desejo de ser “anticlerical” quando confrontado com as estruturas (e suas fantasias ideológicas correspondentes) do clericalismo. Mas também se deveria observar cuidadosamente que ele começou essa entrevista específica com a admissão (confissão) de que é um pecador, e de que é somente a partir desse reconhecimento que ele pode seguir em frente.
Eu apostaria que a crítica de Girard a respeito de nosso falso fundamento comunitário compartilha da crítica do papa acerca das identificações autorreferenciais feitas a fim de que nos sintamos mais seguros e mais parte de uma comunidade unida, mas, em última análise, enganadora. E suspeito que sua disposição de formar seu senso de comunidade de um modo diferente esteja menos inclinada, então, a definir aqueles membros que precisam ser excluídos dela (isto é, a obsessão que muitas pessoas têm tido dentro da Igreja Católica com os homossexuais, os que buscaram abortos, casais divorciados, etc.). O que o papa parece querer enfatizar é que o cristianismo tem uma mensagem mais profunda do que muita gente supôs que ele contivesse, uma mensagem que explode nossa percepção muito mundana de como se forma comunidade, e que essa mensagem precisa ser enfatizada repetidamente.
Acho que ele está genuinamente lembrando algo que não é inteiramente desconhecido do que os “retornos à religião” da filosofia contemporânea têm demonstrado: há uma necessidade central de derrubar alguns muros de divisão e de fazer isso a partir de dentro desses muros, trabalhando com a tradição a fim de vê-la se tornar mais justa no presente momento. Penso que o papa está tocando em algumas possibilidades nesse sentido, embora somente o tempo vá dizer se ele está verdadeiramente comprometido em dar início a esses processos. De momento, em minha opinião, parece que ele está verdadeiramente tentando fazer exatamente isso. Seguindo as percepções de Žižek, talvez a aparência do que o papa está fazendo seja realmente tudo o que importa no fim das contas: o que vemos o papa fazer é de fato o que ele está fazendo, e essa é a imagem que irá reconfigurar a igreja, e talvez o mundo.
Nota: A fonte da imagem que ilustra a reportagem é:http://migre.me/gJtyo
Veja também:
(Por Márcia Junges / Tradução: Luís Marcos Sander)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A estrutura da fé no pensamento continental contemporâneo. Entrevista especial com Colby Dickinson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU