12 Setembro 2013
O Papa Francisco colocou-se como verdadeiro "intercessor" – de inter-ceder, "dar um passo entre" –, porque se colocou entre as partes em conflito, desarmado, sem defender interesses próprios, para pedir a paz, oferecendo assim o ícone da autêntica oração cristã que se eleva a Deus, mas quer ser ao mesmo tempo eficaz responsabilização entre os homens.
A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 07-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Não é mais possível pensar que na era atômica a guerra possa ser utilizada como instrumento de justiça". Essas são as palavras do Papa João XXIII na Pacem in terris, a encíclica dirigida pela primeira vez também a "todos os homens de boa vontade".
Poucas semanas depois, João XXIII morreria e, poucos meses antes, uma intervenção pessoal sua tinha evitado que a "guerra fria" entre EUA e URSS estourasse em conflito nuclear por causa das tensões em torno a Cuba. Hoje, a 50 anos de distância, o Papa Francisco decide resolutamente pôr em jogo, por sua vez, toda a autoridade adquirida em poucos meses de pontificado para parar os ventos de guerra que se adensam perigosamente sobre a Síria.
O apelo por um dia de oração e de jejum pela paz no Oriente Médio e em todo o mundo, os repetidos e vigorosos chamados para evitar a guerra, a convocação do corpo diplomático credenciado no Vaticano para explicar as razões do diálogo e a irracionalidade da violência, a carta enviada ao presidente Putin e aos participantes do G20 em São Petersburgo, os contatos discretos iniciados pela rede diplomática vaticana: o Papa Francisco não está deixando nada de não tentado para frear a corrida ao irreparável.
O Papa Francisco colocou-se como verdadeiro "intercessor" – de inter-ceder, "dar um passo entre" –, porque se colocou entre as partes em conflito, desarmado, sem defender interesses próprios, para pedir a paz, oferecendo assim o ícone da autêntica oração cristã que se eleva a Deus, mas quer ser ao mesmo tempo eficaz responsabilização entre os homens.
Não se trata de ignorar que a situação já é hoje e há muito tempo trágica na Síria, assim como em outras partes do mundo para milhões de civis, não se trata de atribuir responsabilidade a um ou a outro campo – além disso, os "campos" são bem mais do que dois e malditamente entrelaçados entre si. Trata-se, ao invés, de captar um momento crucial, um ponto de não retorno e de pronunciar palavras fortes, proféticas, "escutem ou não escutem!", como adverte o profeta Ezequiel (Ez 2, 5).
No vibrante apelo do papa não há cálculos de oportunidade ou avaliações sobre a possibilidade efetiva de sucesso da intervenção: uma palavra forte contra a guerra, a violência e os massacres deve ser pronunciada não porque se tem certeza de ser ouvido, mas porque é justo e necessário fazê-lo, é decisivo lembrar a quem finge ter uma memória curta ou distorcida a multiplicidade de conflitos iniciados de modo limitado, pontuais, de breve duração e que se transformaram em tragédias enormes.
Na era atômica, na era das armas de destruição em massa – independentemente de quem dispõe delas – realmente "não é mais possível pensar" em restabelecer a justiça violada através esse instrumento de morte que sempre é a guerra.
O Papa Francisco retoma com vigor e marca próprios o apaixonado grito de inúmeros dos seus antecessores na cátedra de Pedro: a guerra, "inútil massacre", o "tudo está perdido com a guerra", o "nunca mais a guerra!" são expressões fortes usadas há ao menos um século por vários papas, de Bento XV a João Paulo II. E é significativo que hoje o Papa Francisco encontre uma profunda sintonia e um convicto apoio dos bispos de todo o mundo, mesmo nas nações mais envolvidas nos conflitos em curso ou iminentes.
Se podemos considerar como tragicamente "normal" que todas as Igrejas da Síria e do Oriente Médio são unânimes em pedir que se evite a resposta das armas à violência injusta e desumana que já estão sofrendo, surpreende favoravelmente, por exemplo, a firme posição de episcopados como o norte-americano, que convida os membros do Congresso dos EUA a rejeitar a proposta de ataque militar contra a Síria. Na mesma linha, pode-se ler o apelo sincero dos bispos italianos, prontos desta vez a se unirem à voz do papa.
Mas, é preciso perguntar, como oração e jejum, na sua desarmada fraqueza, podem enfrentar e parar monstruosas máquinas de guerra que interesses muitas vezes inconfessáveis mantêm eficientes e funcionando justamente a preço de conflitos contínuos em áreas que se pensa que se pode controlar e limitar? Ora, para um crente, a oração é diálogo com Deus, escuta da sua Palavra e invocação para que leve a cumprimento o que as pessoas só podem iniciar.
Mas, em sentido mais lato, rezar também é "pensar diante do Outro", pôr-se diante de instâncias éticas que nos superam e pedem para reler a nossa vida e os eventos sob uma luz que não olhe apenas ou principalmente para os próprios interesses. Nesse sentido, creio eu, a oração é compartilhável até mesmo por quem não é crente, por aqueles "homens de boa vontade" que – segundo o significado original do Evangelho de Mateus que usa essa expressão – não são as pessoas que têm boas intenções, mas sim os seres humanos todos, objeto do beneplácito, da "boa vontade" de Deus.
O jejum, pois, é práxis presente não só em todas as tradições religiosas, mas também no pensamento filosófico, na ação política e no comportamento ético de homens e mulheres de todas as áreas culturais e geográficas. Ele é um instrumento de conhecimento de si mesmo, de leitura dos próprios desejos e é antídoto à voracidade de posse que nos habita.
Eis, então, que oração e jejum, aos quais o Papa Francisco convida, podem ser instrumentos universais para discernir o que é bom para a humanidade toda e não só para a "nossa" parte, para tomar decisões com critérios outros, diferentes com relação à autorreferencialidade e à própria vantagem.
Certamente, àqueles que têm responsabilidade de governo não são pedidos "gestos simbólicos", mas sim a assunção de responsabilidade e, acima de tudo, coerência entre o que declaram – talvez por serem católicos e prontos para obsequiar o papa – e as modalidades do seu exercício do poder e da sua ação política.
Esperar que milhões de pessoas que rezam e jejuam em todo o mundo possam mudar os destinos da história pode parecer um sonho utópico, mas é responsabilidade de cada um de nós fazer com que a utopia encontre um lugar para morar, que o inesperável se torne realidade, que paz e justiça se abracem e que o ser humano não seja mais inimigo do ser humano.
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Assim como o Papa João XXIII. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU