Por: André | 28 Agosto 2013
Sobre a parede do living de sua casa encontra-se emoldurada e pendurada orgulhosamente a nomeação como secretária de Recursos Naturais e Ambiente Humano da Argentina, com data de 25 de outubro de 1973 e assinada pelo então presidente e por seu ministro de Economia, na época, respectivamente, Juan DomingoPerón e José Ber Gelbard.
Fonte: http://bit.ly/1c8jQ1a |
Yolanda Ortiz, química por formação, inaugurou uma área totalmente nova na Argentina e em muitos países do mundo. Ambientalista da primeira hora, Ortiz assinala que na época a “Mensagem Ambiental aos Povos e Governos do Mundo”, que Perón havia lançado em Madri em 1972, era como uma Bíblia para ela. Não foram tanto os pinguins ou as baleias as espécies que a aproximaram da ecologia, mas as condições de trabalho dos operários, “porque não havia ninguém que controlasse isso, sempre ganhavam os patrões, e o que eu buscava era que os trabalhadores tivessem um ambiente digno de trabalho”, evoca.
Durante sua curta gestão – até que María Estela Martínez de Perón assumiu a presidência e o Triplo A [como era conhecido o esquadrão da morte Aliança Anticomunista Argentina] iniciou suas arbitrariedades – ocupou-se, por exemplo, de proibir a habilitação das empresas que não declaravam como tratariam seus dejetos. Muitas das suas iniciativas entravam em conflito com a visão economicista de alguns funcionários do governo, que consideravam que medidas desse tipo freavam o desenvolvimento da sociedade. “Os temas ambientais são questões econômicas. Não se pode obter um desenvolvimento sustentável sem superar a pobreza; devemos atingir uma harmonia entre a produção e o meio ambiente”, assinala firme, mas com a suave cadência que delata sua origem nortista.
Nesta conversa com o Página/12, repassa boa parte da sua militância ecológica, espraia-se em sua visão política sobre o tema e conta quais são as novas iniciativas em que está trabalhando, para as quais considera indispensável gerar “uma revolução mental e dos afetos”.
A entrevista é de Verónica Engler e publicada no jornal argentino Página/12, 26-08-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Quando você migrou de Tucumán para Buenos Aires para estudar, as mulheres eram uma absoluta minoria nas universidades. Como se decidiu pelas ciências químicas?
Quando terminei o ensino médio, vim com minha família para Buenos Aires, porque tinha um irmão com problemas de saúde e essa era a única forma de continuar o tratamento. Em Tucumán havia muito poucas oportunidades, e as existentes eram muito caras. Quando chegamos, me senti muito perdida, havia deixado meu lugar de pertença e Buenos Aires era atomizante. Então me comprometi muito com a Igreja e com todas as ações do bem comum, sobretudo com as favelas. Isso me tomava muito tempo, mas além disso me fez ver que tinha que buscar uma forma de ganhar dinheiro para viver, e então optei pela química, sem pensar muito quanto à questão vocacional, sem muita abertura, era por uma questão de sobrevivência. Mas me reconciliei com a química quando vi que podia desenvolver meu lado social, me ocupar dos ambientes insalubres dos operários, por exemplo. Aí comecei a gostar muito mais e me abriu a toda a questão da contaminação, do modelo de produção equivocado que se havia tomado, que estava demonstrando seu fracasso porque destruía a natureza e o tecido social. O sentido da justiça social eu já o havia tomado de Perón, de quando estive em Tucumán, isso me marcou muitíssimo. Por isso, me dediquei a ajudar as pessoas pobres, onde justamente não havia as relações de equidade, nem de ajuda.
O que foi que viu nos engenhos de açúcar de Tucumán durante o governo de Perón?
Vi como os trabalhadores que viviam para colher a cana de açúcar, com suas famílias e seus filhos, depois tinham outro tipo de vida, mais de acordo com a dignidade do ser humano. Foi muito clara a mudança que houve com as políticas de Perón, sobretudo pelo que se via da dominação que havia, dos grandes fazendeiros, como os Patrón Costa.
Depois de formada, você começou a se orientar para as questões ambientais, algo absolutamente novo para a época. Quais foram as inquietudes que tinha nesse momento?
Bom, eu comecei primeiro na Shell e depois na Direção de Aduana para controlar que os produtos que saíam e chegavam ao país não estivessem contaminados. Então entrei nesse tema. Além disso, nesse momento havia todo um movimento ambiental na saúde pública, ao qual me uni. Me interessavam muito as condições de trabalho dos operários, porque não havia ninguém que controlasse isso, sempre ganhavam os patrões. Decidi ocupar-me disso porque pensava que podia fazer algo, sempre pela busca da justiça social, e de que realmente os trabalhadores tivessem um ambiente digno de trabalho. Então me decidi a estudar essas questões de contaminação na França e obtive uma bolsa, razão pela qual me formei ali na década de 1960, até final de 1868.
Você viveu o Maio de 68 ao vivo e diretamente. Como foi essa experiência para você?
Foi muito lindo ver como se buscava o exercício pleno da liberdade. Havia o tema ambiental, mas ligado à democracia, à liberdade, a uma atitude contestatória do modelo de desenvolvimento. Uma das buscas fundamentais desse momento tinha a ver com o acesso a ser feliz. Tudo isso me mobilizou muitíssimo.
O que foi estudar na França?
Eu estava Toxicologia, na Faculdade de Ciências Exatas, onde estudávamos o ar de Buenos Aires, o smog. Já antes de ir para a França estudávamos as consequências dos hidrocarbonetos na cidade. Eu fui com uma posição em relação ao que queria ver lá, porque eles também mediam o ar de Paris. O procedimento que utilizávamos era praticamente o mesmo, mas os equipamentos eram totalmente diferentes; os de lá eram muito mais sofisticados. E vi que chegávamos a estar muito perto do que eles faziam lá, com elementos muito rudimentares.
Que implicava ser ambientalista quando você começou a trabalhar nestes temas?
Para mim era descobrir um projeto de vida. Cada coisa era como abrir uma caixa de Pandora, encontrar-se com pessoas maravilhosas, que ofereciam não somente conhecimento, mas também afeto. O que acontecia aqui era que se queria aprender, mas não tinha como. Outra coisa eram os países onde se via que se fazia o bolo grande, que todos participavam. Nesse tempo se pensava que se podia trabalhar sozinho, e hoje realmente se comprova que não é possível trabalhar individualmente em ecologia, porque é o coletivo que tem que chegar ao bem comum, pela complexidade. Ainda hoje não se entende o paradigma da complexidade, ainda continuamos reduzindo a realidade a fatias de pão.
Você foi a primeira secretária de Recursos Naturais e Ambiente Humano da Argentina durante a terceira presidência de Perón, um cargo inédito na Argentina e em muitos países do mundo. Como se chega a criar essa secretaria?
Não estávamos no zero, mas se havia trabalhado mal em alguns casos. Eu estava trabalhando no tema da análise dos produtos que entravam e saíam do país. Então me ocorreu fazer algo com o Ministério do Trabalho, e isso tomou corpo. Fizemos um trabalho de campo nos ambientes de trabalho, algo que o Estado não fazia, e embora houvesse queixas pela situação do trabalhador, sempre ganhava a parte patronal. Nesse momento, nas fábricas de modo geral as pessoas não se cuidavam, tampouco os operários, nós mesmos não nos cuidávamos quando fazíamos pesquisas, trabalhávamos em condições que não eram as corretas, com muito risco. Mas eram os primeiros tempos, e era preciso avançar na metodologia. Inclusive conseguimos que se fizesse uma reunião sobre o ar limpo em Buenos Aires. Já nos anos 1970, Perón faz sua mensagem ambiental (“Mensagem Ambiental aos Povos e Governos do Mundo”, em Madri, em 1972) e também o movimento de Maio de 68 havia dado seus frutos em toda uma extensão de seus princípios. Aparece o Laboratório de Hidráulica do país como um dos mais importantes da América Latina, também na área de florestas se havia feito muitíssimo, em Parques Nacionais. E também na mineração se começava a fazer uma promoção mineira, mas com um cuidado muito grande em relação ao meio ambiente. Havia três senhores secretários administrando essas áreas e então Perón decidiu que se criasse uma quarta secretaria, que fosse a do Ambiente Humano e que estivesse acima das outras. Essa foi uma jogada muito forte e os secretários não o perdoaram por terem sido substituídos por uma mulher. Ele teve uma visão como nenhum estadista, viu com muita clareza que a questão ambiental não era um problema a mais, mas “o” problema. Então era preciso tomar uma atitude inteligente, e tinha que estar a toda hora me justificando, coisa que não acontece com os homens. Foi muito difícil, mas também foi bonito ver as possibilidades que havia.
Como foi essa etapa de gestão?
Muito curta, mas fascinante. Estive um pouco menos de dois anos no cargo, até 1975. A primeira coisa que fiz foi um convênio com o Ministério da Educação, onde estava (Jorge) Taiana pai, porque para mim era o componente de maior valor estratégico para mudar os hábitos e a visão de desenvolvimento. Por outro lado, as empresas até então diziam que os dejetos que produziam eram externalidades, mas que não chegava a ser um problema. Nós colocamos que não era possível que as empresas não considerassem o ambiente: se tinham lucros, não podiam deixar arruinado o ambiente de onde tiravam as matérias-primas. Então, proibimos a concessão de habilitação a uma empresa se não dizia o que fazia com seus dejetos e seus efluentes. Já o pessoal do Ministério da Economia, ao qual estávamos subordinados, estava muito irritado com o Ministério do Meio Ambiente porque dizia que colocávamos empecilhos para o desenvolvimento. Desde o princípio houve problemas para reconhecer a incorporação da questão ambiental na administração do governo. Trabalhamos com uma perspectiva interdisciplinar, tomando a questão rural, urbana, a saúde, a migração das populações às grandes cidades e os problemas de cada região. E hoje diria que não avançamos muito. Ainda não se reconhece a relação sociedade-natureza, o que significa essa coevolução dos ecossistemas com o sistema social. Não se pode propor qualquer tipo de solução para os problemas por parte da economia, que vai priorizar o lucro, que vai priorizar a tecnologia, que vai priorizar as regras próprias e não as que têm a ver com a natureza. Há muito a ser feito. Os temas ambientais são, sobretudo, questões econômicas. Não se pode obter um desenvolvimento sustentável sem superar a pobreza e integrar os trabalhadores. Devemos atingir uma harmonia entre a produção e o meio ambiente.
Você considera que tem que haver um desenvolvimento tecnológico que dialogue com os saberes tradicionais?
Absolutamente, com todos os saberes, para tudo o que a gestão ambiental faz. Tanto na planificação como na gestão se deve ter em conta esta complexidade do meio ambiente. Mas é o meio ambiente que rege, que age transversalmente em todas as outras administrações do Estado; por isso, precisa haver uma articulação. O exercício da política ambiental tem uma passividade que realmente está longe de cumprir com tudo o que tem em sua essência e em sua própria definição, porque não há consciência da importância que tem. É necessária e urgente uma revolução mental. Agora devemos buscar novos modelos de produção e de consumo, e melhorar as relações da sociedade com a natureza, e dos homens entre si. Para mudar, é preciso dar-se conta. Mas creio que idiotizam cada vez mais as pessoas em vez de fazê-las pensar.
Como se deveria trabalhar para fomentar uma mudança na sociedade?
Nós, como ambientalistas, buscamos geralmente os especialistas, mas não estamos trabalhando com as pessoas que não têm nenhum conhecimento; então, as pessoas comuns não entram no meio ambiente. Por isso, me parece que devemos buscar outra forma, por exemplo, que chegue através da música, porque creio que muitas vezes deixamos fora toda a parte emocional e afetiva. Então, a tecnocracia e o economicismo estão invadindo o tema. Neste momento queremos desenvolver um projeto musical, juntar-nos por esse lado com as pessoas que já estão trabalhando nestes temas, como Charly Alberti (ex-Soda Stereo), que está trabalhando para toda a América Latina, com equipes científicas de mudança climática. Vamos nos juntar para trabalhar com os jovens, para que se deem conta e mudem, e que, além disso, propiciem outros encontros. É preciso gerar uma comunicação maior com outra onda, pelo lado da música, algo que ajude a levar em conta a revolução dos afetos. Para conseguir uma sociedade um pouco mais fraterna, com melhor qualidade de vida para cada momento. Por outro lado, há a questão da certificação dos saberes que não são levados em conta, que não são dados pela educação formal, mas pelo processo de trabalho. Parece-me importante que se reconheça isso, para que essas pessoas possam continuar estudando e trabalhando com o reconhecimento desses saberes adquiridos no trabalho.
Você costuma dizer que para os problemas ambientais se deve aplicar o paradigma da complexidade. Por quê? Qual a contribuição desta perspectiva?
Porque não há um problema, há uma trama de problemas que estão todos interligados, que têm a ver com o contexto. Se tiramos pedaço por pedaço para analisar, mesmo quando se vai muito profundamente, não tem nenhuma utilidade. É preciso contextualizar, entender a complexidade que há ali, é um exercício interdisciplinar. Mas se não há comunicação, isso não é possível. Para haver uma política ambiental é preciso romper com a lógica individualista. Os problemas econômicos e ecológicos acontecem no mundo inteiro. E então não há saída enquanto não aprofundarmos e nos colocarmos de acordo, porque são temas que têm a ver com o destino do ser humano.
Atualmente, você trabalha como assessora na Secretaria de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Que tarefas está realizando?
Já não vou mais todos os dias, porque a viagem é muito cansativa (do seu apartamento em Belgrano até os escritórios da secretaria no microcentro portenho). Mas estou trabalhando com o Conselho Federal Ambiental e com o Conselho Federal de Educação, com as escolas, para ver como podemos melhorar a educação ambiental, porque cada qual trabalha por sua conta, e o que está faltando é articulação, uma integração de tudo.
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“Os temas ambientais são, sobretudo, questões econômicas”. Entrevista com Yolanda Ortiz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU