09 Agosto 2013
Usando a história de Emaús, do Evangelho, Francisco falou aos bispos sobre as pessoas que deixaram a Igreja, porque "consideram que a Igreja – a sua Jerusalém – nada mais possa lhes oferecer de significativo e importante". Ele não culpa a cultura, ele não discursa contra o relativismo, o consumismo e outros "ismos"; ao contrário, ele pede um autoexame dos bispos.
A reflexão é do jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 06-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A visita dos dias 22 a 29 de julho ao Brasil e as homilias e os discursos do Papa Francisco tiveram uma simplicidade e uma objetividade que inspiraram os fiéis com confiança ao amor de Deus, à esperança de reforma e ao amor ao próximo, especialmente aos pobres. Mas dois de seus discursos foram além das exortações pastorais, expondo a sua visão e a sua agenda para a Igreja – o seu discurso do dia 27 de julho aos bispos brasileiros e o seu discurso no dia seguinte ao conselho episcopal do Celam, o Conselho Episcopal Latino-Americana e Caribenho.
Para onde Francisco quer guiar a Igreja? O que ele quer os bispos façam?
A Igreja como reconciliadora
Em seu discurso aos bispos brasileiros, Francisco conta novamente a história de Nossa Senhora Aparecida como uma parábola da Igreja latino-americana. Pescadores cansados, que sentiram o fracasso em um barco em ruínas com redes velhas e rasgadas, encontram uma estátua quebrada que deve ser reparada. "Em Aparecida, logo desde o início, Deus dá uma mensagem de recomposição do que está fraturado, de compactação do que está dividido", explicou Francisco. "Muros, abismos, distâncias ainda hoje existentes estão destinados a desaparecer. A Igreja não pode descurar esta lição: ser instrumento de reconciliação".
Igreja do coração
Para Francisco, a fé entra na Igreja através do coração dos pobres, não através das cabeças dos intelectuais. Francisco confessou que "talvez nós tenhamos reduzido a nossa exposição do mistério a uma explicação racional; no povo, pelo contrário, o mistério entra pelo coração". Isso o leva a entender o papel missionário da Igreja não em ganhar uma discussão, mas em oferecer algo bonito. "Somente a beleza de Deus pode atrair. O caminho de Deus é o encanto que atrai", disse ele aos bispos. "Ele desperta em nós o desejo de chamar os vizinhos, para dar-lhes a conhecer a sua beleza. A missão nasce precisamente dessa fascinação divina, dessa maravilha do encontro".
Uma Igreja com uma mensagem simples
Francisco concluiu: "O resultado do trabalho pastoral não assenta na riqueza dos recursos, mas na criatividade do amor". Ele argumentou que a mensagem deve continuar sendo simples. "Às vezes, perdemos aqueles que não nos entendem, porque desaprendemos a simplicidade, inclusive importando de fora uma racionalidade alheia ao nosso povo". Essa Igreja não é obcecada se Jesus é "um em ser" ou "consubstancial" ao Pai. Ao contrário, ela apresenta Jesus como a compaixão de Deus.
Igreja de Emaús
Usando a história de Emaús, do Evangelho, Francisco falou aos bispos sobre as pessoas que deixaram a Igreja, porque "consideram que a Igreja – a sua Jerusalém – nada mais possa lhes oferecer de significativo e importante". Ele não culpa a cultura, ele não discursa contra o relativismo, o consumismo e outros "ismos"; ao contrário, ele pede um autoexame dos bispos.
"Talvez a Igreja lhes apareça muito frágil, talvez muito distante das suas necessidades, talvez muito pobre para dar resposta às suas inquietações, talvez muito fria para com elas, talvez muito autorreferencial, talvez prisioneira da própria linguagem rígida, talvez lhes pareça que o mundo fez da Igreja uma relíquia do passado, insuficiente para as novas questões; talvez a Igreja tenha respostas para a infância do homem, mas não para a sua idade adulta."
Perante essa situação de Emaús, o que Francisco sugere?
"É preciso uma Igreja que não tenha medo de entrar na noite deles. Precisamos de uma Igreja capaz de encontrá-los no seu caminho. Precisamos de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido. (...)
"Somos ainda uma Igreja capaz de aquecer o coração? Uma Igreja capaz de reconduzir a Jerusalém? Capaz de acompanhar de novo a casa? Em Jerusalém, residem as nossas fontes: Escritura, Catequese, Sacramentos, Comunidade, amizade do Senhor, Maria e os Apóstolos... Somos ainda capazes de contar de tal modo essas fontes, que despertem o encanto pela sua beleza?"
Francisco, então, apresentou desafios práticos para os bispos do Brasil (e outros) que seguem a partir dessa eclesiologia:
• "Se não formarmos ministros capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de dialogar com as suas ilusões e desilusões, de recompor as suas desintegrações, o que poderemos esperar para o caminho presente e futuro?"
• "É preciso, pois, uma progressiva valorização do elemento local e regional. Não é suficiente a burocracia central, mas é preciso fazer crescer a colegialidade e a solidariedade". É necessário "não a unanimidade, mas a verdadeira unidade na riqueza da diversidade."
• A herança da Igreja é transmitido pelo testemunho, e "é preciso entregá-la pessoalmente, tocar a pessoa para quem você quer doar, transmitir essa herança".
• "É preciso uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, poucas possibilidades temos hoje de inserir-nos em um mundo de 'feridos', que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor."
• "Não reduzamos o empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel ativo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade."
Ao falar à comissão de coordenação do Celam, Francisco continuou dando corpo à sua agenda para os bispos.
• "Procuramos que o nosso trabalho e o de nossos presbíteros seja mais pastoral do que administrativo?"
• "Criamos um hábito pró-ativo? Promovemos espaços e ocasiões para manifestar a misericórdia de Deus?"
• "Fazemos os fiéis leigos partícipes da Missão?"
• Os conselhos diocesanos e paroquiais "de pastoral e de assuntos financeiros, são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastorais?"
• Damos aos leigos "a liberdade para que vão discernindo, conforme o seu processo de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamos e acompanhamo-los, superando qualquer tentação de manipulação ou submissão indevida?"
O centro é Jesus Cristo. O discipulado missionário não permite a autoabsorção ou o egocentrismo. "Ou se refere a Jesus Cristo ou se refere ao povo a quem se deve anunciar", disse Francisco. Nem o missionário nem a Igreja é o "centro", proclamou. "O centro é Jesus Cristo, que convoca e envia". Quando a Igreja "se erige em 'centro', ela se funcionaliza e, pouco a pouco, se transforma em uma ONG".
Com sua humildade habitual, o Papa Francisco reconheceu que ele e os bispos estão atrasados no que ele chama de "conversão pastoral" e poderiam fazer melhor. Ele estabelece um alto padrão ao qual ele e os outros bispos devem aspirar.
"Os bispos devem ser Pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com muita mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham 'psicologia de príncipes'. Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja sem viver na expectativa de outra. Homens capazes de vigiar sobre o rebanho que lhes foi confiado e cuidando de tudo aquilo que o mantém unido: vigiar sobre o seu povo com atenção para os eventuais perigos que o ameacem, mas sobretudo para cuidar da esperança: que haja sol e luz nos corações. Homens capazes de sustentar com amor e paciência os passos de Deus em seu povo. E o lugar do bispo para estar com o seu povo é triplo: ou à frente para indicar o caminho, ou no meio para mantê-lo unido e neutralizar as debandadas, ou atrás para evitar que alguém fique para trás, mas também, e fundamentalmente, porque o próprio rebanho tem o seu faro para encontrar novos caminhos."
Fica claro, a partir dessa descrição, que Francisco fará das qualidades pastorais uma alta prioridade na seleção de novos bispos. Se ele for bem sucedido em encontrar tais bispos, um novo estilo de liderança vai se espalhar a partir de Roma para todo o mundo católico.
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''A eclesiologia do Papa Francisco se enraíza na história de Emaús'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU