27 Mai 2013
Precisamos romper o nosso entorpecimento psíquico e livrar o planeta dos drones. Temos que continuar nos organizando, resistindo e nos pronunciando contra essa nova tecnologia da morte e contra o que ela está fazendo com todos nós.
A análise é do jesuíta norte-americano e ativista pela paz John Dear, que recentemente foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 14-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No início de maio, o Dr. Robert J. Lifton, o estimado psiquiatra e autor de muitos livros importantes como The Nazi Doctors, Hiroshima in America e Destroying the World to Save It, publicou um longo e brilhante ensaio sobre as ramificações morais dos drones [aviões não tripulados]. Em "Dez Reflexões sobre os Drones" (disponível aqui, em inglês), Lifton argumenta que é melhor começar a abordar os efeitos dos drones nas nossas vidas e nos livrarmos deles antes que eles nos levem a níveis inteiramente novos de entorpecimento psíquico e violência global.
"Eu busco iniciar uma conversa sobre a nossa relação como seres humanos com esses objetos robóticos como armas", escreve Lifton.
Assim como muitos, há muito tempo eu também pondero sobre a onipresença dos drones, sobre o compromisso criminoso do governo Obama com os drones e sobre o seu efeito sutil sobre todas as nossas vidas. Desde a minha detenção na Base Aérea de Creech, o quartel general dos drones, e a minha recente viagem ao Afeganistão, onde eu ouvi muitas histórias de parentes que perderam seus entes queridos por causa dos nossos drones, estou convencido que esses drones estão nos destruindo – também espiritualmente. Como alguém já disse, "aqueles que vivem pela espada morrerão pela espada".
Eu acho que todos aqueles que se preocupam pela paz deveriam estudar os 10 pontos de Lifton sobre os drones. Aqui está uma versão abreviada das suas 10 "meditações" e sobre o assunto e sobre a ilusão com base na qual eles funcionam.
1. A atração ilusória de máquinas de matar não humanas e inteligentes
"Nós podemos entregar o trabalho de matar a uma entidade tecnológica avançada, a um instrumento robótico convincente totalmente desprovido de sentimentos e, assim, suprimimos os nossos próprios sentimentos com relação a essas mortes", escreve Lifton. "Esse extremo entorpecimento psíquico nos permite matar enquanto nos distanciarmos do significado e do sentido dessas mortes".
2. A ilusão de que podemos combater guerras sem que o nosso povo morra
"A tarefa de convencer o público americano sobre os propósitos das guerras parece cada vez mais difícil, mas é ainda mais difícil a rejeição de tal significado, deixando os norte-americanos com o pensamento inaceitável de que os nossos soldados realmente morrem em vão", escreve Lifton. "Não é à toa que a guerra robótica é abraçada como uma panaceia, como um dom irresistível, para aqueles que detêm autoridade e que se veem confrontados com a tarefa cada vez mais problemática de conferir significado para as mortes de norte-americanos. Em contraste, pouco importa se um drone destruído morreu em vão ou não".
3. A ilusão da capacidade dos drones de realizar o chamado assassinato "seletivo" – a execução de uma pessoa em particular e de ninguém mais
Assassinatos seletivos significam a morte de civis. Lifton cita o relatório da Escola de Direito de Stanford que diz que os drones norte-americanos mataram centenas de civis no Paquistão, incluindo mais de 175 crianças. Eles não eram "militantes", como alega o governo dos EUA. "Os assassinatos seletivos acabam sendo uma ilusão de precisão tecnológica absoluta", escreve Lifton.
4. A ilusão do "assassinato humanitário"
"O conceito de assassinato humanitário é um oxímoro. Eu gostaria de ir mais longe e vê-lo como uma legitimação psicológica e política do ato de matar", escreve Lifton. "O argumento do assassinato humanitário se baseia na falsa alegação da seleção milimétrica do alvo, resultando em uma morte rápida e indolor. Mas quando os entrevistadores do projeto de Stanford abordaram testemunhas paquistanesas e familiares das vítimas, a história foi bem diferente: várias pessoas mortas, muitas vezes um grupo todo reunido enquanto estavam sentados juntos, e efeitos grotescos como cadáveres desmembrados e partes dos corpos espalhados. Métodos ostensivamente humanitários destinam-se a aliviar a consciência individual e coletiva daqueles que realizam ou apoiam o assassinato. A alegação de humanidade pode, portanto, levar a mais mortes".
5. A ilusão do domínio da tecnologia drone
"Assim como com as armas nucleares, nós assumimos o sentido de que o know-how e o produto nos pertencem permanentemente", escreve Lifton: "É claro que nós estamos cientes de que outros países têm drones – na última contagem, 76 países – e que os drones, ao contrário das armas nucleares, são uma tecnologia relativamente fácil de adquirir (não apenas para Estados-nação, mas também para grupos não estatais e organizações terroristas). Mas, contudo, há uma espécie de suposição de que sempre dominaremos e controlaremos essa tecnologia. (...) O que significa, psicológica e historicamente, o fato de ter tal atitude proprietária com relação a uma tecnologia, especialmente uma tecnologia associada ao ato de matar? Isso tem algo a ver com o excepcionalismo norte-americano, mas também com o poderoso componente tecnológico da síndrome de superpotência, a fantasia coletiva da onipotência permanente".
6. A ilusão, associada a uma visão estática da história, de ignorar respostas ou efeitos reversos altamente negativos
"Noventa e sete por cento dos paquistaneses se opõem à nossa política dos drones, assim como altos percentuais das pessoas de outros países do Oriente Médio", escreve Lifton. "Há uma dinâmica de raiva e fúria, sem dúvida, que leva ao recrutamento de muitos novos terroristas antiamericanos, o que poderia mais do que compensar os ganhos ostensivos em segurança nacional a partir da morte de alguns líderes da Al Qaeda".
"Existem certos fatores que quase garantem um efeito reverso violento. Eles incluem a precariedade das nossas relações nas áreas em que temos usado drones e a revolução da informação em que as respostas em geral, e as respostas furiosas em particular recebem uma disseminação mundial quase instantaneamente. Uma fonte adicional de raiva e efeito reverso é o tipo específico de humilhação que os ataques com drones provocam. As pessoas que estão in loco são impotentes perante essa entidade misteriosa no céu. Membros tribais paquistaneses, desprovidos da tecnologia ou de qualquer entendimento dela, não podiam nem disparar contra o objeto, nem atirar pedras nele. E não há nenhuma emoção que provavelmente mais irá resultar em violência do que a humilhação. Quer estejamos falando sobre o comportamento individual, grupal ou nacional, a humilhação é uma chave para a raiva, o ódio e a violência. Nos nossos contínuos estudos da humilhação, precisamos levar em conta o impacto das altas tecnologias de matar sobre pessoas sem essas tecnologias e a rápida e forte motivação de tais pessoas a responder na mesma moeda".
7. A ilusão de uma "tecnologia de resgate", que pode reverter uma política fracassada
"Os drones tornaram-se uma cura para a confusão e a derrota associadas com a nossa doutrina de guerra de contrainsurgência", escreve Lifton. "Os drones oferecem uma alternativa que parece estar livre de qualquer um destes problemas: não há tropas terrestres e, portanto, não há atrocidades civis. Mas, na realidade, os drones não apenas matam civis, mas também eles próprios acrescentam novas dimensões da atrocidade".
8. As questões sobre o conluio dos profissionais no ato de matar
"No meu trabalho sobre os médicos nazistas, falei sobre a combinação de assassinos profissionais e de profissionais da morte. Estes últimos podem ser compostos por advogados, psiquiatras, psicólogos e médicos em geral, economistas e líderes empresariais, aos quais devemos agora acrescentar vários tipos de especialistas em informática", escreve Lifton. "Com os drones, há uma diminuição da distinção entre assassinos profissionais e profissionais da morte. Aqueles que operam dispositivos robóticos a milhares de quilômetros do assassinato parece recair em ambas as categorias. Eles são, de fato, uma nova geração de assassinos profissionais qualificados e tecnicamente treinados. Precisamos olhar mais de perto para as questões éticas a respeito de como vários grupos de profissionais estão fazendo uso do seu conhecimento e das suas energias em nome de dispositivos robóticos que matam".
9. O inevitável problema da falibilidade
"Todas as tecnologias têm momentos de fracasso, e todas estão sujeitas tanto a erro humano quanto a extremidades da natureza", escreve Lifton. "O fato de os drones matarem as pessoas erradas também pode ser considerado uma falha significativa – e isso pode ocorrer por razões de má inteligência ou de erro de cálculo por parte dos operadores. O que acontece quando uma arma abraçada como uma panaceia acaba sendo uma fonte de grave erro?".
10. A questão última do agenciamento humano e não humano
"Há relatos de vários graus sobre a perda do controle humano sobre os drones. E estão previstas mais e mais ocorrências em que a ação seria tão rápida a ponto de não permitir nenhum tempo para a intervenção humana, e os drones teriam que tomar 'decisões' por conta própria", escreve Lifton. "Existe até a possibilidade imaginária de que os drones poderiam se voltar e atacar tanto os seus operadores, tropas ou civis com os quais os operadores estão associados. Em parte, é a narrativa frankensteiniana: os monstros que criamos não podem nem ser controlados, nem podemos nos livrar deles, e, em última instância, colocam em perigo os seus criadores. (…) O meu ponto é que precisamos ter algo a dizer sobre o nosso software, especialmente quando ele ameaça tirar das nossas próprias mãos frágeis o suficiente a criação de guerras e entregá-la aos nossos amorais – e de modo algum sempre previsíveis – delegados robóticos".
Em conclusão, Lifton escreve: "Essas reflexões pretendem fazer parte de uma conversa psicológica e histórica sobre nós mesmos com relação a uma nova tecnologia de morte que não é apenas em si mesma revolucionária, mas também revela muito sobre os nossos conflitos globais com a tecnologia, o agenciamento e o controle. Ao dar continuidade a essa conversa, podemos nos permitir a dar passos mais sábios rumo à gestão e à contenção do uso dessa tecnologia".
Eu poderia acrescentar outras meditações à lista de Lifton: os drones violam o ideal da não violência; os drones zombam do Deus da paz; os drones traem os mandamentos de paz e não violentos de Jesus; os drones destroem um futuro de paz, antes mesmo que o entrevejamos; os drones provocam medo; os drones afetam o meio ambiente; os drones são muito caros; os drones servem à morte, e não à vida. E poderíamos continuar.
Lifton está certo: precisamos romper o nosso entorpecimento psíquico, reivindicar a nossa humanidade, buscar a resolução de conflitos não violenta e livrar o planeta desses drones. Temos que continuar nos organizando, resistindo e nos pronunciando contra essa nova tecnologia da morte e contra o que ela está fazendo com todos nós.
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As ramificações morais do uso de drones. Artigo de John Dear - Instituto Humanitas Unisinos - IHU