Por: Jonas | 23 Mai 2013
Mauro Cerbino é doutor em Antropologia Urbana pela Universitat Rovira i Virgili. Coordena o Programa de Estudos Internacionais e Comunicação, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – Equador, e dirige a revista Iconos, que a própria faculdade edita. Há anos, pesquisa assuntos sobre organizações juvenis de rua, juventudes e violência. Como diretor do Observatório dos Meios de Comunicação, além do discurso informativo que se constrói sobre este fenômeno, estuda a relação entre governos e meios de comunicação e, neste marco, a midiatização da política.
Fonte: http://goo.gl/xB0As |
Sua pesquisa se configurou nos cursos e seminários conferidos em diversas universidades da América Latina e Europa e em numerosos livros e artigos como “El lugar de la violência” (Taurus-Flacso), “Más allá de las pandillas, violencias, juventudes y resistencias en un mundo globalizado” (Flacso) e “Jóvenes en la calle, cultura y conflicto” (Anthropos), entre outros.
É italiano, mas desenvolveu sua principal trajetória acadêmica no Equador. Aí, dedicou-se a pesquisar a origem das gangues juvenis, as motivações para a sua formação e as relações que estabelecem com o Estado. Aqui, esmiúça suas conclusões e adverte sobre o papel dos meios de comunicação.
A entrevista é de Natalia Aruguete, publicada no jornal Página/12, 20-05-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que representa o lugar da gangue para jovens que estão desprovidos de todos os tipos de direitos?
Onde existe, a gangue representa – para alguns jovens – um modo de vida, um modo de existência e reprodução social. Além disso, é uma forma de se proteger de uma insegurança que é prévia a estas organizações. Essa insegurança se deve ao fato de que alguns bairros não são aptos para a vida, porque foram abandonados pelo mundo adulto, que decidiu ter um projeto de vida que não leva em conta a construção do laço social, mas se conforma a viver fechado – tanto no lar, como no trabalho – ou, inclusive, a levantar grades na precária construção de seu lar, com o desejo de ter a sensação de estar seguro. Nesses bairros “dormitório” é muito difícil que a vida social seja possível: não há pessoas nas ruas porque o bairro não tem lugares para a diversão, o espairecimento, a reprodução social. E os jovens e adolescentes precisam de maiores condições de sociabilidade, desse trânsito pelo espaço público, uma vida social mais ampla do que aquela que os adultos gostariam de ter. Em muitas cidades latino-americanas, os jovens buscam um modo para se apropriar – ou reapropriar-se antropologicamente – destes espaços.
Você estabelece uma relação entre o imperativo da violência e o respeito. Que significado tem o respeito, em uma organização violenta?
O respeito é o que estrutura as relações, principalmente, as relações intra e inter gangue. É homem de respeito aquele que se faz respeitar por aquele que está fora da gangue, em outra gangue, ou por outros jovens que podem estar ao redor. Fazer-se respeitar supõe que o outro tenha medo de você, que entenda e possa baixar a cabeça quando um jovem passa por aí. Será uma pessoa de respeito aquele que conseguir causar medo nos outros. É uma dinâmica de olhares para baixo, de submissão, de interiorização, de superioridade de um para com o outro. Estas questões, que saem dos relatos dos garotos, surgem da falta de condições que permitam a reprodução social. A condição de respeito substitui estes vazios, porque constrói o reconhecimento. É o oposto ao respeito da forma como o concebemos, a partir da educação cívica.
É o oposto porque a única possibilidade de respeito passa pela violência?
E pelo medo. O respeito é um dos elementos presentes na modernidade, uma condição que permite que nos reconheçamos e possamos estar juntos. Neste caso, baseia-se no medo e não porque seja experimentada a necessidade de que para estar juntos precisamos nos respeitar. São sujeitos que sofreram uma falta de respeito.
Ao analisar as gangues juvenis, por que você inclui uma “dimensão coletiva da violência”?
É uma dinâmica que se estabelece num horizonte de destinos de masculinidade hegemônica, outro elemento do horizonte simbólico discursivo que dá sentido à ação da gangue, junto com o respeito. Esse horizonte da masculinidade hegemônica é o que os adolescentes e jovens, sobretudo de certos setores populares, vão aprendendo em suas famílias e no colégio, assim como em outros espaços onde permanentemente estão expostos. Para ser homem é preciso ser homens de respeito. Torna-se homem a partir do momento em que se inferioriza o outro. A masculinidade é um discurso potentíssimo, que não apenas tem a ver com a questão do varão, mas que sustenta uma concepção das relações sociais. Nós a chamamos de hegemônica porque está presente em muitos estratos.
E a mulher?
A mulher fica subsumida, comporta-se de modo semelhante, embora com uma contradição, porque é um sujeito portador de outra dimensão sexual e, portanto, muitas vezes, as mulheres são objeto de estupro, de alguma forma tolerado. Entretanto, ao mesmo tempo, as mulheres se comportam como os homens: podem ser protagonistas das mesmas cenas de violência das quais os homens são portadores ou protagonistas. Por terem que se afirmar como parte da gangue, elas se comportam de modo semelhante aos homens. Aí há outro aspecto sexual que é bastante sórdido.
Qual?
Há estupros; as mulheres são mulheres do líder..., situações deste tipo. Porém, as mulheres reproduzem o mesmo discurso que os varões, que, além disso, é sustentado pelas mães. Lembro que a mãe de um dos garotos me disse: “Eu estranhei muito quando me disseram que meu filho era dos... porque ele não sabe brigar”. Essa ideia da necessidade de saber brigar provém da mãe e não somente do pai.
Que análise você faz a respeito da lógica das políticas públicas, do papel do Estado, frente à violência juvenil?
Em primeiro lugar, não há política pública de juventude, ao menos no Equador. E não houve política pública de jovens migrantes na Espanha. No caso da Espanha, sob a raiz de uma norma de reagrupação familiar, os adolescentes e os jovens do Equador iam se reagrupar com seus pais, e isso era tudo em termos de marco normativo. Há normas que facilitam que as famílias se reagrupem, mas, em seguida, o Estado é incapaz de pensar o que fazer com estes jovens. Pode oferecer-lhes uma possibilidade de entrar no colégio, mas, ali, encontram uma montanha de problemas e discriminações. Não há uma política de integração.
Quais consequências, essa ausência de política de integração, acarretam?
O prevalecimento das relações cara a cara, altamente discriminatórias. A reprodução de todo tipo de discriminação e humilhação. Portanto, muitos destes jovens – também na Espanha, onde se esperaria que estivessem em outras condições – talvez, estejam nas mesmas ou piores condições que deixaram no Equador. E quando sabem que existe uma organização que se reúne, que fala o mesmo idioma e que, além disso, fala forte, não fala “suavezinho”...
O que significa “não falar ‘suavezinho’”?
Significa que não fala submisso como a mãe, que já assumiu a inferioridade porque tem um projeto de vida diferente, uma estratégia de vida diferente que a permite processar a submissão. Eles não têm um projeto de vida, já que muitas vezes foram se agrupando sem ter o desejo de concebê-lo. Nesses espaços, encontram novamente a reprodução, a proteção, o sentido da vida, o gozo, a diversão.
Na relação gangues-Estado, como você percebe a responsabilidade legal que o Estado deposita nestes jovens e adolescentes?
Retomo a ideia de que não há uma política pública. No Equador, há uma lei de juventude, mas nunca se efetivou regulamentos e dispositivos para a sua aplicação. Portanto, não há uma política pública para a prevenção de um fenômeno como este. O que o Estado faz para prevenir o bullying? (N. do R: o bullying é um ato de conduta agressiva para, deliberadamente, causar dano a outra pessoa, de maneira física ou psicológica.) É uma coisa absurda em nossos colégios, há jovens que cometeram suicídio em razão de reiterados assédios ou linchamentos. Aquele que aguenta é o jovem que não quer entrar na dinâmica do mais forte, estando à margem disso, converte-se no objeto daqueles que sempre almejam ser os mais fortes, que necessitam identificar alguém como frágil. E o que o Estado faz? A maior parte das gangues, no Equador ou em outras partes do mundo, nasce nos colégios. O sistema educativo não apenas é incapaz de gerar condições para uma maior circulação, uma melhor articulação da população, como também se transforma no oposto: faz com que os jovens se sintam continuamente humilhados, muitas vezes, o professor contribui para isso.
Como?
No Equador, nós temos vários exemplos de professores que abonam esse horizonte de masculinidade hegemônica. Não há uma política pública, exceto normativa repressiva, uma ação policial e punitiva terrível... A inconsistência do Estado de bem-estar, muitas vezes, vem compensada pela condição abusiva da polícia, que é a única cara visível de um Estado inconsistente. Estes jovens populares se sentem atraídos em ser policiais, porque isso faria com que se mostrassem fortes, porém, por sua vez, borram-se de medo diante da polícia: possuem esse amor-ódio. Eu poderia contar histórias dos mais obstinados líderes que me chamavam, à noite, para que lhes dessem uma mão, pois um policial estava levando-os. Choravam como crianças.
Em seu livro “El lugar de la violencia”, você destaca que os meios de comunicação são “reprodutores de um discurso maior”. Que papel cumprem os meios de comunicação no relato deste tipo de violência? Acredita que “reprodutores” é a expressão mais adequada?
Claro que os meios de comunicação não são apenas reprodutores, também, são os que produzem o discurso maior, que pretende ser objetivo e inquestionável. Tanto na Espanha como no Equador, a única visão que o comum das pessoas leigas possui é a visão dos meios de comunicação... Os meios de comunicação se encarregam de representar simbolicamente e alimentar o imaginário dos cidadãos, fazendo o “trabalho sujo” por conta do Estado. (sorri). As violências grupais juvenis não podem ser assimiladas à violência criminal das gangues organizadas..., não, ao menos, em um primeiro momento, depois, algumas destas gangues podem se transformar em outra coisa, como ser capturadas por gangues organizadas, mas esse é outro fenômeno.
Insisto com a pergunta, os meios de comunicação apenas reproduzem esse discurso ou disputam poder simbólico com outros atores sociais?
Os meios de comunicação trabalham diretamente com a constituição da opinião pública, são alimentadores dos funcionários, aqueles que dão as chaves interpretativas da realidade. Encarregam-se de sustentar a tese de que estes grupos são os que se desviaram da norma... Encarregam-se de desresponsabilizar o Estado e dizer: “não, o que ocorre é que os jovens são assim, naturalmente violentos”. Essencializam a condição juvenil, e com isso poupam um grande trabalho ao Estado.
Como?
Eles conseguem fazer com que a opinião pública não veja o Estado como um dos maiores responsáveis, e também ao conjunto da sociedade, por não questioná-lo, por ser passiva frente a estes assuntos. Efetivamente, insensibilizam a opinião pública, já que por esse processo de naturalização parece óbvio que os jovens atuam do modo que atuam. Contribuem para invisibilizar as condições que tornam possível esse fenômeno. Não contextualizam, não historicizam, não fazem uma investigação com fontes primárias, mas recorrem ao “monofontismo” (usar uma única fonte de informação) da polícia, tribunais de justiça, atores que também fazem o trabalho sujo por conta do Estado.
O que é que os meios de comunicação encobrem, a partir de uma “notícia dramatizada” (onde há bons e maus, ganhadores e perdedores, como num conto), quando fazem a cobertura deste tipo de fenômeno?
Cobrem com a objetividade dos fatos... Isso não existe. E encobrem as condições de possibilidade da existência deste fenômeno. Tornam os jovens os únicos responsáveis de sua ação, quando evidentemente a responsabilidade é, no mínimo, compartilhada. Além disso, contribuem – e isso é o pior – para piorar as coisas, pois apresentam estes como sujeitos descartáveis.
Em seu livro, você sustenta que os meios de comunicação “não possuem agenda própria” e relacionou isto com a perspectiva daqueles especialistas que olham os meios de comunicação como “atores políticos”. No contexto atual, latino-americano, onde se nota uma relação conflitiva entre meios de comunicação e governos, como se constrói essa agenda sobre a violência juvenil, a partir dos meios de comunicação que já não se aliam tão claramente com a palavra do Estado?
Agora que você apresenta isso, ocorre-me pensar que, há mais de cinco anos, os meios de comunicação no Equador já não se ocupam deste fenômeno. Ou o fenômeno desapareceu ou perdeu o interesse, pois os meios de comunicação já não possuem no Estado, nem no governo, uma fonte para fazer o trabalho sujo.
No entanto, dependem exclusivamente dessa fonte para fazer o “trabalho sujo”?
Sim, porque dependem da polícia. Em Madri, tive uma contenda com um repórter do jornal El País porque ele queria se desresponsabilizar do que esse jornal tinha escrito sobre os Latin Kings, dizendo que no fundo eles apenas reproduziam a polícia e que, em última instância, o problema estava na fonte. Você se dá conta da barbaridade que ele dizia? Um jornalista pode afirmar que o problema está na fonte e não nele? A primeira coisa que me ocorre lhe dizer é: “muda de fonte”, “diversifica”. Havia um policial que lhe disse: “Eu sou fonte, mas você está escrevendo a nota”. Foi uma cena emblemática. Às vezes, os meios de comunicação servem para sustentar algum interesse da parte de um partido político, que aproveita essa representação midiática da violência juvenil para justificar a “necessidade” de uma ação repressiva. No Equador, existe uma discussão sobre a redução da maioridade penal para os 16 anos. Precisam preparar a opinião pública para assimilá-la e, em seguida, justificar certo tipo de legislação, o aumento de guardas particulares.
Por que estudar os Latin Kings? Que traços os faziam interessantes para você?
Que pergunta boa! Esta organização nasceu nos anos 1940, em Chicago, formada por imigrantes, principalmente, porto-riquenhos, cubanos e mexicanos. A partir dos anos 1980, começam a se definir como uma nação. Essa definição de nação sempre me atraiu muito.
Por quê?
Após refletir muito, comecei a ver que efetivamente era uma organização, que possuía tal envergadura na quantidade de membros e que ia configurando uma nação dentro de outra, uma nação no lugar de outra. Isto é o que (Erving) Goffman maravilhosamente define como a transformação do estigma em emblema, quando fala da carreira do criminoso. Estes grupos são objetos de constante humilhação e estigmatização. São tidos como pessoas desadaptadas e é provável que acabem realizando isto do modo mais espetacular possível. É como se dissessem: “Se o outro me condena a ser criminoso, serei o melhor criminoso possível”. Então, o estigma de ser latinos se converte no emblema de ser latinos, mas, reis. Há coroas e há superioridades e beneficência. Essa coisa da nação me chamava muito a atenção, pois todas as gangues possuem um nome, mas eles se chamavam nação.
Quais elementos faziam deles uma nação?
Eles têm uma Constituição, e possuem elementos que criam uma nação, talvez, não o idioma, mas, sim, uma regra, um vocabulário... Dois reis que não se conhecem, reconhecem-se pelo modo como atuam ou por um gesto que os tornam reconhecidos. Eu estive muito perto deles. Uma vez, em Madri, ao final de uma conversa e vendo que compartilhávamos alguns saberes, esse garoto me perguntou: “Mas, você que chapa tem? Que King é?”. É claro que eu não tenho nenhuma (chapa), mas sabia muito em razão da minha pesquisa. Contudo, eles se reconhecem, possuem um universo simbólico compartilhado, algo que tem a ver com o linguístico, o gestual. Compartilham minimamente um território que se translocaliza. Outro elemento que me atraia muito é o caráter transnacional: são uma nação, mas são transnacionais. Eles dizem que começa a existir a nação quando se coloca a bandeira. Eles têm o ato de constituição da nação no lugar em que se coloca a bandeira. Terão esta data para recordá-la, da mesma forma como são recordados os acontecimentos que fundam a nação. Era tão potente essa nação, com uma Constituição, manifestos, propósitos e leis, que era capaz de se refundar cada vez que fosse necessário. Não eram as pequenas gangues de 20 ou 25 pessoas, como as estudadas há muitos anos. Há pessoas que hoje possuem 40 anos e continuam sendo Latin King... porque eles dizem que um rei é para sempre, embora já não sejam um King.
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“A maior parte das gangues nasce nos colégios”, afirma antropólogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU