27 Março 2013
Colocando a mão em uma bandeja de aço inoxidável, o médico Francisco Fernández-Avilés ergueu uma massa cinza e borrachenta, do tamanho de uma pera. Era um coração de um cadáver humano, que ficou num molho de detergentes industriais até que suas células originais foram eliminadas e tudo que restou foi o que os cientistas chamam de "scaffold" ("andaime" em inglês). Agora, disse Avilés, "precisamos dar vida a esse coração".
A reportagem é de Gautam Naik, publicada no The Wall Street Journal e reproduzida pelo jornal Valor, 27-03-2013.
Dentro de um labirinto de salas escondidas no subsolo do hospital madrilenho Gregorio Marañón, Avilés e sua equipe estão trabalhando na área mais avançada da revolução da bioengenharia e tornando realidade o sonho da ficção científica de criar em laboratório "peças de reposição" para o corpo humano.
Desde 1996, quando um laboratório no Estado americano da Carolina do Norte criou uma bexiga, os cientistas vêm desenvolvendo órgãos cada vez mais complexos. Já houve até hoje cinco operações de substituição da traqueia e um pesquisador de Londres, Alex Seifalian, já transplantou uma artéria e dutos lacrimais cultivados em laboratório. Ele também já criou um nariz artificial, que espera poder implantar no fim deste ano em um homem que perdeu o nariz devido a um câncer de pele.
"O trabalho tem sido extraordinariamente pioneiro", disse Roy Calne, um cirurgião britânico de 82 anos que descobriu, na década de 50, como usar remédios para evitar que o corpo rejeitasse órgãos transplantados.
Agora, com o esforço para criar um coração em laboratório, os pesquisadores estão lidando com um órgão ainda mais complexo. A recompensa pode ser enorme, tanto do ponto de vista médico como financeiro, já que muitas pessoas no mundo têm doenças cardíacas. Os pesquisadores vislumbram um mercado de bilhões de dólares sendo criado para transplantes cardíacos.
Além do nariz artificial, Seifalian está desenvolvendo componentes do sistema cardiovascular. Ele imagina um momento em que os cientistas vão cultivar as estruturas necessárias para os procedimentos de desvio arterial em vez de usar alguma outra veia do paciente, como na ponte de safena. Seifalian pretende transplantar em um paciente, ainda este ano, uma artéria coronária criada pela bioengenharia. A Universidade College London, na qual trabalha, já designou uma pessoa para tratar de uma possível comercialização futura dessa artéria e outros órgãos artificiais.
A criação de órgãos humanos em laboratório está sendo estimulada por uma escassez de doadores de órgãos e a crescente demanda por transplantes. Além disso, ao contrário dos pacientes de transplantes, os que receberão os órgãos de laboratório não precisarão tomar fortes medicamentos contra rejeição pelo resto da vida porque os órgãos são criados pela bioengenharia a partir de células do próprio paciente.
Até o final dos anos 80, poucos cientistas acreditavam que seria possível criar órgãos humanos, pois era muito difícil cultivar células humanas em laboratório. O trabalho foi facilitado quando os cientistas descobriram substâncias químicas, conhecidas como fatores de crescimento, que o próprio corpo usa para promover o crescimento celular.
Os cientistas começaram então a cultivar órgãos simples. Em 1999, Anthony Atala, diretor do Instituto Wake Forest de Medicina Regenerativa, em Winston-Salem, Carolina do Norte, fez o primeiro de uma série de transplantes de bexigas cultivadas em laboratório para crianças com sérios problemas no órgão. As bexigas continuaram funcionando bem por vários anos. A equipe de Atala agora está tentando cultivar vários órgãos por meio da bioengenharia, desde vasos sanguíneos simples até um fígado humano. "O avanço na área é visível", disse Atala.
Alguns dos trabalhos mais complexos estão em andamento no laboratório de Seifalian, no Royal Free Hospital, em Londres. Seifalian, que tem 56 anos e nasceu no Irã, começou como físico nuclear e se interessou pelas aplicações médicas da tecnologia nuclear, o que o levou à bioengenharia.
Em 2011, Seifalian criou uma traqueia a partir das células de um paciente. Ela substitiu a traqueia cancerosa do paciente e lhe salvou a vida, disse o médico.
Seifalian e mais 30 cientistas agora trabalham para criar órgãos como laringe, orelha, nariz, uretra e vias biliares.
A maioria dos órgãos humanos adquire a sua forma a partir de uma armação interna básica (daí o nome "andaime") feita de colágeno e outras proteínas. Os cientistas lutaram por anos para encontrar um material forte e flexível que pudesse substituir essa estrutura sem ser rejeitado pelo organismo.
Por fim, optaram por dois materiais de alta tecnologia feitos de fibras vegetais, resinas e outras substâncias. Seifalian disse que utiliza um material modelado segundo a estrutura da asa de uma borboleta, semelhante a um favo de mel. O material, um nanocompósito, é resistente a bactérias infecciosas e tem poros com o tamanho certo para abrigar as células. "O material tem de ser aceito pelo organismo, mas também tem que ser fácil de manipular em diferentes formas e sob diferentes forças", disse Seifalian.
A base para todos os órgãos criados em laboratório são as células-tronco, encontradas na medula óssea, na gordura e em outras partes do corpo humano. Como as células-tronco podem se transformar em outros tecidos do corpo, elas são a base para se criar qualquer órgão.
No caso de um dos narizes feitos no laboratório de Seifalian, as células-tronco extraídas do tecido gorduroso do paciente foram colocadas num molde, juntamente com substâncias químicas que controlam o desenvolvimento das células. As células-tronco foram deixadas dentro dos poros do órgão cultivado no laboratório e, aos poucos, se diferenciando e se transformando em células que formam cartilagens.
Contudo, faltava ao nariz uma parte crucial: a pele. Isso representava um obstáculo considerável. Ninguém ainda conseguiu fabricar pele humana natural a partir da estaca zero. Seifalian teve então a ideia de implantar o nariz debaixo da pele do paciente na esperança de que o tecido da pele automaticamente revestisse o nariz. O nariz feito por bioengenharia foi implantado sob o antebraço do paciente, e a equipe agora está registrando imagens para saber se os vasos sanguíneos, a pele e as cartilagens necessários estão se formando corretamente. Se o enxerto de pele der certo, os cirurgiões vão retirar o nariz do braço e suturá-lo no rosto do paciente.
"Estamos mesmo no processo de criar um rosto sintético", disse. Do ponto de vista cosmético, "se conseguirmos fazer a orelha e o nariz, não faltará muita coisa."
Regenerar um nariz seria uma proeza impressionante; criar um órgão complexo como o coração seria uma conquista histórica. Uma equipe liderada pelo médico espanhol Avilés está tentando ser a primeira a chegar lá.
Avilés é cardiologista, mas se decepcionou com a dificuldade de se tratar pacientes com doenças cardíacas avançadas. A única opção para os casos mais graves era um transplante de coração, mas os órgãos eram escassos. A Espanha tem o maior índice de doadores do mundo, mas, mesmo assim, segundo Avilés, apenas cerca de 10% dos pacientes que precisam de um transplante de coração o conseguem.
Em 2009, ele foi procurado por uma cientista americana, a médica Doris Taylor, que já tinha cultivado um coração de rato em laboratório, com batimentos cardíacos, quando trabalhava na Universidade de Minnesota. Em vez de usar um "andaime" artificial, Taylor optou pelo de coração de rato verdadeiro. Ela julgou que a mesma técnica seria fundamental para se criar um coração humano funcional e foi atraída para a Espanha porque o alto índice de doadoressignifica que há mais corações impróprios para transplante que podem ser usados para novas experiências.
O coração se desenvolve no útero, onde suas células recebem as dosagens corretas de oxigênio, nutrientes e substâncias químicas para crescer e se transformar em um órgão funcional. Para duplicar esse processo no laboratório, os cientistas usam um aparelho chamado biorreator, com vários tubos que transportam materiais para o coração e levam embora o material descartado. O biorreator do laboratório, um aparelho cilíndrico de uns 30 centímetros de diâmetro, está sendo projetado pela Harvard Bioscience Inc., fabricante americana de aparelhos médicos. A máquina estará pronta para experiências em abril, segundo Avilés.
Avilés disse que espera ter uma versão funcional de um coração humano feito em laboratório daqui a cinco ou seis anos. Contudo, os obstáculos regulatórios e de segurança para implantar um órgão desse tipo em um paciente serão elevados. O cenário mais realista, segundo ele, é que "em cerca de 10 anos" seu laboratório vai começar a transplantar componentes cardíacos.
O laboratório de Madri deu apenas pequenos passos em direção ao seu grande plano para cultivar um coração humano usando as mesmas técnicas que a pioneira Taylor desenvolveu em um coração de rato.
"Abrimos uma porta e mostramos que era possível", disse ela. "Isso já não é ficção científica, está se tornando ciência."
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Partes humanas já são criadas em laboratório - Instituto Humanitas Unisinos - IHU