03 Abril 2019
O trecho nos fala do perdão e da misericórdia, evidentemente, mas também do futuro. Quando a miséria encontra a misericórdia, a vida ressurge e há uma promessa de futuro, apesar do passado sombrio de nossas vidas.
A reflexão é de Raymond Gravel (1952+2014), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 5º Domingo de Quaresma - Ciclo C. A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Is 43,16-21
2ª leitura: Fil 3,8-15
Evangelho: Jo 8,1-11
Depois do chamado à conversão, do chamado à misericórdia e ao perdão, eis o chamado a viver de pé e a ter confiança no futuro. Que belo domingo com textos bíblicos que nos sacodem, que nos queimam, que nos inquietam, que nos mobilizam interiormente e que nos convidam a olhar para frente. As três leituras deste domingo têm o mesmo fio condutor: Não dá para compreender a vida se não olhamos para trás; não podemos viver a vida se não olhamos para frente. Como diz o ditado: O passado é, talvez, garantia do futuro, mas o futuro pode nos reservar grandes surpresas. Tudo se torna possível quando temos um olhar lúcido, não só para os outros, mas principalmente para nós mesmos, e aceitamos ter confiança no futuro. O que guardar deste quinto domingo de Quaresma? O que devemos conservar do passado? O que devemos fazer do presente? O que esperar do futuro?
Frequentemente afirma-se que o passado está aí para recordá-lo. E ainda, o profeta Isaías, no capítulo 43 de seu livro, fala da parte de Deus: “Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas” (Is 42,19). Por quê? Em pleno Exílio em Babilônia, no século VI antes da nossa era, num momento em que a esperança era pouca, por que não se lembrar do passado, do Êxodo em que Deus libertou seu povo? Simplesmente porque Deus não repete o passado; a história não se repete nunca: “Vejam que estou fazendo uma coisa nova: ela está brotando agora, e vocês não percebem? Abrirei um caminho no deserto, rios em lugar seco” (Is 42,19).
Por outro lado, como a novidade traz insegurança e dá medo, frequentemente nós preferimos remetermo-nos a um passado que nos foi contado, mas que não vivemos, até desenvolver uma espécie de nostalgia doentia que nos impede de ver a realidade do presente e de encarar positivamente o futuro. Santo Agostinho, no século IV, nos deixa um belo testemunho sobre o olhar do passado. Ele escreve: “Do que será que os nossos ancestrais não sofreram? Ou melhor, quando nós sofremos essas desgraças, será que sabemos que eles não sofreram pelos mesmos motivos? Encontramos, ainda, pessoas que nos recriminam da sua época, pois para elas a época dos seus pais era o melhor tempo! Se pudéssemos levá-los ao tempo dos seus pais, será que eles não recriminariam também? O passado que tu acreditas ter sido o tempo bom, é bom porque não é o teu”.
Na Igreja atual, será que não temos, também nós, a nostalgia do passado que nos impede de ver e de apreciar o presente e de entrever e de esperar o futuro? Então, era melhor a religião de antigamente! As igrejas estavam cheias! O belo canto gregoriano! A missa em latim! O respeito à autoridade! A grande fé das pessoas! Quando falamos isto, será que não embelecemos o passado? Pois, se fosse tão bom e tão bonito isso, por que o deixamos cair? Podemos lamentar o passado, mas uma coisa é certa: ele não voltará... pois a história não se repete jamais; ela se faz sempre na novidade. O passado está carregado do que nós nos tornamos hoje, e é hoje, agora, com o que nós somos, e aqui onde nós estamos, que nós podemos esperar construir o futuro.
Em sua carta aos Filipenses, São Paulo reconhece todas as vantagens que ele teve antigamente constitui uma perda, diante do que ele viu agora (Fil 3,8). Seu encontro com Cristo, no caminho de Damasco, lhe fez tomar consciência de que a religião não está fixada no cimento; ela deve mudar constantemente. Ele, que acreditava que ia se salvar a pela pertença à religião judaica, percebe agora que é o Cristo que salva e salva gratuitamente: “E isso, não mais mediante uma justiça minha, vinda da Lei, mas com a justiça que vem através da fé em Cristo,aquela justiça que vem de Deus e se apoia sobre a fé” (Fil 3,9).
Nesse caso, o que nos falta fazer como cristãos, discípulos de Cristo? “Quero, assim, conhecer a Cristo, o poder da sua ressurreição e a comunhão em seus sofrimentos, para tornar-me semelhante a ele em sua morte” (Fil 3,10). São Paulo não diz que devemos inventar sofrimentos; a vida se encarrega de impô-los. Por outro lado, ele nos convida a assumir, hoje, a nossa condição mortal e a esperar a ressurreição. A única maneira de chegar a ela é através do conhecimento de Cristo, isto é, o encontro e a experiência íntima com o Ressuscitado da Páscoa.
E este encontro e esta experiência não podem efetuar-se mais que através de outros cristos que, pelo seu testemunho de vida, nos alcançam, nos interpelam e nos fazem esperar esse mundo novo que começou na manhã da Páscoa e que se continua na história. Nós devemos, então, continuar o nosso curso humano até o fim olhando para frente: “Esqueço-me do que fica para trás e avanço para o que está na frente. Lanço-me em direção à meta, em vista do prêmio do alto, que Deus nos chama a receber em Jesus Cristo” (FIl 3,13-14).
É bom situar este belo texto do evangelho que nos é oferecido. Hoje, sabemos que esse trecho localizado no evangelho de João não está em bom lugar. Deveria estar no evangelho de Lucas. O estilo literário deste texto é verdadeiramente o estilo do São Lucas. A cena pertence à etapa final do caminho de Jesus a Jerusalém, contado por Lucas, e parece a controvérsia sobre o imposto dado ao César que encontramos em Lucas 20,20-26. O exegeta francês, Alain Marchadour, escreve: “Esta pérola das narrativas evangélicas deve ter se perdido. Com efeito, ela está ausente nos primeiros manuscritos de João. Provavelmente, o texto teve ter assustado a alguns responsáveis da Igreja primitiva pela sua abertura, pois o adultério era considerado um dos poucos pecados que necessitava de uma penitência pública e que só podia ser perdoado uma única vez na vida.
Como na disciplina da Igreja dos primeiros séculos não existia a indulgência de Jesus para os pecadores públicos, é por isso que, sem dúvida, esse episódio da mulher adúltera se manteve oculto; de forma que, quando se quis integrá-lo no cânone dos evangelhos, foi colocado, por engano, em São João. Esse trecho nos fala do perdão e da misericórdia, evidentemente, mas também do futuro. Quando a miséria encontra a misericórdia, a vida ressurge e há uma promessa de futuro, apesar do passado sombrio de nossas vidas.
O autor desta perícope, chamemos-lhe de Lucas, porque se trata do evangelista mais feminista, ele próprio quer denunciar a injustiça feita às mulheres na tradição judaica do seu tempo. A lei de Moisés pune de morte a mulher. Ela paga por seu pecado de maneira definitiva e seletiva, pois nada atinge o homem com quem ela cometeu adultério e que deveria ser tão responsável quanto ela. No seu evangelho, São Lucas apresenta um Deus de misericórdia e de perdão, enquanto a lei de Moisés pune de morte o adultério. Então, trata-se de uma boa oportunidade para colocar Jesus em apuros: De que lado será que ele se situa? Se ele se situar do lado da lei, isso quer dizer que seu Deus condena o pecador... então, não seria perdão e misericórdia. E se Jesus toma distância em relação à lei de Moisés, isso quer dizer que ele se opõe aos judeus, então ele risca de ser também condenado, mesmo se o Deus que ele serve é um Deus de ternura cujo perdão abre um novo futuro.
A melhor resposta é o silêncio... Um longo silêncio no qual Jesus, por duas vezes, se abaixa e escreve no chão (Jo 8,6.8). Esse longo silêncio fala alto, mesmo se os escribas e os fariseus não o compreendem, pois eles não sabem de que lado está Deus: do lado da punição ou do lado da misericórdia e do perdão? A única maneira de sabê-lo é olhando para se próprios: Quem são eles? O que eles esperam de Deus para si? “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra” (Jo 8,7). E a ranger os dentes! O que quer dizer que aquele que não esperava receber a misericórdia de Deus e que se acha suficientemente justo para se virar sem ela, que ele fique do lado da lei de Moisés! Mas se ele acreditar que precisa da infinita ternura de Deus e do seu perdão, que ele fique longe dessa lei recusando-se a jogar a pedra!
Todos eles vão embora. E São Lucas acrescenta ironicamente: “Começando pelos mais velhos” (Jo 8,9). Eles ficaram do lado de Deus e não do lado da lei! Eles se situaram do lado da mulher adúltera, porque eles mendigavam, como ela, a misericórdia e o amor de Deus! O novo futuro que se abre para essa mulher: “Pode ir, e não peque mais” (Jo 8,11), se abre também para os escribas e fariseus: Pode ir e, agora, mude seu coração de pedra por um coração de carne à imagem do coração do Deus que Cristo te revelou.
Para terminar, eu gostaria simplesmente partilhar esta bela prece de Santa Teresa, que nos descentra de nós mesmos para nos abrirmos aos outros: “Senhor, quando eu estiver faminta, dá-me alguém que precise de alimento. Quando eu tiver sede, envia-me alguém que precise de água. Quando tiver frio, envia-me alguém para acalentar. Quando eu estiver ferida, dá-me alguém para consolar. Quando a minha cruz se tornar pesada, dá-me a cruz de outro para partilhar. Quando eu for pobre, traz perto de mim alguém que esteja necessitado. Quando eu não tiver tempo, dá-me alguém para que eu possa ajudar um instante. Quando eu for humilhada, dá-me alguém que precise do meu elogio. Quando eu estiver desanimada, envia-me alguém para eu animar. Quando eu precisar da compreensão dos outros, dá-me alguém que necessite da minha. Quando eu precisar que alguém cuide de mim, envia-me alguém para cuidar. Quando eu só pensar em mim, dirija meus pensamentos para os outros”.
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