Por: André | 11 Julho 2012
Na opinião do sacerdote e antropólogo Bartomeu Melià, a destituição do presidente Fernando Lugo foi uma manobra “para garantir um modelo de país atrasado” e beneficiar os produtores de soja.
A entrevista é de Germán de los Santos e está publicada no jornal argentino La Capital, 08-07-2012. A tradução é do Cepat.
“Caso fizer uma pequena introdução, não exagere”. A recomendação de Bartolomeu Melià pode ser interpretada de diferentes maneiras, embora seja complicado não cair no exagero ao escrever sobre a história recente do Paraguai, um país onde há 100 anos o escritor e jornalista Rafael Barrett, autor da crônica O que são os ervais (Editora Cultura e Barbárie, 2012), dizia: “É fácil tirar um governo, mas difícil é mudar os costumes de governar. Fácil é cortar cabeças; difícil é que revivam”.
Há mais de um século, Barrett fez um relato sobre o poder que os latifundiários da erva-mate tinham no país. “O Paraguai é o negreiro de seus filhos”, apontava. Hoje essa estrutura econômica, social e política se entrelaça de maneira quase feudal não mais entre os arbustos da erva-mate, mas entre a soja. “O golpe de Estado é o da Monsanto para garantir um modelo de país atrasado em benefício da soja”, escreve em uma mensagem de correio eletrônico Bartolomeu Melià, do Paraguai, país ao qual este sacerdote jesuíta chegou em 1954, mesmo ano em que Alfredo Stroessner chegou ao poder. Além de sacerdote, Melià, que participou da expedição Paraná Ra’Anga, que saiu de Rosário em março de 2010, é antropólogo e linguista. Grande parte da sua vida passou no Paraguai “profundo” com as comunidades originárias, onde procurou aprender e estudar o guarani.
Melià viveu de perto a destituição de Fernando Lugo, no dia 22 de junho passado. Acompanhou o julgamento político da praça em frente ao Congresso, onde, após assumir o liberal Federico Franco, a polícia lançou gases lacrimogêneo contra os manifestantes que repudiaram a chegada ao poder do ex-companheiro de chapa de Lugo.
Eis a entrevista.
Você chegou ao Paraguai em 1954, pouco tempo depois da chegada ao poder do ditador Alfredo Stroessner. Com toda a sua experiência, como sente o fato de que o Paraguai tenha retrocedido após o golpe em democracia contra Lugo?
Na época eu estava com 22 anos, e minha principal tarefa, quase a única, era aprender o guarani, e o fazíamos em uma pequena cidade, Paraguarí, na época sem estrada asfaltada e sem eletricidade. Por algumas leituras sabia que no Paraguai tinha havido revoluções e golpes de Estado frequentes. Pouco mais. O interior do país estava por ser “descoberto” e os indígenas viviam abandonados, mas em paz. O contexto atual é diferente; a dependência colonial que vivemos agora tem raízes mais profundas, é mais covarde e mais sem-vergonha. Agora a questão paraguaia é, como nunca antes, a terra, a formação de novos territórios sujeitos ao domínio do agronegócio, modelo de país atrasado em benefício da soja; claro, com todas as politicagens colaterais. O retrocesso democrático não significa voltar ao ponto de onde Stroessner nos deixou, que já era péssimo, mas ao ponto onde o tinham projetado em 2008, e que ficou truncado quando Lugo assumiu.
Lugo não conseguiu romper com esse relato histórico no qual o Partido Colorado foi amo e senhor no país?
Não conseguiu, porque não tinha uma força política que o apoiasse. Ele mesmo nunca se manejou bem como político. Seus aliados, os liberais, o traíram no primeiro momento; e era lógico, a ideologia desta gente nem sequer é neoliberal, é a liberal conservadora do começo do século, como a dos pecuaristas, que nem sequer são produtores de soja tecnocratas mecanizados. A nova agroindústria está nas mãos de brasileiros, sobretudo, que formam territórios autônomos e “soberanos”, que diante das dificuldades inclusive sempre reclamam a proteção do Brasil. Mais do que um problema político vejo-o como uma sociedade de mercado, que necessita do apoio político, e é para isso que se prestam os Poderes Legislativo e Judiciário, ou seja, a Suprema Corte da Justiça. E aos quais vai se dobrar o Poder Executivo agora.
A aliança de Lugo com as forças emergentes, como as comunidades originárias, não funcionou como pensou quando o presidente assumiu com vontade de mudar a realidade paraguaia? Faltou a ele ir mais a fundo, como com a reforma agrária?
As comunidades originárias estão relegadas a grupos com pouca organização e desintegradas por todas as vias; não há um só povo ou nação indígena no Paraguai, como persisto em chamá-las, que tenha podido conservar sequer um simulacro de território; estão confinadas em pequenos lotes de terra; estão em campos de concentração. O pior é que para a grande maioria dos paraguaios parece que isto tem que ser assim, a tal ponto chega a discriminação racista. Uma reforma agrária é uma obra de uma magnitude tal que inclusive tecnicamente parece impossível; faltam os elementos primários, como um cadastro, e leis de expropriação, pelo menos em terras ilícitas. As compras e registros de propriedade recentes tornam ainda mais difíceis a tarefa. Neste sentido creio que uma reforma agrária supõe e exige um sentido comum e uma coerência que necessariamente vai parecer uma revolução, que na realidade é uma ordenação. Há um futuro real para a agricultura camponesa, mas a partir de condições muito diferentes, através precisamente de territórios camponeses mais fortes e autônomos. Eles são uma solução econômica mais rentável que o agronegócio que, em termos de tributação, deixa apenas 0,3% para o Estado; é uma ruína para o próprio país. Os carperos [sem terras] que se instalaram e ocupavam terras que com razão se supunham ser do Estado ou ilícitas, são uma chamada de atenção, mas necessitam da força e do reconhecimento do Estado. Mas nestes anos do Governo Lugo não foi possível dar nem sequer pequenos passos rumo a uma reforma agrária, por outro lado necessária para a economia do país.
Você acredita que se aproxima uma época de resistência pacífica?
Creio que sim. Não aceitar nem em público nem em privado esse suposto presidente e seu governo, embora a maioria dos países tenha chegado a reconhecê-lo e a aceitá-lo, é um dever do cidadão paraguaio. Esperamos que haja um pequeno resto, pelo menos, que mantenha esta atitude ética. É dever de todos; os idosos o faremos sem muitas consequências materiais nem sociais, mas será duro para os jovens no futuro.
A hierarquia da Igreja deu as costas a Lugo. Foi outro fator desestabilizante?
Parte da hierarquia nunca aceitou o presidente Lugo e o considerou um pecador, embora ele continuasse sendo um bom católico arrependido. Nestes dias eu estava lendo o livro de Francisco de Vitoria, A defesa dos índios, onde mostra que mesmo o pecador e o pagão não perde o domínio nem de seus bens e terras, nem de seu poder de chefe, contra certos espanhóis que queriam fazer da religião um instrumento de opressão e injustiça. Ter deixado de lado o estado episcopal não tira do presidente Lugo o fato de ser presidente eleito nem o poder de servir ao país. Alguns dos bispos, creio que não são maioria, nunca o entenderam. A hierarquia católica foi, em todo esse tempo, sumamente ambígua em suas posições e esteve dividida; inclusive depois do golpe de Estado. Mais do que desestabilizadores foram, creio, ingênuos e temerosos. Me atreveria a dizer que sua posição foi seguida por poucos católicos. Os católicos em sua maioria rechaçaram o golpe; senti isso em uma capela pobre onde presidi missa no sábado passado. A Conferência dos Religiosos do Paraguai – Conferar – há anos mostrou estar do lado dos pobres, e neste sentido deu seu comunicado a propósito do golpe de Estado.
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Um golpe tingido de verde. Entrevista com Bartomeu Melià - Instituto Humanitas Unisinos - IHU