30 Mai 2012
Diante da crise atual, sem precedentes na história do pontificado contemporâneo, há diversas leituras possíveis, incluindo a moralista (as baixezas humanas) e a espiritual (o escândalo como prova). Mas também é necessário enquadrar esse momento dentro das tentativas, ao longo dos últimos 50 anos, de reformar a Cúria Romana e o ministério papal na Igreja.
A opinião é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 29-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ainda não foi publicada uma verdadeira "história da Cúria Romana": mas, quando for escrita, a gestão Ratzinger-Bertone irá cobrir, provavelmente, um capítulo à parte.
Os historiadores da Igreja brincavam, até pouco tempo atrás, dizendo que, na história da Igreja contemporânea, o secretário de Estado de Bento XVI era apenas uma nota de pé de página. As coisas foram piores do que o previsto.
O ato público de acusação do cardeal Ratzinger, o discurso sobre a "sujeira na Igreja", proclamado poucas horas antes da eleição ao pontificado, se retorce contra Bento XVI. O reinado do Papa Ratzinger encontra o seu nadir [ponto celeste oposto ao zênit] em um escândalo que obriga o porta-voz da Santa Sé a desmentir que há cardeais investigados pelo vazamento de notícias. Passaram-se os tempos em que nos indignávamos com o "chamado" a Roma dos cardeais italianos e norte-americanos, com o risco de prisão por parte de jurisdições de outros Estados: o cardinalato como pars corporis papae, parte do corpo do papa, funcionava então como escudo para os colaboradores do papa. Hoje, ao invés, parece ter se tornado razão de suspeita.
Diante da crise atual, sem precedentes na história do pontificado contemporâneo, há diversas leituras possíveis, incluindo a moralista (as baixezas humanas) e a espiritual (o escândalo como prova). Mas também é necessário enquadrar esse momento dentro das tentativas, ao longo dos últimos 50 anos, de reformar a Cúria Romana e o ministério papal na Igreja.
No Concílio Vaticano II, do qual este ano a Igreja celebra o 50º aniversário da abertura, muitos bispos propuseram uma reforma da Cúria Romana, a partir do célebre discurso de novembro de 1963 do cardeal de Colônia, Frings, então assistido pelo jovem teólogo conciliar Joseph Ratzinger.
Depois desse discurso, foram formuladas outras propostas: a mais elaborada sugeria a criação de um "conselho central dos bispos", que apoiasse o papa, mas “acima” da Cúria Romana, para o governo da Cúria e da Igreja universal. Paulo VI não confiou na proposta, e alguns colaboradores ativos da Cúria o ajudaram a antecipar e prevenir a discussão da questão no Concílio com o anúncio, em setembro de 1965, do "Sínodo dos Bispos", assembleia sem verdadeiros poderes e de papel amplamente cerimonial e comemorativo.
Depois do fim do Concílio, Paulo VI procedeu a uma reforma da Cúria Romana que se limitou a três inovações: o acréscimo dos "Pontifícios Conselhos" à velha estrutura da Cúria, criada pelo Concílio de Trento no fim do século XVI; a internacionalização da equipe de pessoal da Cúria; uma concentração dos poderes no secretário de Estado, uma espécie de "primeiro-ministro do papa".
Essa nova configuração da Cúria Romana regeu enquanto as elites dirigentes dela eram filhas de uma geração de eclesiásticos conscientes do seu próprio papel e dos delicados equilíbrios da máquina curial e da dimensão global da Igreja.
Entre Paulo VI e João Paulo II, essa velha geração deixou gradualmente o seu lugar a uma equipe de tipo diverso: no melhor dos casos, há eclesiásticos-teólogos, com um alto sentido da missão pastoral do serviço na Cúria Romana, mas com pouca ou nenhuma experiência política e diplomática; em outros casos, têm-se eclesiásticos-ideólogos, que levam a Roma uma agenda política que nasce em outro lugar (nos seus países de origem, como os EUA ou a Espanha) e que não encontra nenhuma razão de ser em uma Cúria Romana pensada em uma época anterior às ideologias e à política na sociedade de massa; em alguns casos, por fim, há os eclesiásticos de poder, que desempenham a sua função principalmente recolhendo e distribuindo postos, bens, honras e honorificências, ignorantes dos mecanismos profundos de um mundo em que, às vezes, nem mesmo as boas obras são perdoadas.
Culpa também de uma certa teologia liberal pós-conciliar, que se iludia de poder abater as instituições eclesiásticas, parecem ter desaparecido, nessas décadas do pós-concílio, os eclesiásticos orgulhosos de desempenhar uma função curial ao serviço da Igreja mundial: a cultura católica anticurial (ideológica e teologicamente transversal) precedeu a onda da antipolítica.
A Cúria Romana é, do ponto de vista teológico, um corpo estranho e um mal necessário: nascida e crescida séculos depois das origens cristãs, ela necessita hoje de uma nova legitimação. No aniversário do Vaticano II, não seria fora de lugar iniciar de novo a partir de algumas propostas feitas pelos padres conciliares.
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Cúria, uma reforma pela metade. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU