14 Abril 2012
“Colocar controles rígidos sobre o comércio de armas ajuda a diminuir o tráfico ilegal e o comércio irresponsável de armas, diminuindo, obviamente, a violência armada”, assegura a pesquisadora.
Confira a entrevista.
Para combater e erradicar a transferência e a produção ilícita de armas no comércio mundial, diversas organizações da sociedade civil latino-americana propõem que os países assinem um Tratado de Comércio de Armas. A medida é necessária, segundo Marie Krahn, representante da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e da ONG Serpaz, na Campanha Ecumênica do Conselho Mundial de Igrejas, porque “no atual cenário do comércio internacional de armas existe menos regulamentação e fiscalização do que no comércio internacional de bananas ou de outros alimentos”. Segundo ela, somente 25 países reportam informações sobre transferências de armas.
Marie, que tem acompanhado este debate, participou de um encontro recente em Buenos Aires, Argentina, em que a regulamentação do comércio de armas foi o tema central. Conforme ela explica na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, os governos têm dificuldades em estabelecer uma legislação universal, pois o setor de armas e munições é um dos principais comércios do mundo. De acordo com a professora, o Brasil tem participado ativamente do processo de elaboração do tratado. No entanto, por ser um exportador de armas, o país “também está preocupado em manter seus mercados”. “O Brasil está dividido: ele apoia e quer ver as questões humanitárias serem bem regulamentadas e, ao mesmo tempo, quer manter seus mercados. Com o Tratado esses dois desejos poderão entrar em conflito. Talvez esse seja um dos fatores de o Brasil não tomar a frente mais firmemente nas questões humanitárias”, assinala.
Marie também ressalta o papel desempenhado pelas igrejas nesta campanha e assegura que as instituições devem insistir para que o Tratado de Comércio de Armas seja assinado, pois elas testemunham o sofrimento das famílias que são vítimas de violência. “As igrejas ministram para as vítimas e suas famílias e são parte das comunidades que sofrem pela violência armada em todo o mundo, nas nações ricas e pobres”, conclui.
Marie Ann Wangen Krahn (foto)é graduada em Linguística pela Universidade de Minnesota, e mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST. Atualmente é professora na Faculdades EST.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o atual cenário do comércio internacional de armas? É possível estimar quantas armas são comercializadas legalmente e quantas circulam ilegalmente no mundo?
Marie Krahn – No atual cenário do comércio internacional de armas existe menos regulamentação e fiscalização do que no comércio internacional de bananas ou de outros alimentos. Isso faz com que seja muito difícil estimar quantas armas são comercializadas legalmente e ainda mais difícil estimar a quantidade de armas comercializadas ilegalmente.
IHU On-Line – Quais os principais temas discutidos no encontro que ocorreu em Buenos Aires recentemente a respeito do Tratado de Comércio de Armas?
Marie Krahn – No encontro em Buenos Aires, entre representantes dos governos dos países da América Latina e representantes da sociedade civil, foram discutidos vários temas. Entre eles, houve a tentativa de reconhecer os pontos em que os países da América Latina já têm consenso, que são: a inclusão de critérios objetivos, mensuráveis e claros, ue protejam a lei internacional dos direitos humanos e a lei internacional humanitária, além das outras obrigações da carta das Nações Unidas; e a inclusão no escopo de armas pequenas e leves, munições e componentes, além de todas as outras armas convencionais.
Ainda houve a discussão de como incluir provisões que protejam o desenvolvimento sustentável, pois, por enquanto, alguns dizem que os critérios são muito subjetivos e podem levar à possibilidade de discriminação contra povos menos desenvolvidos. Todos concordam que o Tratado precisa ser equilibrado, com linguagem clara e objetiva, para não dar brecha à discriminação entre os povos.
Foram discutidas questões de implementação e de como deve ser o processo de prestação de contas e relatórios. Foram apresentados os problemas que já existem nos sistemas de relatórios e como poderia se melhorar e facilitar esse processo, enfatizando a importância de colocar provisões no tratado para que haja um sistema de cooperação e colaboração internacional, para que países com mais dificuldades possam cumprir tais processos tanto de implementação como de reportagem.
Ainda não há concordância sobre o significado de consenso neste processo de negociação. Ou seja, não se sabe se todos os países devem estabelecer um acordo comum, ou se deve predominar o consenso da maioria por um tratado mais forte e consistente. Corre-se o risco de se estabelecer um tratado fraco e até perigoso, pois poderá minar sistemas fortes de controles de comércio que já existem em vários países.
A sociedade civil, representada por várias organizações como a Anistia Internacional do Chile, a Campaña Colombiana Contra Minas, a Red Nacional Iniciativas por la Paz contra la guerra da Colômbia, o Serpaj de Equador, o Instituto Sou da Paz e o Serpaz do Brasil, a Asociación para Políticas Publicas, o Parlamentarians for Global Action e a Campanha Ecumênica do Conselho Mundial de Igrejas, enfatizou a importância da continuidade da participação da sociedade civil neste processo de negociação do Tratado. Foi demonstrando como a sociedade civil instigou o processo desde o começo e, graças ao trabalho das organizações, é que estamos neste ponto do processo. Portanto, é crucial que a sociedade civil continue tendo espaço no processo, inclusive e especialmente no momento das negociações em julho.
IHU On-Line – Está prevista para julho deste ano a negociação de um Tratado de Comércio de Armas. Em que consiste essa proposta? E quais os critérios que devem ser seguidos para a elaboração de um tratado eficaz?
Marie Krahn – As diretrizes que norteiam a elaboração do Tratado são as seguintes (conforme o Documento Provisório do Moderador, datado de 14 de julho de 2011):
1. Promover as metas e objetivos da Carta das Nações Unidas.
2. Estabelecer os mais altos padrões comuns internacionais para a importação, exportação e transferência de armas convencionais.
3. Prevenir, combater e erradicar a transferência ilícita, a produção ilícita e a intermediação ilícita de armas convencionais e o seu desvio para mercados ilícitos, inclusive para o uso em crime organizado transnacional e em terrorismo.
4. Contribuir para a paz, segurança e estabilidade internacional e regional através do impedimento de transferências internacionais de armas convencionais que contribuam ou facilitem o sofrimento humano, violações graves da lei internacional dos direitos humanos e da lei internacional humanitária, obrigações internacionais, conflito armado, desalojamento de pessoas, crime organizado transnacional, atos terroristas. Isso tudo mirando a paz, a reconciliação, a segurança, a estabilidade, o desenvolvimento sustentável social e econômico.
5. Promover a transparência e a prestação de contas na importação, exportação e transferências de armas convencionais.
6. Que seja universal em sua aplicação.
IHU On-Line – Qual a participação do Brasil no comércio internacional de armas?
Marie Krahn – É difícil conseguir dados sobre o comércio de armas no Brasil, pois o país ainda não divulga esta informação. Conforme a Oxfam, somente 25 países reportam dados de suas transferências de armas. O Tratado quer justamente mudar esse cenário.
IHU On-Line – Como o Brasil se posiciona diante da possibilidade do Tratado de Comércio de Armas? Até agora nenhum parlamentar brasileiro assinou a iniciativa da Control Arms, que pede a introdução do Tratado. Quais as razões desse desinteresse?
Marie Krahn – O governo do Brasil tem participado ativamente no processo de elaboração deste tratado há tempos. O país apoia este tratado, inclusive apoia suas questões humanitárias. Porém, não está tomando a frente na luta por essas questões, porque ainda não concorda com a linguagem a ser usada. O Brasil está preocupado com a possibilidade de descriminação contra países menos desenvolvidos, especialmente na questão sobre desenvolvimento sustentável. O Brasil, entre outros países, julga que, por enquanto, os critérios para decidir sobre se uma transferência vai prejudicar o desenvolvimento sustentável de um país são muito subjetivos e difíceis de serem objetivamente avaliados. Portanto, o país apoia e concorda que devem ser incluídos no escopo das armas, além das armas convencionais do registro das Nações Unidas, as armas pequenas e leves, munições e componentes.
É verdade que o Brasil é um grande exportador de armas e, portanto, também está preocupado em manter seus mercados. O Brasil está dividido: o país apoia e quer ver as questões humanitárias serem bem regulamentadas e, ao mesmo tempo, quer manter seus mercados. Com o Tratado esses dois desejos poderão entrar em conflito. Talvez este seja um dos fatores de o Brasil não tomar a frente mais firmemente nas questões humanitárias.
O fato de os parlamentares ainda não assinarem a declaração parlamentar em favor do Tratado pode ser explicado por este assunto provavelmente não ter chegado ainda nas câmeras legislativas, pois normalmente tratados internacionais são negociados entre representantes do executivo dos governos e, depois de assinados, são debatidos nos legislativos para a implementação via leis. Por este tratado ser de tamanha importância para a segurança e a qualidade de vida dos povos, a sociedade civil está tentando mobilizar os parlamentares para ajudarem a pressionar os governos a fazerem um tratado que enfoque, primariamente, as questões humanitárias. Parlamentares de muitos países já assinaram a Declaração Parlamentar a favor do tratado. Mas ainda há muitos países cujos parlamentares também não assinaram a declaração. O desafio da sociedade civil é mobilizar estes parlamentares a assinarem esta declaração para reforçar a mensagem da importância do lado humanitário deste tratado.
IHU On-Line – O que tem dificultado a criação de uma legislação universal para controlar as transações comerciais de armas? Como a comunidade internacional vê essa proposta, especialmente os principais exportadores de armas do mundo: EUA, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido?
Marie Krahn – O comércio de armas gera muito dinheiro para alguns setores da sociedade e para os governos. O grande medo, especialmente dos exportadores como Brasil, é que com restrições sobre transferências, os lucros diminuam.
Outro fator é a dificuldade de implementar sistemas de monitoramento, verificação e fiscalização práticos e eficientes que possam ser usados por todos os países. Por isso a sociedade civil está lutando para que seja incluído um auxílio internacional, onde países com mais recursos devem ajudar países com menos recursos neste processo de fiscalização e reportagem.
É muito difícil os governos entrarem em acordo sobre critérios a serem usados para impedir ou permitir transações de armas. Este é talvez um dos fatores principais que dificulta a criação de uma legislação universal para controlar as transações comerciais de armas.
Questões humanitárias
Tanto os EUA como a Rússia são mais reticentes quanto às questões humanitárias. O povo norte-americano está com medo de que o Tratado possa interferir nas liberdades garantidas pela segunda emenda da Constituição. A National Rifle Association está trabalhando para manter este medo no povo. Com isso eles conseguem fazer com que o tratado tenha dificuldade de ser ratificado pelos legisladores. A verdade é que o Tratado não interferirá nas leis nacionais de porte e posse de armas. Os EUA não apoiam a inclusão de munições no escopo de armas, mas apoiam a inclusão de armas pequenas e leves.
A Alemanha, a França e o Reino Unido estão relativamente unidos no apoio a um tratado que inclua fortes provisões sobre as questões humanitárias e inclua armas pequenas e leves, munições e componentes dentro do escopo, além das outras armas convencionais.
IHU On-Line – Qual o papel das igrejas nas campanhas de regulamentação do comércio de armas?
Marie Krahn – Nosso sonho é termos um mundo sem armas. Mas isso muito provavelmente nunca será uma realidade. Agora, colocar controles rígidos sobre o comércio de armas ajuda a diminuir o tráfico ilegal e o comércio irresponsável de armas, diminuindo, obviamente, a violência armada.
O papel das igrejas nestas campanhas é, primeiramente, testemunhar quanto ao impacto do comércio não regulamentado, pois as igrejas ministram para as vítimas e suas famílias e são parte das comunidades que sofrem pela violência armada em todo o mundo, nas nações ricas e pobres.
Segundo, as igrejas devem pleitear, junto aos governos, como parte da sociedade civil nesta campanha, maneiras de reforçar e promover o escopo humano do Tratado através de:
1. Trabalho de educação e conscientização de outros sobre a necessidade de um tratado internacional sobre o comércio de armas.
2. Mobilização de outros para agirem em apoio a um tratado forte e efetivo, que contenha valores da fé sobre justiça, paz e bem-estar do ser humano.
3. Lobby frente aos nossos representantes oficiais e governamentais eleitos quanto ao imperativo humano do tratado de armas e para que apoiem, ratifiquem e implementem um tratado forte e efetivo.
A mobilização e a pressão sobre os nossos governantes são cruciais. Temos que mostrar a eles e elas que não assinar um tratado como este significa dizer que muitas vidas e comunidades estarão em risco e haverá consequências fortes em termos políticos. Esse é nosso grande desafio.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Marie Krahn – As pessoas que têm interesse em participar da campanha podem acessar os links a seguir.
Líderes e entidades religiosas podem assinar a Declaração Inter-Religioso no link http://controlarms.org/interfaith.
Parlamentares podem assinar a Declaração Parlamentar no seguinte link: http://controlarms.org/parliamentarian-declaration.
Médicos e pessoas da área da saúde podem assinar a Alerta Médica no seguinte link http://armstradetreatymedicalalert.wordpress.com/petition-text/.
E outras pessoas podem se pronunciar a favor no link http://speakout.controlarms.org.
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Tratado de Comércio de Armas: um acordo pela valorização da vida. Entrevista especial com Marie Krahn - Instituto Humanitas Unisinos - IHU