19 Março 2012
A tentativa do Ministério Público Federal (MPF) de punir agentes de Estado que cometeram crimes de sequestro e ocultação de cadáveres durante a ditadura militar, sob a alegação de que seriam crimes permanentes, não ajuda a causa dos direitos humanos. Quem faz essa avaliação é o jurista Miguel Reale Junior, titular da cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Para o jurista, a investida dos procuradores é nula do ponto de vista jurídico e temerária. "Dar andamento a essa ideia significaria criar uma imensa insegurança jurídica", disse ele em entrevista ao Estado.
A entrevista é de Roldão Arruda e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 18-03-2012.
Além de professor titular da USP, Reale Junior foi ministro da Justiça no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso em 2002 e também presidiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Antes disso, no final da década de 1970, participou, como conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dos debates que levaram à criação da Lei da Anistia, em 1979.
O debate em torno dos crimes de sequestro e ocultação de cadáver ainda está no início. Na semana passada, após a rejeição da primeira denúncia contra o major da reserva Sebastião Curió, os procuradores da República anunciaram que vão recorrer ao Tribunal Regional Federal da 1.ª Região. O assunto deve acabar no Supremo Tribunal Federal (STF).
Eis a entrevista.
Como o sr. vê o texto da denúncia contra o major Curió, acusado de crimes na guerrilha do Araguaia?
O documento é importante do ponto de vista histórico, porque faz um relato preciso das circunstâncias das prisões e narra com detalhes o que aconteceu. Sob o aspecto jurídico, porém, o valor é nulo.
Por que o sr. destaca o valor histórico da denúncia?
Fui presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos por um período de cinco anos. No trabalho à frente dessa comissão, criada pela Lei 9.140 de 1995, foi extremamente chocante ouvir os relatos sobre os desaparecidos, especialmente os casos dos torturados nas delegacias, nos porões da ditadura. Por isso considero importante essa denúncia.
E por que não vê valor jurídico no documento?
A Lei 9.140, que criou a comissão, estabelece em seu primeiro artigo que se reconhece, para todos os efeitos legais, a morte das pessoas desaparecidas. Foi em decorrência dessa determinação que houve a emissão de certidões de óbito pelos cartórios e a abertura de processos de sucessão, que eram reivindicações dos familiares. Diante disso, fica absolutamente sem sentido estabelecer agora que os desaparecidos continuam vivos. Como sustentar uma coisa dessas, se eles são declarados mortos pela lei e se não existe nenhum elemento probatório de que estão vivos? Não há um mínimo indício, nada que permita processar os autores dessas prisões por sequestro - e não por homicídio, como se pretende agora.
Os desaparecidos estavam sob a guarda dos militares.
Eles faziam parte da guerrilha e as eventuais prisões que ocorreram colocavam-se dentro do nível da legalidade. O ilegal, evidentemente, seria torturá-los e matá-los. Portanto, se alguém fosse encaminhar um processo criminal, se tivesse elementos para isso, seria em relação a tortura e homicídio - jamais por sequestro. Mas o primeiro contrassenso nesse debate, insuperável, é esse ao qual já me referi: os desaparecidos foram legalmente declarados mortos. Como é que podem ser reconhecidos como mortos para outros efeitos, como sucessão familiar, mas não para esta denúncia? É uma temeridade.
Os corpos não foram encontrados. Não é crime permanente?
O sequestro é um crime que existe no momento da ação, quando se pega alguém, com abuso de autoridade, e suprime sua liberdade, impedindo que saia do cárcere. Onde é que existe algum indício, alguma ação que demonstre que, ao longo desse período de quase 40 anos, essas pessoas foram impedidas de recuperar a liberdade e continuam encarceradas? Como se pode provar a participação do Sebastião Curió para impedir, nesse tempo todo, a liberdade dessas pessoas, que estão presumivelmente mortas?
Isso não seria uma brecha na Lei da Anistia para finalmente punir os autores dos crimes?
Isso é mais do que uma elucubração jurídica: é uma criação. O processo penal não funciona assim. Ele precisa de fatos, não de hipóteses que venham satisfazer a necessidade de punir alguém. Eu também gostaria que o Curió e outros que participaram de atividades repressoras tivessem a sua punição. Mas não podemos fazer isso porque temos, em primeiro lugar, uma impossibilidade jurídica. Dar andamento a essa ideia significaria criar uma imensa insegurança jurídica. Não tenho dúvida de que a absoluta falta de justa causa para a propositura dessa ação vai demonstrar que se pode brincar com o direito, que se pode fazer denúncias infundadas. Em vez de beneficiar a causa do repúdio a esses atos, ela acaba sendo maléfica.
O sr. falou das prisões no Araguaia. E os casos ocorridos em outros lugares?
Todos os casos estão sob o manto da Lei da Anistia de 1979. E não se pode falar em sequestro e crime continuado, porque ninguém ficou sequestrado. Com o fim do AI-5 e o início do governo de Tancredo Neves e José Sarney, ninguém mais ficou encarcerado por crime político.
A lei é criticada por ter sido promulgada sob o regime militar.
Na época eu fazia parte do Conselho Federal da OAB. Nós lutamos por essa lei, porque era uma forma de trazer um pouco de paz política e social ao País. Várias pessoas que estavam presas, refugiadas e exiladas puderam voltar ao Brasil e reiniciar suas atividades políticas. Foi o início de um processo de pacificação para se passar ao regime efetivamente democrático. Não se pode negar que a lei constituiu um benefício político e democrático para o Brasil.
Critica-se o fato de ter sido uma anistia de mão dupla.
Foi sim um processo de mão dupla, que também anistiou aqueles que praticaram tortura, que é um crime contra a humanidade. Ao mesmo tempo, porém, do ponto de vista interno, da política brasileira, foi o momento da volta dos cassados aos cargos públicos, dos professores às atividades universitárias, da organização dos partidos. Foi um preço alto? Foi. Mas foi o preço para trazer a paz política e social para o Brasil. Mais tarde, é preciso lembrar, essa anistia foi legitimada pela emenda constitucional que convocou a Assembleia Constituinte. O tema também já passou pelo Supremo Tribunal, que o analisou profundamente. Não se pode fazer tábula rasa de tudo isso, porque o resultado leva a uma profunda insegurança jurídica.
Representantes da ONU apoiaram a iniciativa do MPF.
É uma contradição falar em proteção dos direitos humanos sem o respeito aos princípios básicos do Estado democrático. Forçar uma interpretação, que permita moldar o que aconteceu a um determinado tipo penal, é um desrespeito aos princípios básicos do direito. Por mais justo que seja o desejo de punir as pessoas que praticaram atos violentos à época da ditadura militar, nada justifica o abandono de princípios nos quais está fundamentado nosso pensamento. Não pode se garantir direitos humanos a uns e negar a outros.
Como vê a pressão dos organismos internacionais sobre o País?
É uma pressão que se faz com base em tratados e documentos que o País assinou depois da Lei da Anistia. Eles devem ser executados no nosso dia a dia, mas querer retroagir e forçar a adequação de acontecimentos é o mesmo que colocar o desejo acima dos princípios.
E a Comissão da Verdade?
É um ponto altamente positivo porque não há direito ao esquecimento. Os fatos devem ser divulgados e ensinados às novas gerações. O que não existe é o direito à perseguição penal.
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'Anistia de mão dupla foi o preço da volta à democracia'. Entrevista com Miguel Reale Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU