28 Fevereiro 2012
À luz da questão de Deus, o cardeal Kasper fornece uma definição da essência da Igreja intimamente ligada à teologia trinitária, apresentando a Igreja como povo de Deus, como corpo e esposa de Cristo, e como templo do Espírito Santo.
Essa é a reflexão do cardeal Kurt Koch, presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, durante a apresentação do livro do cardeal Walter Kasper Chiesa cattolica. Essenza – Realtà – Missione (Ed. Queriniana, Bréscia, 2012), em evento no Centro Pro Unione, de Roma, no dia 26 de janeiro de 2012.
O texto foi publicado no blog Teologi@Internet, 24-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nota da IHU On- Line: O livro de Walter Kasper será publicado em português pela Editora Unisinos na Coleção Teologia Pública.
Eis o texto.
Chiesa cattolica. Essenza – Realtà – Missione [Igreja Católica. Essência – Realidade – Missão]: sob esse título relativamente simples e nada pretensioso, o cardeal Kasper expõe a sua ampla eclesiologia. Tenho o prazer de poder apresentar brevemente essa grande obra. E me alegro sobretudo pelo fato de que o cardeal Kasper, depois de ter se tornado presidente emérito do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, tenha podido escrever esse livro sobre a Igreja, que ele tinha em mente há algum tempo e que vai completar as suas grandes monografias sobre a cristologia e sobre a doutrina sobre Deus.
Em cada capítulo, nota-se que esse livro é o resultado de um confronto intenso, não só acadêmico, mas principalmente existencial, com a realidade da Igreja Católica. Como mostra a primeira parte detalhada, intitulada "O meu caminho na Igreja e com a Igreja", o cardeal Kasper se ocupou da Igreja não só como professor, de maneira acadêmica, e como bispo, de acordo com o seu ministério. A Igreja, ao contrário, tem a ver com a sua própria vida e com a sua experiência existencial. O fato de falar detalhadamente, de modo tão pessoal, sobre a Igreja como tema do seu caminho de vida também confere uma autenticidade confiável às suas reflexões acadêmicas, que ele apresenta na parte principal do livro sob o título Traços fundamentais da eclesiologia católica.
E, no fundo, é apenas com uma abordagem pessoal semelhante que se pode enfrentar de forma satisfatória um tratado científico sobre a eclesiologia, como demonstra a própria história. A eclesiologia é, de fato, uma especialidade relativamente tardia na história da Igreja e da teologia. A Igreja não é, em primeira linha, um objeto da teologia, mas sim o sujeito e o âmbito vital em que também se realiza a teologia.
Chegou-se a uma explícita tematização teológica da Igreja somente após desenvolvimentos concretos que puseram novamente em discussão a realidade histórica e institucional da Igreja. O primeiro deles foi, no fim da Idade Média, o movimento conciliarista que fez com que, para se defender, a eclesiologia se transformasse principalmente em um hierarqueologia, fenômeno que depois se aguçou ao longo da história por causa da apaixonada controvérsia com os reformadores. Desse impasse, a eclesiologia só conseguiu sair com o Concílio Vaticano II, que apresentou, pela primeira vez, de forma ampla e contextualizada, a doutrina católica sobre a Igreja, depois que o Concílio Vaticano I teve que se interromper por causa do estouro da guerra franco-alemã, deixando apenas um fragmento de eclesiologia.
Pensamento eclesiológico do Concílio
À luz também do exposto acima, entende-se facilmente por que, na apresentação que o cardeal Kasper faz da eclesiologia católica, o pensamento eclesiológico do Concílio Vaticano II apareça um pouco como fio condutor. O Concílio Vaticano II foi, sem dúvida, na vida do cardeal Kasper, o evento eclesiológico mais significativo, do qual ele extrai os seus próprios marcadores eclesiológicos, e continua representando para ele a Magna Carta da Igreja Católica também no terceiro milênio.
Isso transparece sobretudo do fato de que a sua abordagem eclesiológica leva a sério o título da Constituição Dogmática sobre a Igreja. De fato, segundo a eclesiologia conciliar, Lumen gentium não é a Igreja, mas sim Cristo, luz dos povos, e a Igreja é só o seu reflexo, ou seja, é o sinal e o instrumento de Deus, que se revelou de maneira definitiva em Jesus Cristo. A Igreja, portanto, não deve querer ser sol, mas deve se alegrar em ser lua, em receber toda a sua luz do sol e fazê-la resplandecer dentro da noite. Assim como a lua não tem luz em si mesma, mas reflete aquela luz que vem do sol, assim também a Igreja pode transmitir e fazer resplandecer na noite da humanidade somente aquela luz que recebeu de Cristo.
O livro do cardeal Kasper sobre a Igreja Católica está a serviço do coerente desdobramento de uma eclesiologia lunar. O fato de que, desse modo, se realizou a intenção do próprio Concílio pode, talvez, ser mostrado por um pequeno episódio que se verificou no período de preparação ao Concílio. Quando o Papa João XXIII anunciou e convocou o Concílio, é conhecido que ele não definiu nenhum tema específico; ao contrário, ele convidou os bispos de todo o mundo a apresentarem as suas prioridades, para que a tarefa do Concílio pudesse ser decidida com base nas experiências reais da vida da Igreja universal.
Ao longo das consultas dentro da Conferência Episcopal Alemã sobre o tema a ser proposto ao Concílio, os bispos alemães expressaram a sua convicção de que o tema principal deveria ser a Igreja e que o Concílio deveria ser um Concílio da Igreja. Foi então que Sua Excelência Dom Buchberger, bispo de Regensburg, já idoso, tomou a palavra e observou que o mais importante no Concílio era que se falasse de Deus. Embora tocados por essa intervenção, os outros bispos não chegaram a propor a questão de Deus como tema central para o Concílio.
É um sinal bonito e significativo que hoje seja novamente um bispo e cardeal alemão que retoma essa instância decisiva, que traz novamente para o primeiro plano e para o centro das discussões sobre a Igreja a questão de Deus, que interpreta assim a eclesiologia em sentido empático como "teo-logia". Nessa ênfase posta sobre a dimensão teocêntrica da teologia, especialmente da teologia da Igreja e da sua prática, reside o objetivo principal do livro do cardeal Kasper, como ele mesmo diz: "Este livro não quer apresentar uma nova eclesiologia católica, mas sim uma eclesiologia católica renovada no sentido do Concílio Vaticano II. Para fazer isso, ele apresentará a questão da Igreja à luz da questão de Deus e da mensagem do Reino de Deus, a fim de enquadrar desse modo a Igreja tanto bíblica, quanto existencialmente" (p. 64-65). Um grande parágrafo ilumina especialmente "o horizonte da história universal e da história da salvação" em relação à Igreja e à eclesiologia.
À luz da questão de Deus, o cardeal Kasper fornece uma definição da essência da Igreja intimamente ligada à teologia trinitária, apresentando a Igreja como povo de Deus, como corpo e esposa de Cristo, e como templo do Espírito Santo. Ele se concentra, depois, sobre as propriedades essenciais da Igreja: a sua unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade. Como esses aspectos fundamentais, por causa das divisões históricas da Igreja, se tornaram objeto de acesas controvérsias, é especialmente nesse capítulo que o cardeal Kasper aproveita a oportunidade para delinear em detalhes as principais questões abordadas nas discussões ecumênicas e para expor a situação atual do diálogo ecumênico.
Reconhece-se a maior dificuldade deste último no fato de que as várias Igrejas e Comunidades eclesiais têm maneiras diferentes de entender a eclesiologia e, consequentemente, uma ideia diferente também do que deve ser a unidade da Igreja, de modo que o objetivo do movimento ecumênico tornou-se cada vez mais vago nas últimas décadas. Portanto, o principal problema ecumênico não reside simplesmente na questão dos ministérios eclesiais, mas sim na questão dos ministérios eclesiais dentro do contexto eclesiológico mais amplo.
Renovação da Igreja
Compreender a eclesiologia à luz da questão de Deus significa perceber a urgente necessidade de uma renovação teológico-espiritual da Igreja. Tal renovação se revela muito mais adequada aos tempos de todas aquelas reformas exteriores e estruturais que hoje, diante da chamada estagnação das reformas, são debatidas e exigidas. De fato, as reformas exteriores e as mudanças estruturais levam a um ativismo sem meta e a um encurvamento eclesial sobre si mesmas se não forem alimentadas por uma renovação espiritual. Por outro lado, uma renovação espiritual sem reformas concretas corre o risco de evaporar em um espiritualismo estranho ao mundo.
Por isso, a renovação espiritual e a reforma concreta da Igreja estão inseparavelmente ligadas. Mas como a crise da Igreja, da qual tanto se fala hoje, se revela, olhando bem, como uma crise de Deus, e como o desafio decisivo que a Igreja tem diante de si é o do secularismo, o que é necessário neste momento é principalmente uma renovação espiritual da Igreja.
Tanto a renovação espiritual, quanto a reforma da Igreja são apresentadas pelo cardeal Kasper à luz da ideia-guia teológica da communio, com a qual o Sínodo dos Bispos de 1985, no qual o cardeal Kasper trabalhou como secretário, resumiu, 20 anos depois da conclusão do Concílio Vaticano II, a sua orientação fundamental e aprofundou a sua doutrina sobre a Igreja, principalmente como eclesiologia de comunhão.
A esse respeito, é muito significativo que a communio não é utilizada como conceito sociológico e não é descrita simplesmente como comunidade. Communio é um termo estritamente teológico e indica sobretudo a participação na communio trinitária. A Igreja, portanto, deve ser entendida como ícone da Trindade, e a communio eclesial se fundamenta nos dois sacramentos basilares do batismo e da eucaristia. Para o cardeal Kasper, também é importante mencionar as consequências concretas que decorrem do conceito de communio, sobre as quais ele reflete no capítulo intitulado "A forma concreta da Igreja como communio".
Uma dimensão particular da realidade de communio da Igreja é identificada pelo cardeal Kasper na atitude dialógica que caracteriza a vida da Igreja. Uma Igreja dialógica está comprometida hoje com uma grande variedade de conversações e as leva adiante não só internamente, de modo comunicativo e participativo, mas também externamente no diálogo com o Povo de Deus da antiga aliança, no diálogo ecumênico, no diálogo com as religiões e no diálogo com o mundo contemporâneo.
Porque um verdadeiro diálogo não implica a renúncia à própria identidade, mas, ao contrário, o amadurecimento na própria identidade através do encontro com o outro e, portanto, não tem nada a ver com o subjetivismo, o relativismo e o sincretismo, propondo-se, ao contrário, à busca da verdade. A dimensão dialógica e a dimensão missionária da Igreja não se contrapõem, mas são indispensáveis uma à outra. De fato, a Igreja não fica inerte e fechada em si, mas está a serviço daquela missão que lhe foi confiada pelo Cristo ressuscitado e que o cardeal Kasper descreve como "serviço da transformação do mundo no espírito do advento do reino de Deus" já iniciado (p. 468).
O futuro da Igreja
A ênfase posta sobre a dimensão missionária da Igreja, sobre a qual hoje se fala principalmente com o termo de nova evangelização, também tem, para o cardeal Kasper, o objetivo de responder à premente e urgente pergunta sobre aonde conduzirá o caminho da Igreja. A essa questão se dedica o capítulo conclusivo, pequeno, mas substancioso e rico em sugestões. Assim como um médico só pode sugerir uma terapia sensata se antes tenta ter uma anamnese completa e se pronuncia sobre um diagnóstico preciso, assim também o cardeal Kasper parte de um diagnóstico concreto, que consiste em reconhecer hoje uma crise na Igreja Católica, que possui várias e complexas facetas.
Ao fazer isso, ele não se limita a relatar os fenômenos mais evidentes, mas se interroga sobre as causas mais profundas, que ele vê refletidas "no fato de que uma época da história da Igreja está prestes a terminar, sem que já estejam claramente visíveis os novos horizontes nos quais ela continuará seguindo em frente" (p. 525).
Para o cardeal Kasper, portanto, a figura de Igreja plenamente enraizada no povo (Volkskirche), que certamente teve o seu grande peso na história e fez a sua grande contribuição, mas que se dirige ao seu fim diante da situação pluralista de hoje, não pode ser uma figura da Igreja orientada para o futuro no terceiro milênio. Nesse seu diagnóstico, o cardeal Kasper se diferencia de muitos outros "diagnósticos da Igreja", que, no fundo, não conseguem aceitar o fato de que a figura social da Volkskirche (Igreja do povo) se consumiu do ponto de vista histórico e que, no seu luto da despedida, buscam em toda a parte bodes expiatórios para a situação percebida também por eles como precária da Volkskirche, encontram-nos preferencialmente entre os altos responsáveis eclesiais e apontam para reformas que, em última análise, visam à manutenção da Volkskirche.
O cardeal Kasper, ao invés, olha com clareza para o futuro e vê a situação crítica da Igreja no contexto dos graves processos de transformação que se verificam na sociedade atual. Portanto, ele vê o futuro da Igreja não na manutenção das estruturas da Volkskirche já anacrônicas, mas compartilha o parecer do grande historiador Arnold J. Toynbee, segundo o qual, nas situações particularmente difíceis da história da humanidade, quem identificou uma saída sempre foram minorias qualificadas e criativas, as quais, depois, a maioria pôde se unir.
Nesse sentido, a Igreja deve aprender hoje a abandonar também atitudes dadas até agora como óbvias, mas que não estão mais orientadas para o futuro. Tal despedida só poderá ocorrer com sucesso se tivermos coragem e se soubermos conectá-las a um novo início. E a nova reviravolta só poderá ocorrer se três realidades convergirem e agirem juntas, ou seja, "uma renovação espiritual alimentada pelas fontes, uma sólida reflexão teológica e uma mentalidade eclesial" (p. 529).
Essas três atitudes de fundo são retraçáveis, passo a passo, no livro do cardeal Kasper, que continua sendo, no seu realismo e na sua descrição não adocicada dos problemas, um livro cheio de esperança.
O cardeal Kasper sabe que a renovação espiritual da Igreja, da qual hoje tanto precisamos, será "possível apenas mediante um novo Pentecostes". Assim como aconteceu naquela época, quando os discípulos se reuniram juntamente com as mulheres que haviam seguido Jesus e rezaram incessante e unanimemente pela vinda do Espírito Santo, assim também hoje um novo Pentecostes só poderá ser preparado mediante uma oração intensa, já que "a Igreja do futuro será sobretudo uma Igreja de orantes" (p. 550). De fato, a oração é o lugar onde teve origem aquela alegria por Deus que o livro veterotestamentário de Neemias define como "a nossa força".
Só dessa alegria por Deus pode crescer também a alegria pela Igreja, que não é aquele tipo de alegria que nós mesmos procurarmos e que, portanto, raramente tem consistência. A alegria vivida na fé cristã é aquela alegria que, em última análise, só o Espírito pode nos dar. Tal alegria é a marca distintiva de toda a realidade cristã, ao ponto de podermos dizer: lá onde – também e precisamente na Igreja – há a falta de alegria e uma irritabilidade depressiva, o Espírito de Jesus certamente não está atuando. Lá, ao contrário, atua o espírito dos tempos, que se tornou, às vezes, tão triste.
Desse espírito dos tempos não há nenhum rastro no livro do cardeal Kasper, mas, ao invés, é perceptível o Espírito de Deus que nos conduz ao coração da fé e da Igreja, e que nos dá aquela alegria que, apesar das dificuldades e dos problemas, dos fardos e das indignações, é sólida e durável. Por ter testemunhado essa alegria no seu livro sobre a Igreja Católica e por ter desejado inspirar os leitores a essa alegria, desejo expressar ao cardeal Kasper a minha sincera e profunda gratidão.
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A questão eclesiológica à luz da questão de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU