06 Setembro 2011
Publicamos aqui um trecho do novo livro do filósofo, historiador e linguista búlgaro Tzvetan Todorov, dedicado à figura do grande pintor holandês do século XVII, Rembrandt. Desde então, os estudiosos buscaram ver em seus quadros algo que vai além das cores e das formas. A busca inexaurível, obstinada, do belo e do verdadeiro não leva necessariamente à felicidade imediata.
O trecho foi publicado no jornal La Repubblica, 05-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Desde o século XVII, os estudiosos de Rembrandt quiseram ver em seus quadros algo que vai além de uma bela justaposição de cores e de formas: uma mensagem sobre a condição humana, uma reflexão sobre o mundo. Roger de Pils, que viveu na Holanda no fim do século, no seu Abrégé de la vie des peintres (1699), afirma que Rembrandt, por trás das "histórias" emprestadas da tradição, na realidade, havia "tracejado uma infinidade de pensamentos". Thoré-Bürger, em Les Musées de la Hollande (1858-1860), descreve Rembrandt como profundo e inaferrável: "Não sabemos o que dizer: fiquemos em silêncio e reflitamos". Em 1999, Simon Schama reconheceu que Rembrandt é um mestre da emoção, mas acrescentou: "Desde o início, Rembrandt também foi um agudo pensador, tanto filósofo quanto poeta".
A pintura pensa e faz pensar, embora os pintores nem sempre o saibam. Na representação do cotidiano, Rembrandt não se limita a observar o mundo ao seu redor e a traduzi-lo em formas visíveis: ele nos torna partícipes da sua concepção da vida humana.
Os heróis e os santos que povoam as suas obras não são diferentes dos indivíduos que podemos encontrar na rua; uns e outros merecem a mesma atenção. Rembrandt quis capturar e representar a verdade em cada situação, em cada gesto, mostrou-se nas vestes do mendigo e do príncipe, projetando-se em todos os homens, mulheres e crianças (e até mesmo as árvores) que enchem o seu trabalho: não deixou de penetrar na sua intimidade, indo além das aparências e tornando os seus personagens sedutores e vulneráveis ao mesmo tempo, humanos na sua mesma fraqueza. Isto é, senão a principal, uma das grandes mensagens da pintura de Rembrandt: uma lição de humanidade e de universalidade. É graças a essas qualidades que todos nós podemos nos reconhecer nos seus quadros e reencontrar as nossas emoções ou as nossas interrogações.
Porém, essa não é a única consideração que podemos extrair dessa obra. A análise da relação entre as imagens e o seu criador nos leva ainda além. A identificação universal praticada por Rembrandt parece ter um preço: os indivíduos são sacrificados sobre o altar do conhecimento da espécie. O próprio pintor se reconhece em cada um deles – mas isso o obriga a se distanciar de todos. Desenhando uns e outros, capturando poses e movimentos, ele parece movido mais pela curiosidade do que pelo amor, trabalhando mais com empatia do que com simpatia.
Elsje foi dependurada na forca pela manhã; à tarde, é preciso logo acompanhar os alunos in loco para que possam ver como é um cadáver fresco, antes que comece a se decompor. Os filhos que ele teve com Saskia morrem, mas isso não lhe impede de mostrar outras crianças que crescem e se agitam felizes. Os autorretratos de Rembrandt seguramente devem ser interpretados com prudência, já que o pintor não representa os seus próprios estados de ânimo, mas sim os papéis que ele interpreta de vez em quando. Entretanto, essa sucessão também é eloquente: passa-se rapidamente do jovem alegre e sedutor dos primeiros anos de casamento ao indivíduo lúgubre e desiludido do período entre 1636 e 1638, antes de chegar, durante a doença de Saskia, à imagem do pintor seguro de si, que olhar para os contemporâneos um pouco de cima para baixo. A própria doença de Saskia representa uma interessante oportunidade para explorar os segredos de um corpo enfraquecido, de um olhar desesperado. (...)
Devemos evitar de deduzir as virtudes do homem a partir das qualidades humanas que animam as imagens do pintor e de projetar ingenuamente o representado sobre o vivido. Ainda mais, os detalhes da sua biografia e as características do processo criativo parecem sugerir que Rembrandt não se preocupava com essas virtudes, mas estava pronto a se servir de parentes e de amigos para perseguir um único objetivo: aperfeiçoar a sua pintura. Os seres que o circundam são reduzidos a um papel auxiliar: tornar-se o alimento desse artista de apetite insaciável.
Poderia ser de outra forma? No momento da criação, se pede ao artista que mostre certas qualidades, que obviamente não são a gentileza (em relação aos personagens ou aos outros indivíduos da espécie humana), nem a indulgência, ou o altruísmo, ou o instinto de proteção materno. Preferimos, ao contrário, que ele seja implacável – consigo mesmo, com a humanidade – para superar os antecessores na busca de uma verdade nova e mais profunda sobre o ser humano, para ampliar as fronteiras do conhecimento. É justamente essa verdade que, na arte, nós chamamos de beleza. Dos grandes pintores, não esperamos uma prova das suas virtudes, nem uma condenação dos vícios alheios, mas sim a capacidade de entender e de nos fazer entender os seres humanos: os ladrões e os assassinos, assim como os santos e os heróis. A realização da obra aspira a que o artista use todas as suas forças, tornando-o, consequentemente, indiferente para com o mundo ao seu redor, privando-o das qualidades as quais o mundo atribui valor. (...)
Os artistas do passado eram conscientes da tensão entre finalidades diferentes e aceitaram as consequências derivantes da sua escolha. A busca inexaurível, obstinada, do belo e do verdadeiro não leva necessariamente à felicidade imediata. O preço a ser pago pode até ser alto – tanto para o artista, quanto para os seus entes queridos –, porque o que está em jogo é algo grande. "Eu não tenho amigos – parece ter dito Beethoven a Bettina von Arnim –, tenho que viver só comigo mesmo. Mas eu sei com certeza que, na minha arte, Deus está mais perto de mim do que aos outros homens [...]. Nem me preocupo com a minha música, que não pode ter um destino ruim. Quem a entende, será aliviado de todas as misérias que os outros trazem sobre si".
Na França, algumas décadas mais tarde, Flaubert escreveu a George Sand: "Embriagar-se de tinta é melhor do que embriagar-se com brandy. A Musa, por mais carrancuda que seja, dá menos dores do que a Dama! Eu não posso ter ambas" (...)
Rembrandt também pertence àquela família de artistas para os quais o rio da vida se divide em dois ramos que não se comunicam entre si. O pintor é sensível à humanidade de cada um, desde o deus crucificado ao menininho que aprende a caminhar; os seres que o circundam, no entanto, são colocados ao serviço da criação e do criador. Uma vez que a existência e as energias do homem são limitadas por definição, as renúncias são, obviamente, inevitáveis. Mas nada sente a fatalidade de uma distinção semelhante (provavelmente inconsciente para Rembrandt), se é verdade que o criador deve se entregar inteiramente à sua própria obra, para que ela seja verdadeira, e deve até aceitar se tornar implacável – com relação a si mesmo e com relação ao mundo que habita – para chegar a sondar os seus segredos; nada o obriga, uma vez fora da obra, a perseverar nessa escolha. Cada um vive a si mesmo como um indivíduo plural. Se Jesus, a Virgem e os santos podem se misturar com outros homens sem perder nada da sua grandeza, como Rembrandt nos mostrou tão bem, por que os artistas não deveriam conseguir fazer o mesmo?
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Quando o artista indaga a condição humana. Artigo de Tzvetan Todorov - Instituto Humanitas Unisinos - IHU