31 Mai 2011
Antes, ele mudou a história do pensamento afirmando ter encontrado a solução definitiva. Depois, mudou-a dizendo o contrário. Rico e frugal, soldado e eremita, matemático e irracional, foi o homem que disse: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar". Agora, a 60 anos da sua morte, em Cambridge, surge um baú de escritos que poderiam mudar tudo mais uma vez.
A reportagem é de Riccardo Staglianò, publicada no jornal La Repubblica, 19-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fato mais paradoxal, para um obcecado da linguagem como Wittgenstein, que tem na sua escassa bibliografia o inexpugnável Anotações sobre as cores, é que se conjecture sobre a natureza cromática de um escrito seu reencontrado. "Pode ser, assim como também não, a obra que falta chamada de Livro rosa ou Livro amarelo, que os estudiosos procuram há muito tempo", comenta Arthur Gibson, o homem que passou os últimos três anos em um colossal arquivo inédito de um dos mais complexos e decisivos filósofos do século XX.
O professor de Cambridge se refere a um caderno escolar de capa rosa que contém novos textos do lógico vienense. Um objeto de desejo para os especialistas, talvez a sequência ideal – embora anterior – das Investigações Filosóficas com as quais, na segunda parte da sua vida, ele havia demolido o Tractatus Logico-Philosophicus.
Sabe-se lá como ele comentaria ("sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar") sobre essa confusão de tonalidades. Porém, ele ficaria contente com a redescoberta do pequeno tesouro de 150 mil palavras que contém, para além da pérola supracitada, a única versão versão escrita a mão do Livro marrom, ou seja, apontamentos das suas aulas em Cambridge na metade dos anos 1930. Com 60 páginas mais e uma introdução revista. Mais de mil cálculos matemáticos em que o aluno depois contestador de Bertrand Russell se depara também com o Pequeno Problema de Fermat, em uma demonstração de seis metros de comprimentos se as folhas fossem colocadas em fila. "É como se se acreditasse conhecer todo o DNA e surgisse que havia ainda um quarto desconhecido. Ou descobrir tanto novas obras quanto diversos arranjos de Puccini. Quando abri aquelas caixas, fiquei sem palavras", confessa o organizador, "um mundo inteiro de manuscritos jamais lidos antes que abrem um grande corte em seus processos mentais. Confrontando versões, correções e acréscimos, é como ver o cérebro em funcionamento".
Um espetáculo, dado o titular da cabeça. Com muitas ilustrações e glosas sobre as anotações que ele ditava ao seu amanuense, além de jovem amante, Francis Skinner. No espartano estúdio da Great Court, onde Wittgenstein lecionava, e Newton vivera, não havia nada mais do que uma cadeira de praia, uma estufa e Francis.
"O seu papel intelectual sai muito reforçado desses documentos. Eram um o espelho do outro", explica Gibson. "Com relação a ele, o filósofo tinha uma relação quase bipolar, entre a fortíssima proximidade emocional forte e a rejeição. Um amor-ódio que ele já havia sentido pelo pai bilionário e invasivo. E o irmão Paul, pianista de gênio, apesar de ter perdido um braço na guerra, que não gostava da sua filosofia mais do que suportava a sua música. O número dos estudantes que ele tinha afugentado das aulas crescia dia após dia. No fim, havia permanecido só ele em sala de aula".
Aquilo que não conseguiam fazer na universidade, terminavam em casa. Conviviam, embora a homossexualidade fosse crime. Estudavam russo e sonhavam em se mudar para a União Soviética, abandonando a filosofia para se entregar à medicina ou à criação de animais. Não importava. Assim, em 1941, quando o pólio matou o aluno, o mestre correu o risco de enlouquecer. Considerou o fato de deixar o ensino. E, para se livrar das recordações, enviou por correio os três pacotes de anotações a Reuben Goodstein, amigo de Francis e seu estudante. "Este se compromete", explica Gibson entregando ao jornal La Repubblica uma cópia da carta, "a contatar o filósofo se encontrasse materiais publicáveis. E hoje, diante de textos de tal importância, resta o mistério do porquê ele não o fez".
Aqui, a trama epistemológica se turva com pulsões muito humanas. De um lado, o zelador havia sido próximo de Skinner; de outro, venerava Wittgenstein ("sua esposa era tão ciumenta que lhe proibiu que se pronunciasse seu nome em casa") e poderia ter subestimado por rivalidade a relevância dos escritos. Assim se explicaria, talvez, a longa hibernação hermenêutica, continuado até 1976, quando ele os confiará à Mathematical Association. Para acabar, enfim, nos últimos anos, sob os cuidados de Gibson no Trinity College.
No 60º aniversário da sua morte, o Schwules Museum de Berlim lhe dedica uma mostra cheia de diários e objetos, incluindo o lendário paletó de tweed cinza de tantas fotos, enquanto a Sotheby`s leiloa a partir das quatro mil libras esterlinas até os apontamentos menores escritos em resposta às cartas do irmão.
Poucos pensadores podem se orgulhar de inversões em formato de U tão radicais e, porém, convincentes em sua própria jornada intelectual. O Wittgenstein 1.0, do Tractatus (1921), estuda a língua como modo para conhecer. Solipsisticamente, diz, "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo". Do lado de fora, não há nada, a partir do que momento que não se pode dizer. O Wittgenstein 2.0, ao contrário, se concentra na sua natureza mais social, de instrumento de comunicação. É como se tivesse saído das trincheiras da Grande Guerra e do campo de prisão italiano onde havia terminado o Tractatus para se misturar com o mundo.
Muitas das reflexões que depois confluíram postumamente nas Pesquisas (1953) são concebidas no mesmo período das cartas reencontradas. Naqueles anos, ele defende que a linguagem deve ser estudada não na sua dimensão abstrata (como de "gelo puro"), mas nos seus usos práticos ("a terra firme"). Explica Gibson: "A partir desse arquivo, entende-se coisas que iluminam melhor também os escritos posteriores. Que a verdade para ele não é autoevidente. Ou melhor, aquilo que sabemos muitas vezes nos confunde sobre a nossa real ignorância. É um pouco como se iludir que conhecer as previsões do tempo para hoje nos diga algo sobre como será em um mês. E, no entanto, mesmo abandonando a ideia da filosofia como sistema, é como se quisesse recompor as duas parte do seu pensamento. Nas profundezas do uso ordinário da linguagem, extraordinariamente preciso e ao mesmo tempo surpreendentemente arbitrário, ele via semelhanças com a matemática pura avançada. No rastro das Pesquisas, ele queria investigar justamente as relações entre matemática e língua, defendendo que é do seu encontro que deriva a lógica. Que não se pode extrair da matemática apenas, seguindo ao contrário Russell e Frege".
Independentemente de ser o Wittgenstein 2.1 ou até o 3.0, permanece o novo episódio entusiasmante de um filme de final teórico ainda em aberto.
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Wittgenstein. O professor, o filósofo e o arquivo reencontrado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU