28 Março 2011
Depois que a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Uruguai deve investigar e julgar os responsáveis pelo crime de sua mãe e da troca de sua identidade, a jovem espera que o Congresso anule a Lei de Caducidade.
A reportagem é de Victoria Ginzberg e está publicada no jornal argentino Página/12, 26-03-2011. A tradução é do Cepat.
Macarena Gelman está satisfeita e serena. É isso que a sua voz dá a entender durante a conversa por telefone. Na quinta-feira, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Uruguai deve anular a Lei de Caducidade, norma que impede o julgamento dos repressores desse país. A decisão foi tomada em uma demanda apresentada pela jovem e seu avô, o poeta Juan Gelman, com o objetivo de conseguir que em Montevidéu se investigue e condene os responsáveis pelo assassinato de María Claudia García Iruretagoyena e o roubo de sua filha, Macarena, que viveu durante 26 anos sem saber qual era a sua verdadeira identidade.
A sentença do tribunal internacional deveria ser o instrumento que permita acabar com a impunidade no Uruguai. "Obteremos justiça quando a sentença for cumprida", assinala Macarena ao analisar um fato que tem uma dimensão ao mesmo tempo social e institucional e outra íntima e pessoal, porque fala de sua história e dos crimes dos quais seus pais foram vítimas.
Macarena soube da decisão da Corte IDH em Buenos Aires. Tinha viajado para participar da inauguração do Centro de Assistência a Vítimas de Violações aos Direitos Humanos Fernando Ulloa, que aconteceu no dia 24 de março. Mas preferiu voltar a Montevidéu para analisar a sentença. Ultimamente, se encontra com frequência em ambos os lados, porque seguidamente participa, em Buenos Aires, das audiências de dois processos que têm ela e sua família como protagonistas: os crimes cometidos no centro clandestino Automotores Orletti, sede da Operação Condor, e do plano sistemático de roubo de menores.
Seus pais, Marcelo Gelman e María Claudia García Iruretagoyena, foram sequestrados em agosto de 1976 em Buenos Aires. Ele foi assassinado. Seu corpo foi recuperado pela equipe argentina de Antropologia Forense, em 1989. Ela, que estava grávida, foi levada para o Serviço de Informação de Defesa (SID), em Montevidéu, e deu à luz no Hospital Militar dessa cidade. Até hoje está desaparecida. Macarena foi encontrada em 2000 graças a uma investigação encabeçada pelo seu avô. A partir deste momento, batalharam juntos para saber o paradeiro do corpo de María Claudia e condenar os culpados.
A sentença da Corte IDH estabeleceu que a Lei de Caducidade uruguaia é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. Também estipulou uma reparação econômica – à qual o poeta renunciou e que a jovem irá doar a uma fundação de ajuda a crianças em situação de vulnerabilidade – e convocou o Estado uruguaio a realizar um ato de desculpas públicas, a instalar uma placa no SID e abrir os arquivos da repressão.
"Meu balanço é muito positivo. Este é um processo de quase cinco anos. Era uma sentença muito aguardada e, se bem que tínhamos uma noção de que poderia sair por estes dias, não tínhamos certeza absoluta. Assim que, mesmo sabendo, me pegou de surpresa", disse a jovem.
E o conteúdo também te pegou de surpresa?
Pensei que a sentença iria demorar um pouco mais. Creio que não estava preparada, não sei se alguma vez estaria. O que fizeram foi reconhecer o que pudemos provar e as provas são contundentes. A grande maioria das nossas reivindicações foi aceita.
Isto implica uma mudança geral para o Uruguai, porque deverá anular a Lei de Caducidade, que impede os processos contra os repressores.
Sim, mas não é algo que o Uruguai desconheça e vai sabê-lo agora pela Corte. Desde há muitos anos existem recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos nesse sentido, que até agora não prosperaram. A característica de uma sentença da Corte é que é obrigatória. Espero que sirva para que o Uruguai possa consolidar sua posição nestes temas e ir fazendo um caminho. A sentença da argumentação é muito boa e espero que seja acatada. Da minha parte, na semana que vem haverá uma reunião com o chanceler (Luis) Almagro e espero que seja isso que aconteça. E foi meu interlocutor todo este tempo.
Pode-se dizer que a sentença é o primeiro passo para reabrir definitivamente os processos contra os repressores uruguaios, ultrapassando os casos pontuais que ficaram excetuados na Lei de Caducidade?
Deveria. Nesse sentido a Corte disse que a Lei de Caducidade não poderia ser um obstáculo para a investigação do meu caso particular nem para outros similares.
Então, o que o Estado uruguaio deveria fazer agora?
Está em andamento a votação de um Projeto de Lei para anular a Lei de Caducidade. Nisto a Corte foi contundente e clara. É isso que está em andamento.
A sentença deveria então aplainar o caminho para a aprovação desta lei, se houvesse falta de vontade política para votá-la.
A sentença diz que a Lei de Caducidade carece de efeitos. E no campo político a Frente Ampla pediu aos seus deputados votarem a lei. É de se esperar que acatem esse mandato. Deveria acontecer uma votação sem maiores inconvenientes, mesmo que seja um tema que sempre gera discussões, creio que a postura está clara. Agora o Senado tem que votar e depois deve voltar à Câmara dos Deputados, porque houve modificações.
A sentença estabelece também que deve ser colocada uma placa no SID, onde tua mãe esteve sequestrada. Este tipo de reparação simbólica te satisfaz? É importante?
É sumamente importante. Eu expressei nesse sentido que a única reparação simbólica que para mim teria algum valor é aquela relacionada ao lugar de prisão da minha mãe, que, em última instância, foi o único lugar no Uruguai em que ela esteve, ou pensamos que seja o único lugar. Para mim é muito importante o que aconteceu neste lugar, onde também estiveram outros companheiros.
O que acontece se o Uruguai não cumprir a sentença?
Entendi que a Corte tem mecanismos de acompanhamento para o cumprimento das sentenças. Não posso saber o que irá acontecer, mas não está em mim pensar que não vão cumpri-la. O Estado já manifestou na Corte que vai cumpri-la e é de se esperar que o faça.
Como viveste a decisão do tribunal em nível pessoal? Porque, para além do fato de esta sentença abrir um caminho para o Uruguai, também fala da busca da verdade e dos responsáveis pelo assassinato da tua mãe.
Obviamente, emociona muito. Na realidade, tenho uma sensação estranha e custa me expressar a este respeito. É muito recente. Estava em Buenos Aires quando soube e viajei logo em seguida para cá. Creio que essas coisas são analisadas, ou dá a oportunidade de senti-las realmente, quando se tem um pouco de solidão e tranquilidade. Até agora não tive isso. Por um lado, é alentador, é satisfatório o que aconteceu e, por outro, será preciso ver como a gente se sente em relação a isto.
Pudeste falar com teu avô?
Falamos por telefone logo depois que soubemos disso.
E como foi?
Obviamente, satisfatório para os dois. Contentes... não sei se contente é a palavra mais apropriada, mas satisfeitos pelo fato de que um caminho tão difícil tenha dado resultados.
O que foi o mais importante da sentença ou o que mais te surpreendeu?
Houve muitas coisas importantes, entre elas o reconhecimento do meu desaparecimento forçado nestes 23 anos que não conheci minha identidade. A determinação da responsabilidade do Estado é algo muito significativo, o reconhecimento da violação de todos os direitos que havíamos invocado... realmente tem muitíssimos aspectos para destacar e não creio poder abarcá-los todos. Capta o que nós propusemos. Senti que tanto eu, como meu avô, como as testemunhas, fomos escutados. Sobre a causa judicial (sobre o assassinato de minha mãe), por exemplo, diz que já havia extrapolado todos os prazos e que, ainda que aparentemente, a Lei de Caducidade não era supostamente um obstáculo, porque o caso estava excluído, todos os problemas da investigação residiam na Lei de Caducidade. É algo que, mesmo que pareça muito fácil de entender, às vezes é difícil de transmitir.
O que o Estado uruguaio pretende ou deve fazer sobre a busca do corpo da tua mãe?
Se eu fui encontrada por uma investigação particular, sem todos os instrumentos que o Estado tem, o Estado deveria fazê-lo. Me perguntam como era possível fazer se os responsáveis não falavam. Esse argumento é absurdo. Se a solução dos crimes dependesse da declaração dos culpados como tais, não se resolveria nenhum. O que falta é uma investigação, se os responsáveis falassem, não seria preciso. O principal aqui é vencer a cultura do "não se pode’ antes de ver se se pode.
Nesse sentido, a sentença fala da necessidade de abrir arquivos, essa seria uma ponta para investigar.
Evidentemente. Na realidade, há arquivos aos quais supostamente se teve acesso. A Corte dizia em sua sentença que não está demonstrado que neste caso isso tenha sido um benefício e que não está demonstrado que se tenha tido acesso efetivamente à informação que, mesmo que haja uma lei de acesso à informação pública, se a informação não estiver sistematizada e não estiver ordenada será muito difícil encontrá-la. Então não basta abrir os arquivos, tem que haver um tratamento da informação e é preciso aprofundar esse tema porque é isso que serve para as investigações.
Esta sentença, que abre a possibilidade de fazer Justiça no Uruguai, se junta aos dois processos que estão sendo realizados na Argentina que tratam sobre o sequestro e assassinato dos teus pais e a tua adoção...
Em relação à justiça no Uruguai, poderemos obtê-la quando a sentença estiver cumprida, aí será a satisfação absoluta. Mas, evidentemente, é uma semana muito agitada, muito intensa: temos a sentença do processo de Orletti em Buenos Aires na semana que vem. Além disso, que ocorra em torno destas datas significativas, realmente é uma agitação muito forte.
Ontem (24 de março) viajei para Buenos Aires para a inauguração do Centro Fernando Ulloa, de assistência a testemunhas vítimas e é toda uma outra dimensão que aqui [no Uruguai] não existe. Não há como não fazer a comparação, sobretudo no meu caso, que vou de um lado a outro com frequência. É muito satisfatório o processo que se está dando na Argentina. Obviamente, pode ser melhorado, como tudo, mas creio que a aposta é muito forte e se nota que há uma vontade política e que o assunto está sendo tratado como política de Estado.
E como aceitaste o fato de que o presidente José Mujica visitasse um militar preso que passou por uma cirurgia?
Não me parece nem bem nem mal, simplesmente não entendo. Gostaria de poder entendê-lo. Os sinais são confusos. Não consigo entender... ou o que entendo quisera não entender, mas para mim esta situação é incompreensível. Me custa crer que tenha sido somente para comprovar seu estado de saúde. Se fosse assim, há muitos outros doentes que também merecem que seu estado de saúde seja verificado.
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"Senti que meu avô e eu fomos escutados’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU