12 Março 2011
“As autoridades da Igreja Católica, ainda que pressionadas por grupos de fanáticos, tinham a obrigação não somente de instruir, ensinar, falar com autoridade e dar o exemplo de como os católicos devem agir em circunstâncias como aquela que se apresentou, mas não podiam recusar a hospitalidade na catedral católica de Santa Maria para a sagração do bispo eleito da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, cônego Francisco de Assis Silva”, afirma Gabriele Cipriani, ao comentar o episódio ocorrido em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no mês passado, quando o bispo da diocese da cidade, D. Hélio Adelar Rubert, cedeu a catedral para a sagração do bispo eleito da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, cônego Francisco de Assis Silva, porque a catedral anglicana da mesma cidade encontra-se em reforma.
O acontecido trouxe à tona o debate sobre as relações ecumênicas entre as igrejas Anglicana e Católica. A convite da IHU On-Line, Cipriani aceitou refletir sobre essas questões e responder às perguntas a seguir, por e-mail. Segundo ele, a iniciativa de D. Hélio de ceder a catedral de Santa Maria para a referida ordenação episcopal estava correta e amparada pela tradição e normas da Igreja Católica. Para ele, a decisão de não emprestar a Igreja Católica para os anglicanos foi causada “por iniciativas de católicos radicais, presentes hoje em Santa Maria e ativos em muitos outros lugares. São como uma tropa de choque organizada para assumir liderança na Igreja Católica e levar a cabo a obra de restauração de um antigo regime eclesial e político considerado, por muitos, definitivamente ultrapassado a partir do Vaticano II”.
Apesar dos avanços obtidos pela Santa Sé a partir da criação do secretariado pela unidade, como “discursos, declarações conjuntas, gestos de amizade, encontros do papa com outras autoridades `para a promoção da unidade`, pouco ou nada influenciou os programas dos institutos de teologia, rigorosamente controlados e ancorados ao ensino das faculdades romanas, onde se forma a maioria dos professores de teologia dos seminários católicos”, critica.
Padre Gabriele Cipriani é formado em Filosofia e Teologia e doutor em Letras pela Universidade dos Estudos de Nápoles, com tese intitulada Itinerário ecumênico de João XXIII. Lecionou História do Cristianismo na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e no ISTA de Belo Horizonte. Foi assessor de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso na CNBB e secretário do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - Conic.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são hoje as principais instâncias e/ou mediações do engajamento da Igreja Católica no diálogo ecumênico, considerando a história de sua participação no Conselho Mundial de Igrejas - CMI e a criação de espaços de diálogo particulares com cada família confessional no pontificado de João Paulo II?
Gabriele Cipriani – A Igreja Católica, até o breve papado de João XXIII, não possuía nenhuma instância mediadora de diálogo com as demais tradições cristãs a não ser o próprio papa e a Congregação do Santo Ofício, que regulava essas relações com extremo rigor, emanando um grande número de proibições. O papa João XXIII, tendo em vista as finalidades do Concílio Vaticano II, dentre elas a de priorizar a unidade dos cristãos, instituiu, em cinco de junho de 1960, o Secretariado para a unidade dos cristãos, depois transformado por João Paolo II em Conselho Pontifício. Esta é a instância de promoção da unidade junto à Santa Sé.
Para organizar o serviço da unidade dos cristãos, entregue pelo Vaticano II à responsabilidade dos “fiéis e dos pastores” (UR 5), o diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo especificou responsabilidades e estabeleceu um conjunto de instâncias a serem criadas em diversos níveis: conferências episcopais, dioceses, paróquias, conselhos de Igrejas e associações livres de cristãos e cristãs. Tratava-se de equipar a Igreja Católica de instrumentos que fomentassem o movimento ecumênico impulsionando toda e qualquer iniciativa na direção da unidade do povo cristão.
Limitando-nos ao Brasil, a Conferência dos Bispos criou um setor na sua organização, hoje uma comissão de bispos, e com outras igrejas é membro fundador do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil. Outras instâncias não tiveram o mesmo sucesso. Das Comissões ou secretariados que deveriam ter sido criados em todas as dioceses, só permanece como exemplo a Comissão de Ecumenismo e Diálogo Religioso da Arquidiocese de São Paulo (Cedra). Em algumas outras dioceses foram indicadas pessoas para cuidar do ecumenismo. Mas como o governo da Igreja Católica é governo pessoal e absoluto, bem pouco limitado por organismos coletivos, as instâncias últimas de mediação do compromisso da Igreja Católica com a unidade dos cristãos são o papa e os bispos diocesanos. A estes deve ser atribuída boa parte do sucesso ou do fracasso da contribuição da Igreja Católica ao movimento ecumênico.
No Vaticano II, a Igreja Católica se comprometeu com o único movimento ecumênico nascido no meio protestante e que já tinha organizado uma instância de mediação: o Conselho Mundial de Igrejas. A Igreja Católica, embora tenha aceitado entrar no diálogo de par a par (par cum pari, UR 9) com as outras igrejas cristãs, considerou o Conselho Mundial de Igrejas - CMI como parceiro na promoção da unidade dos cristãos e preferiu estabelecer diálogos bilaterais e multilaterais com igrejas e organismos eclesiais. Associou-se de forma plena somente aos conselhos nacionais ou regionais de igrejas, hoje numerosos, mas com essa hipoteca de uma cooperação não plena com o CMI.
IHU On-Line – Quais são os pontos fortes e quais as debilidades dessa forma de inserção da Igreja Católica no diálogo ecumênico?
Gabriele Cipriani – A partir da criação do secretariado pela unidade, a ação ecumênica da Santa Sé foi muito intensa. Documentos, discursos, visitas, declarações conjuntas, gestos de amizade, encontros de oração se multiplicaram na agenda dos papas e dos representantes do Conselho Pontifício para a promoção da unidade. Nos diálogos teológicos foram feitos avanços importantes, preservando os conteúdos do depósito da fé cristã e evitando a redução ao mínimo denominador comum. Mas tamanha produção teológica, inclusive os documentos finais e declarações comuns, pouco ou nada influenciou os programas dos institutos de teologia, rigorosamente controlados e ancorados ao ensino das faculdades romanas, onde se forma a maioria dos professores de teologia dos seminários católicos. Exceção feita para iniciativas de alguns bispos, a grande maioria do clero católico ficou perplexo e quase paralisado diante da tarefa da promoção da unidade dos cristãos.
A formação ecumênica dos candidatos ao ministério pastoral não foi suficiente para orientar uma ação ecumênica eficaz e nunca constituiu objeto de avaliação para a admissão ao ministério. Ao investimento feito nos diálogos teológicos não correspondeu um grande esforço de formação e orientação pastoral; aliás, depois das primeiras duas décadas, permitiu-se o surgimento de grupos e movimentos católicos integralistas que sucessivamente foram, de modo ostensivo, apoiados pela hierarquia. Hoje sua presença nas altas esferas da Igreja Católica confirma a suspeita de muitos sobre a tipologia do compromisso ecumênico da Igreja Católica: uma ação veladamente “catolicizante” que, apesar das boas intenções e declarações em contrário, transmite novamente a antiga mensagem que o caminho da unidade coincida com o caminho de retorno dos irmãos separados para a Igreja Católica Apostólica Romana.
IHU On-Line – A Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, de fevereiro de 2007, proíbe a cristãos não católicos participarem da eucaristia, vivenciando a hospitalidade eucarística. O que justifica essa proibição? Que compreensão de eucaristia e/ou que eclesiologia está subjacente a essa proibição?
Gabriele Cipriani – A Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, ao n. 56, não proíbe em absoluto a participação de cristãos de outras igrejas e comunidades eclesiais na eucaristia celebrada na Igreja Católica, mas ao tratar dessa possibilidade inverte as intenções do Vaticano II. Este abria espaços para a assim chamada hospitalidade eucarística na Igreja Católica, enquanto a exortação Sacramentum Caritatis tende a restringir essa possibilidade e exorta os ministros a evitar a celebração eucarística caso não seja possível esclarecer a quem é permitido aceder à eucaristia e a quem não é permitido. É necessário dizer também que o n. 56 junta casos diferentes: cristãos de outras tradições, pessoas de outra religião, católicos não praticantes, evitando assim de enfrentar diretamente e aprofundar a possibilidade da hospitalidade eucarística.
A justificação da restrição deve ser procurada na preocupação expressa por alguns membros do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia (2005) sobre o multiplicar-se de casos de hospitalidade eucarística sem controle e em circunstâncias que não a justificariam. Sob o aspecto teológico, o medo expresso na exortação apostólica é a redução da eucaristia a puro meio, tirando dela a característica de sinal da unidade. E a eclesiologia subjacente é a compreensão da íntima interpenetração da comunhão eucarística e da comunhão eclesial que levam à afirmação: “geralmente é impossível que cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica possam ter acesso à eucaristia nela celebrada”.
IHU On-Line – Quais as chances presentes e futuras de flexibilização dessa postura?
Gabriele Cipriani – Não se trata, na verdade, nem de flexibilizar posturas nem de restringir possibilidades e sim de reconhecer o direito dos batizados à Eucaristia e o cuidado para que todas as pessoas batizadas possam gozar desse direito. A mesma exortação apostólica Sacramentum Caritatis retoma esses princípios antigos da teologia católica. No n. 17 estabelece o princípio básico do direito à Eucaristia para todos os batizados: “De fato é preciso não esquecer jamais que somos batizados e crismados em ordem à Eucaristia” e que o sacramento do Batismo constitui a porta de acesso a todos os sacramentos. No n. 30 lembra que a Eucaristia é dom e graça para os batizados, peregrinos rumo à pátria da unidade, para a qual os seres humanos e a criação inteira estão a caminho (Rom 8, 19s). É nessa situação de caminhantes que a graça salvadora de Deus vem em nosso socorro.
Na liturgia católica a eucaristia é invocada como pão dos peregrinos, peregrinos como o profeta Elias que recebe o pão para continuar a sua caminhada ou como o povo de Israel no deserto, alimentado pelo maná. A unidade terrestre dos discípulos de Jesus é imperfeita e sujeita a crises, divisões e recomposições quotidianas. Precisam do pão da eucaristia para receber a graça da reconciliação e da unidade (UR 8). A hospitalidade eucarística seria geralmente impossível pela falta da comunhão eclesial. Verifica-se na hospitalidade eucarística a íntima interpenetração da comunhão eclesial e da comunhão eucarística? Apesar do estado oficial de separação entres as diversas tradições cristãs, o batizado de outra igreja que participa da liturgia eucarística católica sinaliza a busca da comunhão eclesial e da comunhão eucarística. Lado a lado com os irmãos católicos, o visitante ora com eles, canta com eles, adora o mesmo Pai pelo o mesmo Cristo e no único Espírito e doa a paz aos irmãos e irmãs.
Ao se aproximar da mesa eucarística sinaliza a meta final escatológica e suplica a graça da unidade. É o que os peregrinos da unidade esperam poder continuar fazendo até o dia da festa da reconciliação plena. Existem condições para a participação na comunhão eucarística e devem ser respeitadas por todos os cristãos: reconhecer o Corpo de Cristo, o mistério do corpo entregue e do sangue derramado por nós e por todos, e comer dignamente, declarando na fé e no amor a adesão a “um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos” (Ef.4,5-6).
Qual é o papel dos ministros nessa situação? Há quem admita a comunhão, quem a negue terminantemente e quem fique perplexo ou aflito. O papel do ministro, segundo a Sacramentum Caritatis, não é de se colocar no lugar do batizado que se aproxima da eucaristia, mas é o de esclarecer as condições de acesso ao sacramento ou de não celebrar se não consegue dar os esclarecimentos necessários. Mas ao ministro não é demandada a faculdade de negar a eucaristia, pois ninguém tem o direito de substituir a consciência de outra pessoa, batizada e feita membro do Corpo de Cristo. Os ministros não são donos da Eucaristia, mas servos. Eles anunciam e servem o Corpo de Cristo aos convivas e não o podem recusar a quem livremente o pede. Há discussões, distinções, posicionamentos teológicos e normas e há circunstâncias também.
Cada qual, de fato, come em sua própria casa e somente visita os amigos de vez em quanto, particularmente em circunstâncias especiais. Nesses casos os amigos acolhem os amigos, os irmãos no Senhor se recebem com carinho e com festa. Há, portanto, um caminho aberto para pastores e fiéis que, em harmonia e cooperação, podem seguir, na liberdade para a qual Cristo nos libertou, até a meta da plena unidade na diversidade, quando, num domingo, um católico perdido pelas ruas de Trondheim na Noruega pode participar da eucaristia e comungar numa comunidade luterana, ou um anglicano em visita à cidade de Roma, no dia da Páscoa, comungar feliz na basílica de São Pedro, como se estivesse em sua própria comunidade.
IHU On-Line – Como pode ser entendida a recente Constituição Apostólica Anglicanorum coetibus de novembro de 2009 em relação à Apostolicae Curae (1896), que não reconhece a validade das ordenações na Comunhão Anglicana?
Gabriele Cipriani – A Constituição Apostólica Anglicanorum Coetibus reafirma de fato e sem discussão a não validade das ordenações anglicanas. As expectativas de um reexame dos argumentos da Apostolicae Curae não são tomadas em consideração. Bispos e padres ex-anglicanos devem ser ordenados na Igreja Católica. As Normas Complementares rezam formalmente: “Um Bispo ex-anglicano e casado é elegível para ser nomeado Ordinário. Neste caso é ordenado presbítero na Igreja Católica e exerce no Ordinariato o ministério pastoral e sacramental com plena autoridade jurisdicional” (Art.11, &1).
IHU On-Line – Quais as consequências disso para a discussão sobre ordenação/não ordenação de homens casados na Igreja Católica?
Gabriele Cipriani – Quanto a mudanças na disciplina da Igreja Católica que hoje limita o acesso ao ministério presbiteral somente a homens celibatários, a Anglicanorum Coetibus não oferece nenhuma novidade. O fato de o Ordinariato anglicano ter padres casados não constitui uma novidade. O cuidado de evitar interpretações de uma flexibilização da disciplina católica é muito grande no documento. O Ordinário, em plena observância da disciplina sobre o celibato clerical na Igreja latina, pro regula admitirá à ordem do presbiterado só homens celibatários.
Para a admissão de homens casados o Ordinário pode dirigir, caso por caso, petição ao Romano Pontífice, em derrogação a essa norma. Mas aqueles que foram ordenados na Igreja Católica, e em seguida aderiram à Comunhão Anglicana, não poderão se valer dessa derrogação. Eles não serão admitidos ao exercício do ministério sagrado no Ordinariato. Também os fiéis leigos e leigas que foram batizados no passado como católicos fora do Ordinariato, não podem simplesmente ser admitidos como membros, a não ser que sejam integrantes de uma família anglicana pertencente ao Ordinariato. Não há, portanto, nenhuma perspectiva de mudança na disciplina católica por causa da instituição do Ordinariato Anglicano e nem homens casados podem aceder ao ministério sacerdotal e muito menos as mulheres, apesar de que já adquiriram direito de acesso aos ministérios sagrados na Comunhão Anglicana.
IHU On-Line – Quais as implicações práticas da Constituição Apostólica Anglicanorum coetibus para o diálogo entre Igreja Romana e Igreja Anglicana e com outras igrejas cristãs?
Gabriele Cipriani – O direito de mudar de Igreja ou de religião é reconhecido como ato inerente à liberdade de consciência de cada pessoa. Nesse sentido há de se respeitar a passagem de qualquer pessoa de outra igreja para a Igreja Católica e vice-versa. A novidade introduzida pela Anglicanorum Coetibus é a transferência de grupos ou comunidades inteiras para a Igreja Católica, sendo recebidas na plena comunhão católica não individualmente, mas corporativamente. A instituição de um Ordinariato Anglicano pode ser visto por parte católica como algo parecido aos ordianariatos militares. Mas olhado pelo prisma de outras comunidades cristãs o Ordinariato Anglicano faz lembrar a instituição das igrejas uniatas tão adversadas pelos ortodoxos. Elas mantêm sua constituição e espiritualidade ortodoxa, as particularidades do direito canônico, a possibilidade de matrimônio para o clero, os ritos e liturgia próprios, mas sempre reconhecendo o primado do papa.
No caso do Ordinariato Anglicano sua catolicização é ainda maior. Os candidatos às Ordens Sagradas num Ordinariato serão formados juntamente com os seminaristas católicos, sobretudo nos âmbitos doutrinal e pastoral. A formação do clero do Ordinariato deve alcançar os objetivos de uma formação com os seminaristas diocesanos e a plena harmonia com a tradição católica. Enfim, o catecismo da Igreja Católica deve constituir a expressão autêntica da fé católica professada pelos membros do Ordinariato. Houve perplexidade, incertezas e dúvidas tanto no âmbito católico como na Comunhão Anglicana sobre o que há de genuíno, do ponto de vista ecumênico, nessa fórmula de adesão e de acolhida corporativa na Igreja Católica de grupos de anglicanos, pastores e fiéis. Teve-se a impressão de um convite aos anglicanos para que voltem em massa para a Igreja Católica. Mas as relações ecumênicas não foram rompidas e o diálogo teológico entre a Igreja Católica e a Comunhão Anglicana e com outras igrejas cristãs continua. Cresce, porém, cada vez mais, a percepção de que a ação ecumênica católica tende à meta de uma unidade cristã moldada pela Igreja Católica e adequada à sua estrutura.
IHU On-Line – O senhor poderia comentar a matéria A caminhada ecumênica é uma estrada difícil e pedregosa, divulgada nas notícias IHU On-Line do dia 18/2/2011, sobre cancelamento do empréstimo da catedral de Santa Maria-RS para sagração do bispo eleito da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, cônego Francisco de Assis Silva?
Gabriele Cipriani – O fato ocorrido em Santa Maria é grave e fere profundamente os princípios e as normas da Igreja Católica sobre ecumenismo. É um fato lamentável, que não deveria ter acontecido e que o Bispo diocesano e outras autoridades da Igreja Católica deveriam ter evitado. As autoridades da Igreja Católica, ainda que pressionadas por grupos de fanáticos, tinham a obrigação não somente de instruir, ensinar, falar com autoridade e dar o exemplo de como os católicos devem agir em circunstâncias como aquela que se apresentou, mas não podiam recusar a hospitalidade na catedral católica de Santa Maria para a sagração do bispo eleito da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, cônego Francisco de Assis Silva. Nesse sentido a abertura inicial de dom Hélio estava certa. Estava amparado pela tradição e pelas normas da Igreja Católica.
Não somente há antecedentes, no mundo inteiro, de hospitalidade para celebrações comuns ou de uma única tradição cristã, mas há também antecedentes no Brasil. Na catedral de Santa Maria-RS – como bem lembra o cônego José de Deus Luongo da Silveira na matéria dirigida ao IHU – D. Ivo Lorscheiter, de feliz e abençoada memória, acolheu os irmãos e irmãs anglicanos quando da ordenação episcopal do atual bispo anglicano de Curitiba, dom Naudal Gomes. Na catedral de Brasília, o atual arcebispo de Aparecida, Cardeal Dom Raymundo Damasceno Assis, acolheu e saudou calorosamente os bispos anglicanos com seus fiéis e convidados quando da ordenação episcopal de D. Maurício Andrade, atual bispo primaz da Igreja Anglicana do Brasil.
Existem também normas que justificam e incentivam essas atitudes de abertura e acolhida fraterna e festiva. O “Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre ecumenismo” da Igreja Católica prescreve que os fiéis sejam encorajados a partilhar atividades e recursos espirituais que abranjam a oração feita em comum, a partilha do culto litúrgico no sentido estrito, assim como o uso comum de lugares e de todos os objetos litúrgicos necessários para as liturgias. (DE, 102-103). As celebrações comuns podem ser realizadas no templo de uma ou outra comunidade cristã. Mais específico ainda é n. 137 do Diretório sobre a utilização por parte de comunidade cristã não católica de uma Igreja ou de outro edifício destinado ao culto da comunidade católica. O n.138 dispõe sobre a posse e o uso comuns do mesmo lugar de culto por longo tempo, coisa que também no Brasil há anos acontece em vários lugares.
Não havia, portanto, dúvida sobre o que fazer e o que responder aos católicos contrariados. Normas, orientações e tradição ecumênica da Igreja Católica estão a favor da realização da celebração de sagração do novo bispo da diocese anglicana Sul – Ocidental seja realizada na catedral católica. Ceder à pressão de grupos que carecem de espírito e atitudes cristãs mínimos é lamentável.
IHU On-Line – Esse fato que aconteceu em Santa Maria dificulta o diálogo e as relações ecumênicas entre as igrejas Anglicana e Católica?
Gabriele Cipriani – O fato de Santa Maria ficará marcando tristemente a história das relações entre anglicanos e católicos naquela cidade e no Brasil, relações sempre fraternas, mas hoje feridas por esse acontecimento. De fato, apesar de todos os esforços em contrário - telefonemas, cartas, súplicas - a ordenação e sagração episcopal do Rev. cônego Francisco de Assis Silva, bispo eleito da Diocese Anglicana Sul-Ocidental, não será realizada na catedral católica e sim na catedral anglicana do Mediador, em Santa Maria-RS.
Resulta que esse desfecho foi causado por iniciativas de católicos radicais, presentes hoje em Santa Maria-RS e ativos em muitos outros lugares. São como uma tropa de choque organizada para assumir liderança na Igreja Católica e levar a cabo a obra de restauração de um antigo regime eclesial e político considerado, por muitos, definitivamente ultrapassado a partir do Vaticano II. Aquele de Santa Maria, portanto, não é somente um fato lamentável, mas é o sintoma de uma enfermidade crescente no meio católico. Trata-se da inconfessável tentação dos discípulos que discutiam entre si quem seria o maior, sempre insidiando a autenticidade das atitudes evangélicas dos seguidores de Jesus; ou do delírio dos filhos de Zebedeu que pedem o favor dos primeiros lugares; ou da incurável paranoia que leva a invocar o fogo do céu sobre os pobres samaritanos em lugar da generosa misericórdia ensinada e testemunhada pelo mestre Jesus. Há tempo, certa miopia pastoral vem incentivando esses grupos radicais, que hoje, exaltados e sem mais controle, ameaçam fiéis e pastores que não compartilham sua visão limitada da fé e da vida cristã. Não há dúvida de que o ecumenismo dos católicos corre sérios riscos e que a desconfiança dos irmãos não católicos romanos cresce.
A nota inspirada e cheia de sabedoria que as autoridades Anglicanas e Católicas, reunidas na cidade de Santa Maria emitiram com a finalidade de sanar as iniciativas de divisão ali ocorridas, alivia o nosso espírito e conforta muitos cristãos e cristãs em sua busca da unidade da Igreja de Jesus Cristo.
Nela reafirma-se o compromisso ecumênico das comunidades católicas e anglicanas e a irreversibilidade da caminhada ecumênica iniciada já há décadas entre as igrejas cristãs, como expressão da vontade de Deus. O primaz anglicano e o bispo anglicano eleito Rev. Francisco de Assis Silva, o bispo católico e demais autoridades diversamente envolvidas nesse acontecimento dirigem um forte apelo a buscar a superação das divergências, a escolher o caminho do diálogo, da cooperação, da partilha, no respeito mútuo e no amor fraterno.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Gabriele Cipriani – “Quanto caminho ainda nos resta?”, perguntava João Paulo II. Com certeza um longo caminho. A irreversibilidade do compromisso ecumênico da Igreja Católica, afirmado solenemente por João Paulo II na encíclica Ut unum sint, não pode ser apenas uma declaração de princípio, precisa uma incisiva e iluminada ação pastoral para que esse compromisso se torne realmente irreversível.
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Igreja Católica e os princípios do ecumenismo. Uma caminhada difícil. Entrevista especial com Gabriele Cipriani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU