24 Março 2009
Finalmente, o caso de Raposa Serra do Sol foi votado pelo supremo Tribunal Federal (STF). O povo indígena que vive naquelas terras sai vitorioso e esperançoso, uma vez que os invasores deverão sair imediatamente daquela área. No entanto, 19 condicionantes foram impostos pelos ministros do STF. Muitos deles já estavam previstos na Constituição Federal de 1988, e servem apenas para assegurar direitos e deveres de quem vive em Raposa Serra do Sol. Mas três condições estão gerando discussões e manifestações não apenas do povo daquela terra, mas de vários povos indígenas do Brasil. A principal condição imposta diz: “É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”.
Saulo Feitosa, vice-presidente do CIMI, em entrevista, realizada por telefone, à IHU On-Line, afirma que “isso, para nós, é um problema sério, porque há muita terra que foi demarcada antes de 1988. Em geral, as terras marcadas antes desse ano não obedeciam ao critério 231 estabelecido pela Constituição, que se refere às terras de ocupação tradicional. Então, em decorrência disso, temos povos indígenas que ocupam espaços pequenos”.
Saulo Feitosa é graduado em Filosofia e História, com especialização em Bioética. Atualmente, ocupa o cargo de Vice-presidente do Cimi. Desde 1980, vem trabalhando junto aos povos indígenas, acompanhando suas lutas pela recuperação étnica, territorial e cultural.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que representa, para a luta indígena, o resultado da votação sobre as terras de Raposa Serra do Sol que o STF realizou na semana passada?
Saulo Feitosa – Para os povos indígenas de Raposa Serra do Sol significa a consolidação dos direitos originais sobre as terras que ocupam. Eles têm, depois de 34 anos, o coroamento de uma longa luta. Esse coroamento contou com o apoio solidário de outros povos indígenas, de entidades nacionais e internacionais. Então, os povos indígenas que estão em Raposa Serra do Sol têm muito o que comemorar.
Para os demais povos indígenas do Brasil e para nós, entidades de apoio, é motivo de comemoração, mas de bastante apreensão e preocupação, porque entendemos que o julgamento sobre Raposa Serra do Sol deveria ter se limitado a julgar a questão da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Mas o STF resolveu extrapolar o pedido feito pelos autores de ação popular para tratar demarcação de terras indígenas no Brasil todo e passou a decidir sobre as futuras demarcações. Isso cria um problema e agora precisamos trabalhar para superar esse problema criado pelo STF.
IHU On-Line – Quais são os próximos passos para a retirada dos arrozeiros e domínio completo dos povos indígenas a partir de agora?
Saulo Feitosa – Como a decisão do STF foi unânime em relação ao fato de que a retirada dos não-índios tem de se dar imediatamente, eu espero que assim aconteça e que a paz volte a reinar naquela região. O governo federal já exercitou o seu limite de tolerância quando, depois da homologação, estipulou um prazo para que os não-índios fossem retirados. Quando o prazo venceu, eles se recusaram a sair e demandaram essa discussão judicial, que resultou numa decisão do ministro Ayres Britos para a suspensão da retirada dessas pessoas. Agora, finalmente, com a conclusão do mérito da ação, os não-índios precisam sair imediatamente. Não há mais nada que justifique a permanência na área.
IHU On-Line – A decisão pode afetar outras questões pendentes para os povos indígenas?
Saulo Feitosa – Sim. A decisão, como está posta, pode sim. Entendemos que o STF foi além do pedido e passou a definir que as terras que já foram demarcadas não podem ser mais revisadas nem discutidas. Isso, para nós, é um problema sério, porque há muita terra que foi demarcada antes de 1988. Em geral, as terras marcadas antes desse ano não obedeciam ao critério 231 estabelecido pela Constituição, que se refere àquelas de ocupação tradicional. Então, em decorrência disso, temos povos indígenas que ocupam espaços muito pequenos, como o povo Sucuru de Pernambuco, que ocupa apenas seis hectares, quando a terra deles deveria ser de 27 hectares. No país afora, há muitas demarcações que precisam ser revisadas. Se o STF decide que não podem ser revistas as terras demarcadas de forma errada, significa que temos um grave problema e consequências sérias para as populações que estão vivendo confinadas, como, por exemplo, o povo Guarani-Kaiowá, que vive no Mato Grosso do Sul.
IHU On-Line – Como o senhor vê essa participação que estados e municípios terão sobre a decisão em relação à demarcação de terras indígenas?
Saulo Feitosa – Em tese, já era segurada às unidades federativas a participação no processo demarcatório. O decreto 1775/96 foi editado justamente com a argumentação de que garantiria este fato, ou seja, garantia um período de contestação. Estados e municípios que querem discutir a demarcação de terras, tão logo seja publicado isso nos diários oficiais, têm um prazo para se manifestar. Essa inovação que o STF traz no julgamento de Raposa Serra do Sol, para nós, é bastante complicada. Isso porque uma coisa é o Estado e os municípios discutirem a demarcação depois que o grupo técnico apresentarem o relatório, e outra coisa é você querer inserir funcionários dos governos estaduais e municipais dentro do grupo técnico. Isso significa tumultuar o processo, porque, em geral, essas unidades da federação criticam contra as terras indígenas. Então, se há essa disputa já dentro do grupo de trabalho, tal caminho inviabiliza a demarcação. Você terá aí um conflito para dentro do grupo de trabalho, o que pode tornar não mais possível os processos demarcatórios. Isso não tem cabimento, porque os grupos de trabalho devem ser formados por técnicos indicados pela Funai. Isso tumultuaria o processo.
IHU On-Line – E qual sua opinião sobre as 19 condições dadas durante o processo?
Saulo Feitosa – Muitas daquelas condições apenas repetem o texto constitucional e não trazem novidades, mas algumas são bastante preocupantes, como, por exemplo, a questão 17. Ela torna impossível, como falei antes, a revisão das demarcações erradas feitas antes de 1988. Essa condicionante é muito complicada. A condicionante 19, que coloca a questão dos estados e municípios, como também falamos antes, é complicada também. Além destas, há uma condicionante que limita a autonomia dos índios em seu território, submetendo a vontade e a circulação dos índios dentro de suas terras quando há uma gestão do Instituto Chico Mendes. Isso significa usurpar a autonomia dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais, o que não tem cabimento, pois afeta a convenção 169 da OIT [1]. Eu diria que esses são as três condicionantes que mais nos preocupam.
IHU On-Line – Mas e de que forma essas decisões influenciam o cotidiano dos povos indígenas que vivem em Raposa Serra do Sol?
Saulo Feitosa – Primeiramente, influenciam na restrição de direitos dos povos indígenas e desrespeita os seus usos e tradições. Eles podem ser impedidos ou serem controlados no seu ambiente de integração. Isso é uma limitação dos direitos, da sua autonomia, de praticar seus rituais. Outra questão que terá um efeito imediato está relacionada à execução de programas governamentais dentro das terras indígenas. Mais uma limitação: quando se trata das operações das Forças Armadas e da Polícia Federal. Como está posto no voto de vários ministros do STF, as Forças Armadas e a Polícia Federal teriam total autonomia para circular em terras indígenas sem autorização prévia, o que pode causar apreensões. Isso complica, pois são áreas que já vivem permanentemente em tensão.
IHU On-Line – Qual é o novo foco agora de tensão entre índios e fazendeiros?
Saulo Feitosa – Infelizmente, há muitos focos, não apenas um. Hoje, temos tensões permanentes no Mato Grosso do Sul, no Mato Grosso, no sul da Bahia, em Santa Catarina. Em vários pontos do Brasil existem focos de tensão evidenciada. Com essa decisão do governo, a partir das repercussões da mídia, já percebemos a repercussão dos indígenas e dos invasores de terras indígenas. O resultado sobre Raposa Serra do Sol está sendo usado pelos inimigos dos povos indígenas para tencionar ainda mais algumas situações.
IHU On-Line – Como os índios estão nesse momento? Qual a expectativa deles após a sessão da semana passada, no STF?
Saulo Feitosa – Neste último final de semana, foi realizada, aqui em Brasília, a Assembleia dos povos indígenas do Brasil. No primeiro dia, foi realizada uma análise de conjuntura onde os indígenas externar muitas preocupação. Eles acham que agora devem discutir mais com suas comunidades e estão descobrindo formas de reagir a essa situação, para garantir seus direitos constitucionais. Eu diria que os índios estão contentes com a decisão sobre Raposa Serra do Sol, mas preocupados com as condicionantes impostas pelo STF.
Notas:
[1] A Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovada em 1989, durante sua 76ª Conferência, é o instrumento internacional vinculante mais antigo que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais no mundo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Raposa Serra do Sol. Uma vitória dos povos indígenas. Entrevista especial com Saulo Feitosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU