2º domingo da quaresma – Ano C – Subsídio exegético

11 Março 2022


Subsídio elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana - ESTEF:

 

Dr. Bruno Glaab
Me. Carlos Rodrigo Dutra
Dr. Humberto Maiztegui
Me. Rita de Cácia Ló
Edição: Prof. Dr. Vanildo Luiz Zugno

 

Leituras do dia

 

Primeira Leitura: Gn 15,5-12.17-18
Salmo: 26,1.7-8.9abc.13-14
Segunda Leitura: Fl 3, 17-4,1
Evangelho: Lc 9, 28b-36

 

O Evangelho

 

O evangelho de hoje (Lc 9, 28b-36) começa afirmando que Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago. A escolha de três discípulos para que presenciem um evento importante deve ser interpretada à luz da norma legal formulada em Dt 19,15: Uma só testemunha não basta... só é válida quando for feita por duas ou três testemunhas. Em outras palavras, os discípulos foram escolhidos para que seu testemunho fosse válido, conforme o requerido pela Torá. Nos evangelhos sinóticos, estes três são os protótipos dos discípulos, não apenas do grupo dos doze, mas também de todos os tempos.

 

Lucas é o único evangelista que dá grande destaque à oração de Jesus. Antes e depois de algo importante, Jesus reza: enquanto cura (5,16), antes de escolher os doze apóstolos (6,12) e antes de ensinar seus discípulos a rezar (11,1-2). Não é de estranhar que Lucas seja o único evangelista a dizer que Jesus se transfigura durante sua oração. A oração de Jesus é símbolo de comunhão: o poder de Jesus para operar milagres procede do Pai.

 

Dois detalhes diferenciam o relato de Lucas daquele de Marcos. Em primeiro lugar, como já vimos, Lucas enfatiza que a mudança ocorre enquanto Jesus estava rezando; Marcos dá ênfase à roupa (Mc 9,3), enquanto Lucas destaca a mudança no rosto de Jesus: “A aparência do seu rosto ficou diferente, e sua vestimenta, branca fulgurante” (v. 29). Deste modo, Lucas faz uma antecipação das aparições do Ressuscitado.

 

Como nos demais sinóticos, os dois homens que aparecem conversando com Jesus são identificados como Moisés e Elias. Moisés foi o grande mediador entre Deus e seu povo. Segundo a tradição bíblica, sem Moisés, o povo de Israel e sua religião não teriam existido. Elias, por sua vez, foi o profeta que salvou essa religião em seu maior momento de crise. Sem Elias, toda a obra de Moisés teria caído por terra. O encontro dos três revela que Jesus dá continuidade ao projeto de liberdade, fraternidade e justiça iniciado por Moisés e atualizado por Elias e pelos demais profetas.

 

Outro detalhe exclusivo de Lucas é o assunto da conversa entre os três homens: “Falavam do êxodo de Jesus, que estava para consumar-se em Jerusalém”. Várias edições da Bíblia traduzem a palavra grega êxodos por “morte”. Esta, no entanto, é uma tradução (e interpretação) errônea. Na verdade, este “êxodo” é a passagem de Jesus deste mundo para o Pai, isto é, a ascensão. Isso condiz plenamente com o conjunto do Evangelho de Lucas, o único a narrar a subida de Jesus aos céus, relato repetido e ligeiramente modificado no início dos Atos dos Apóstolos (At 1,9-11). O termo “êxodo”, no AT, é ligado diretamente a Moisés, que conduziu Israel para a liberdade e para a Terra Prometida. Por outro lado, também Elias fez seu êxodo pessoal e foi levado aos céus, conforme o espetaculoso relato de 2Reis 2. Por todas essas ligações com o AT, Lucas serve-se da palavra “êxodo” para definir a missão de Jesus junto ao seu povo.

 

Em Lucas, somente quando Moisés e Elias vão se afastando é que Pedro intervém e chama Jesus de epístatēs. Esta palavra, exclusiva de Lucas em todo o NT, equivale a “chefe, superior” e, portanto, acentua o sentimento de respeito e admiração. No Terceiro Evangelho, ela aparece sempre nos lábios dos discípulos (5,5;8,24.45;9,33.49) ou de suplicantes (17,13). Mesmo tratando Jesus com tanta deferência, tal como nas versões de Marcos e Mateus, Pedro não sabe o que diz: ele só pensa em eternizar aquela situação de algum modo celestial.

 

“Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. A proposta de colaboração de Pedro coloca Jesus e seu projeto messiânico na linha dos projetos de libertação do AT: sob Moisés, a libertação de Israel veio com a morte dos inimigos; Elias, literalmente, ardia de zelo reformador e violento. Pedro vê na manifestação uma oportunidade de colocar a missão de Jesus a serviço de ideais de violência e poder na restauração de Israel. Nesta perspectiva, compreende-se mais profundamente por que Lucas afirma que Pedro falava assim “sem saber o que dizia”.

 

Dá-se então a teofania: “formou-se uma nuvem e os envolvia; então temeram ao entrarem na nuvem”. Deus se manifesta na nuvem e nas palavras. A nuvem é símbolo da presença divina (Ex 40,34-38). As palavras de Deus recordam as do batismo: “Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo” (Lc 3,22). Agora as palavras não se dirigem a Jesus, mas aos três discípulos: “Este é o meu Filho escolhido. Ouvi‑o”. Lucas muda “amado” para “escolhido”, e acrescenta: “Ouvi‑o!”

 

A ordem dada pelo Pai está diretamente relacionada às palavras anteriores de Jesus, sobre seu próprio destino (Lc 9,22) e sobre o seguimento e a cruz de seus discípulos (Lc 9,23-27). Ou seja, o episódio da transfiguração não é contado para falar de um Jesus esbanjando raios de luz, mas para motivar os discípulos ao seguimento: “Se alguém quiser me seguir, tome a sua cruz dia após dia e siga-me” (Lc 9,23). Assim como acontece com Jesus, o destino da comunidade fiel não é o fracasso, mas a glória. A voz de Deus que continua ecoando do céu ensina-nos que seguir Jesus não é loucura, mas a atitude mais coerente com o Plano de Deus.

 

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