27 Novembro 2018
“Gostaria de ser um bálsamo para muitas feridas”. Com estas palavras, termina o Diário que Etty Hillesum escreveu, a jovem judia holandesa que no dia 07 de setembro de 1943 foi deportada para Auschwitz, onde morreu, de acordo com um relatório da Cruz Vermelha, no dia 30 de novembro de 1943, há 75 anos. Bento XVI, recordando a todos que “a graça de Deus está trabalhando e opera maravilhas na vida de muitas pessoas”, disse sobre ela: “inicialmente distante de Deus [...], em sua vida dispersa e inquieta Etty Hillesum O encontrou precisamente em meio a essa grande tragédia do século XX, a Shoah. Transfigurada pela fé, transforma-se em uma mulher cheia de amor e paz interior, capaz de afirmar: ‘Vivo constantemente na intimidade com Deus’”.
A reportagem é de Cristina Ugoccioni, publicada por Vatican Insider, 26-11-2018. A tradução é de André Langer.
Etty Hillesum (Foto: Vatican Insider)
Ainda não tão conhecida como deveria, o “Diário” permite descobrir uma semente que, junto com muitas outras, foi plantada no ventre ensanguentado da história do século XX. Uma boa semente, que pode acompanhar e sustentar especialmente os homens e as mulheres do nosso tempo.
Etty Hillesum nasceu em Middelburg, na Holanda, em 1914, numa família de judeus não praticantes. Mudou-se para Amsterdã, licenciou-se em Jurisprudência e começou a estudar línguas eslavas e a dar aulas de russo (a língua de sua mãe). Ela era uma jovem culta, animada e curiosa. E muito inquieta. Dotada de uma grande capacidade de introspecção, no início do Diário (em 1941) fez uma descrição de si mesma com estas palavras: “Quero algo e não sei o quê. Mais uma vez me sinto presa a grande ansiedade e desejo de busca; tudo está em tensão dentro da minha cabeça [...] No fundo de mim mesma, sou como uma prisioneira de um novelo de fios e com absoluta clareza nos pensamentos. Às vezes não sou mais que um pobre diabo com medo. [...] Às vezes me sinto como uma lata de lixo; sou tão turva, cheia de vaidade, de irresolução, de sentimento de inferioridade. Mas em mim também há honestidade e um desejo apaixonado, quase elementar de clareza e harmonia entre o exterior e o interior”.
Determinada a ordenar o seu caos interior, Etty dirigiu-se a um aluno de Jung (Julius Spier), judeu, fundador da psicoquirologia (ciência que estuda as pessoas analisando as mãos), com quem viveu depois um relacionamento sentimental. Após a morte de Spier, a quem ela chamava de “obstetra da sua alma”, dedicou-lhe estas palavras: “Você me ensinou a pronunciar com propriedade o nome de Deus. Você tem sido o intermediário entre Deus e eu [...] Agora eu serei o intermediário para todos aqueles a quem eu possa chegar”.
A límpida gratidão para com Spier, expressada em muitas passagens do seu Diário, contrasta com a pressão cultural atual para “criar-se sem laços ou dívidas com ninguém”, e convida para honrar e agradecer a todos aqueles que, de qualquer geração, ensinam a “pronunciar o nome de Deus”, entregando desta maneira um tesouro que cada um, por sua vez, tem a responsabilidade de levar aos outros.
A guerra recrudescia e as condições de vida estavam ficando cada vez piores para os judeus holandeses. As páginas do Diário oferecem o percurso interior de Etty, a maneira como se dirige a Deus e a confiança com que se abandona a Ele: “Meu Deus, toma-me pela mão, vou segui-lo como uma boa menina, não vou opor muita resistência. Não me afastarei de nenhuma das coisas que me acontecerem nesta vida, tentarei aceitar tudo da melhor maneira. Gosto do aconchego e da segurança, mas não vou me rebelar se for a minha vez de estar no frio, enquanto segurar a minha mão, eu vou a qualquer lugar e tentarei não ter medo. E onde quer que eu esteja, procurarei irradiar um pouco desse amor, desse amor verdadeiro pelos homens que eu carrego dentro de mim [...] Uma vez que se começa a caminhar com Deus, simplesmente se continua a caminhar e a vida se transforma em um único e longo passeio”.
A oração, para Etty (leitora atenta da Bíblia), não era um dobrar-se narcísico sobre si mesma, nem a busca de uma relação tranquilizadora com Deus, na qual se mergulha ignorando os outros. Sob este aspecto, sua experiência ajudava a identificar a distorção em que hoje pode cair a oração: em nossa época, minada por um enorme narcisismo, a oração está exposta ao risco de se tornar uma técnica de auto-tranquilizamento psicológico, uma prática para chegar ao bem-estar, para “estar bem consigo mesmo” (que se tornou quase um imperativo das sociedades ocidentais).
Rezar, para Etty, significava envolver-se na dinâmica do ágape com Deus por todos os Seus filhos: “Devemos abandonar nossas preocupações para pensar nos outros que amamos. Quero dizer isto: devemos estar à disposição de quem encontrarmos em nossos caminhos, e de quem tiver necessidade, disponibilizar toda a força, amor e confiança em Deus que temos em nós mesmos e que ultimamente estão crescendo maravilhosamente em mim. Ou uma coisa ou outra: ou se pensa apenas em si mesmo e na própria conservação, sem hesitação, ou se toma distância de todos os desejos pessoais e se rende. Para mim, esta rendição não se baseia na resignação, que é uma morte, mas se dirige para onde Deus, por aventura, me envia para ajudar como posso”.
Enquanto isso, a repressão contra os judeus holandeses havia aumentado muito: os nazistas começaram a levá-los ao campo de extermínio de Westerbork, a última etapa antes de Auschwitz. Em julho de 1942, Etty começou a trabalhar em uma seção do Conselho Hebraico, uma organização que fazia a mediação entre os nazistas e os judeus. Logo depois, pediu para ser transferida para Westerbork, para assistir aos funerais em trânsito. Algumas vezes voltou para Amsterdã devido a problemas de saúde.
Nela, a consciência do destino que aguardava seu povo era muito clara: “Bem, eu aceito essa nova certeza: eles querem a nossa aniquilação total. Eu não vou mais aborrecer com meus medos, não serei amarga se outros não compreendem o que está em jogo para nós judeus. Continuo trabalhando com a mesma convicção e acho a vida igualmente rica em significado”. As páginas do Diário celebram constantemente a vida: “De minuto a minuto, desejos, necessidades, vínculos se separam de mim. Estou pronta para tudo, me mande Deus para o lugar que mandar. Estou pronta para qualquer situação e, na morte, para testemunhar que esta vida é bela”.
Em julho de 1943, os nazistas determinaram que metade dos membros do Conselho Hebraico presentes no campo retornaria a Amsterdã, ao passo que a outra metade teve que ficar. Etty, que poderia ter tentado se salvar se escondendo, preferiu ficar. Ela queria cuidar dessa humanidade ferida e assustada: “Quão grandes são as necessidades de suas criaturas terrestres, Deus meu. Agradeço-lhe porque permite que tantas pessoas venham a mim com suas tristezas: falam tranquilas e sem suspeitas e, de repente, saem todas as suas tristezas e se descobre uma pobre criatura desesperada que não sabe como viver. Então, começam os meus problemas. Não basta pregá-lo, Deus meu, não basta desenterrá-lo dos corações dos outros. É preciso abrir-lhe o caminho, Deus meu, e para fazer isso é preciso ser um grande conhecedor do espírito humano. Meus instrumentos para isso são limitados. Mas já existem, até certo ponto: vou melhorá-los pouco a pouco, com muita paciência”.
Em uma época como a nossa, na qual se espalham como um vírus maléfico tons de desafio e palavras de ódio, Etty encoraja e anima essa imensa multidão de homens e mulheres que, ainda hoje, vive com alegria e não sem muitos sacrifícios, semeando as obras cotidianas do ágape: essas infinitas formas de proteção, de cuidado, de dedicação que mantêm o mundo em pé e que são encantos diários: messianicamente invisíveis, existencialmente decisivos.
Etty fez a seguinte anotação: “A ausência de ódio não significa, por si só, a ausência de um desdém moral elementar. Eu sei que quem odeia tem boas razões para isso. Mas por que devemos sempre escolher o caminho mais barato? Lá [em Westerbork] eu pude tocar com a mão como cada átomo de ódio que se soma ao mundo torna-o mais inóspito. E creio que, talvez ingênua, mas teimosamente, esta terra poderia ser um pouco mais habitável, graças ao amor sobre o qual o judeu Paulo escreveu aos habitantes de Corinto”.
Demonstrando a convicção de que a humanidade forma uma cadeia cujos elos foram soldados uns aos outros, Etty pensava em todos aqueles que teriam vindo ao mundo depois dela: “Eu tenho o dever de viver da melhor maneira possível e com a máxima convicção até o último suspiro. Então, meu sucessor não terá que recomeçar do começo e com tanto esforço”. Todos os seres humanos nascem “em dívida” com os outros e estão destinados a viver “para” os outros: no Diário de Etty essa verdade humana resplandece.
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Etty Hillesum, a jovem que encontrou Deus durante a Shoah - Instituto Humanitas Unisinos - IHU