20 Outubro 2017
Os entusiastas da engenharia genética têm como principal argumento para defender suas pesquisas a afirmação de que ela pode salvar vidas. Em parte, também é desse argumento que surgem algumas discussões e implicações éticas acerca dos usos, especialmente em humanos, da manipulação de genes. Em defesa da vida, podemos criar órgãos, por exemplo? Ou, ainda, modificar a estrutura genética de um ser para que não desenvolva uma síndrome, doenças ou até prolongar sua vida? Victor Penchaszadeh, médico especializado em pediatria, saúde pública e bioética, reconhece o potencial da engenharia genética. Entretanto, seja para desenvolver projetos ou mesmo para pautar debates no campo da bioética, destaca que não se pode dar superpoderes para a genética. “Não devemos reduzir a complexidade humana a genes”, afirma.
Penchaszadeh encerrou o IX Colóquio Internacional IHU. A Biopolítica como teorema da Bioética, realizado nos dias 17 e 18 de outubro, no campus São Leopoldo, com a conferência Ética e Genética. No encontro, ele destacou que conhecer o genoma foi um grande avanço da ciência, mas o sequenciamento genético não é capaz de dar todas as respostas que se espera. Ou seja, as respostas não são objetivas. Isso porque há infindáveis combinações de genes que podem se articular de várias formas. Fazer um mapeamento genético humano e aprofundar os conhecimentos sobre ele é uma coisa. Outra é acreditar que por se conhecer aquele mapeamento será possível obter qualquer resposta. “Há um exagero em achar que a genética poderá determinar tudo. Toda a característica humana, seja cor dos olhos, tipo de cabelo, estrutura corporal se dá pela combinação de inúmeros fatores e não apenas da associação de um ou outro gene”, explica.
Victor Penchaszadeh e, ao fundo, uma das avós argentinas que encontrou o neto graças à genética (Foto: João Vitor Santos/IHU)
O professor propõe essa reflexão para que se perceba que com relação a doenças pode ocorrer o mesmo. Apesar de conhecer todo o mapa genético de uma pessoa, não se pode afirmar com 100% de certeza que ela desenvolverá câncer, por exemplo. O mesmo vale para o tratamento. Não é porque uma determinada pessoa respondeu bem a um determinado tratamento que significa que todos com certo grau de parentesco que desenvolverem a doença poderão ser tratados da mesma forma. “Nessa discussão, precisamos combater as aberrações sobre o uso da genética. O reducionismo e o determinismo genético são perspectivas que precisam ser mudadas”, avalia.
O professor Penchaszadeh é enfático na ideia de que o ser humano é mais do que uma combinação de genes. Para ele, os fatores ambientais são tão importantes quando se conhecer em detalhes o genoma humano. Ignorar isso, é crer numa espécie de determinismo genético. “Não é porque a pessoa tem determinado gene que ela vai desenvolver câncer. O que vai determinar o surgimento dessa doença é a combinação com inúmeros fatores ambientais em que essa pessoa está inserida”, explica. “Todas as doenças são 100% genética e também 100% ambientais. Não se pode compreender uma perspectiva, sem considerar a outra”, completa.
Um exemplo clássico que o professor traz é o câncer de mama. Em 2013, a atriz hollywoodiana Angelina Jolie causou grande polêmica ao anunciar publicamente que se submeteu a uma cirurgia de retirada das mamas como forma de reduzir as chances de desenvolver câncer. Jolie tomou essa decisão depois de que descobriu que teria 87% de desenvolver a doença. Médicos teriam baseado suas afirmações a partir de estudos de genes da atriz, que também disse ter muitas mulheres na sua família que tiveram câncer. Segundo com o professor Penchaszadeh, apenas olhar para os genes para fazer tal afirmação é arriscado. “O câncer tem de ser visto de forma muito particular. Há estudos que mostram que nem 5% das mulheres com predisposição genética desenvolvem a doença”, argumenta.
O professor explica que a resposta ao fato de prever se a mulher terá ou não câncer de mama tem que passar necessariamente também por questões ambientais. E isso está associado tanto ao lugar em que ela vive, como se alimenta, seus hábitos e inúmeros outros fatores. “Prever se vai ou não desenvolver doenças com predisposição genética é muito complicado justamente por envolver questões ambientais. O meio ambiente é extremamente complexo e muda o tempo todo”. Segundo Penchaszadeh, é plenamente aceitáveis que, por exemplo, no caso de duas mulheres com a mesma predisposição genética e inseridas num mesmo meio ambiente, apenas uma desenvolva a doença.
Outra discussão muito acalorada no campo da bioética é sobre as possibilidades de fazer controle genético para se evitar as chamadas anomalias, entre elas doenças mentais. Para o professor Victor Penchaszadeh, muito do que se diz nessas discussões revela a falta de informação sobre o que de fato a engenharia genética é capaz ou não de fazer. “Por exemplo: os genes explicam menos de 5% das doenças mentais. Então, não posso dizer que autismo ou outras doenças podem ser identificadas ou mesmo neutralizadas mexendo num gene”, esclarece.
Além disso se fala na possibilidade de refinamento da espécie, uso da genética para se constituir seres humanos mais inteligentes. “Não existe gene para inteligência. Somente um gene não faz uma pessoa ser o que ela é”, pondera. Essa perspectiva está ainda muito associada aos primeiros experimentos do campo, ainda ligado a ideologias nazistas que acreditavam no refinamento de raças por operações puramente genéticas. E se hoje avançamos e sabemos que não existe raça pura, tão pouco melhor, mais capaz do que outra, por outro lado, ainda há quem credite à genética a possibilidade de fazer uma raça humana melhor. “Reitero que sem os fatores ambientais não se pode discutir isso. Não existe um só gene para a homossexualidade, para inteligência, etc.”.
Segundo Penchaszadeh, o grande desenvolvimento dos conhecimentos acerca da genética estão associados à tecnologia. É a mesma tecnologia que serve para a indústria, por exemplo, do desenvolvimento de medicamentos. Isso pode estar associado a imensa onda de medicalização. O professor toma como exemplo o uso de drogas como a Ritalina em crianças ditas hiperativas. “Antes de receitar o medicamento, o médico deve analisar as questões ambientais, falar com os pais, falar com a criança, estudar o ambiente dessa criança. Só depois de esgotadas essas perspectivas é que deve passar para as questões de medicalização, que ás vezes é necessária. Mas o que se vê é a medicação com primeira ação a um diagnóstico”, analisa, ao lembrar também do sucesso que fazem os antidepressivos no mundo de hoje.
O professor destaca que a genética em si não é boa ou má, mas é preciso que se esteja atento para os usos que se faz dela. O médico reconhece que é graças a genética que se pode detectar a possibilidade de desenvolvimento de cerca de 500 doenças hereditárias, além de trabalhar no desenvolvimento de medicamentos e conhecer a biologia de tumores para tratamentos mais eficazes. “Mas é preciso estar atento para as distorções de prioridades nessas áreas”, alerta. “Por isso digo que as descobertas na genética não podem embasar políticas públicas de saúde coletiva. Há avanços significativos, mas não podemos achar que servem para todos os casos, é preciso evitar essas generalizações que, muitas vezes, defendem alguns interesses, alimentam essa indústria de desenvolvimento de medicamentos”.
O que está como grande questão de fundo na fala de Victor Penchaszadeh é a defesa que faz para que as pessoas tenham o direito a não serem reduzidas a genes e, logo, serem discriminadas por isso. Até que ponto é importante submeter uma criança a um mapeamento genético que indique que ela poderá desenvolver uma doença se muito pouco poderá ser feito até que – e se – a doença se manifestar? Para ele, o importante é desenvolver estudos que possam garantir tratamentos a quem já sofre com essas doenças. “É o direito a saúde e não a discriminação”. Imagine o que pode sofrer uma crianças em que se indique essa predisposição de uma doença que até poderá não se manifestar. E se todas as mulheres com predisposições ao câncer de mama tirarem os seios?
Penchaszadeh tem uma experiência de vida que exemplifica o bom uso da genética para o bem das pessoas. É graças ao mapeamento genético que se pode detectar graus de parentescos. O professor esteve envolvido num grande projeto na Argentina que tentou resgatar e aproximar pessoas que foram vítimas do totalitarismo de estado. Graças a exames genéticos, muitas Avós da Praça de Maio (grupo de mulheres argentinas que tiveram filhos e filhas mortos pelas ditaduras e que perderam contato com seus netos desde então) puderem recontar seus netos e esses netos reconstituir suas histórias. “Possuir uma base de dados genéticos pode ser usado para o mal, mas também pode ser usada para reconstituir vidas, identificar pessoas e ajudar a buscarem reparação pelas violações de Direitos Humanos a que foram submetidos”, finaliza.
Recentemente, na edição 513 da revista IHU On-Line, o médico detalhou essa experiência. Para ele, desenvolver um método que fosse capaz de identificar geneticamente netos e avós é, além de avanço científico, uma vitória política e social. “Significou derrotar o objetivo dos militares de expropriar os filhos dos dissidentes assassinados e proporcionar provas condenatórias nos julgamentos dos militares, que demonstraram que o rapto de crianças foi um plano sistemático concebido a partir dos mais altos escalões do poder, e dos quais foram condenados à prisão perpétua o ex-ditador Videla e vários de seus oficiais”, declara na entrevista.
Penchaszadeh: “Não existe gene para inteligência"
Argentino, médico especializado em pediatria, saúde pública e bioética. Graduou-se em Medicina pela Universidade de Buenos Aires, fez especialização em Bioethics and Medical Humanities, Columbia University, em Nova Iorque e mestrado em Public Health, School of Higiene and Public Health, Johns Hopkins University, Baltimore, Estados Unidos. É, também, professor do Departamento de Ciências da Saúde da Universidad Nacional de La Matanza. É autor do livro Genética y derechos humanos: encuentros y desencuentros (Buenos Aires: Paidós, 2012).
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A complexidade humana não pode ser reduzida a genes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU