01 Setembro 2017
No dia 08 de agosto, o jesuíta austríaco Georg Sporschill entrevistou o cardeal Carlo Maria Martini, acompanhado por Federica Radice, italiana que mora em Viena que, além disso, serviu de tradutora. Eles explicaram que o cardeal estava muito à vontade com a conversa, como um epílogo do divulgado Colóquio em Jerusalém. Martini revisou a entrevista, que seus interlocutores publicariam como “testamento espiritual”. O fato se deu no dia 31 de agosto, quando Martini faleceu. No dia seguinte, a entrevista foi publicada no jornal italiano Corriere della Sera, provocando reações por seu conteúdo e o pretenso caráter de testamento. A cinco anos da sua Páscoa de novo e com alegria o publicamos com uma Memória do bispo italiano, dom Bruno Forte.
Foto: Reflexión y Liberación
A entrevista e a memória são publicadas por Reflexión y Libération, 30-08-2017. A tradução é de André Langer.
Como o senhor vê a situação da Igreja?
A Igreja está cansada na Europa do bem-estar e na América. A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas casas religiosas estão vazias, o aparelho burocrático cresce, os nossos ritos e hábitos são pomposos. (...) O bem-estar pesa.
Sei que não podemos abandonar tudo facilmente. Mas, pelo menos, poderíamos buscar pessoas livres, mais próximas do próximo, como foram o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos nos limitar aos vínculos da instituição.
Quem pode ajudar a Igreja hoje?
Karl Rahner usava de bom grado a imagem das brasas que se escondem sob as cinzas. Como se pode libertar as brasas das cinzas, de modo que se fortaleça a chama do amor? Em primeiro lugar, devemos buscar estas brasas. Onde estão as pessoas cheias de generosidade, que tem fé como o centurião romano ou são entusiastas como João Batista, que empreendem o novo como Paulo ou são fiéis como Maria Madalena? Eu aconselho o Papa e os bispos que busquem 12 pessoas excepcionais para os postos de direção. Pessoas próximas dos mais pobres, rodeadas de jovens, que experimentem coisas novas. (...)
Que instrumentos o senhor aconselha utilizar para combater o cansaço da Igreja?
Três instrumentos muito fortes. O primeiro é a conversão: a Igreja deve reconhecer os próprios erros e fazer um caminho radical de mudança, a começar pelo Papa e pelos bispos. Os escândalos de pedofilia nos levam a tomar um caminho de conversão. As perguntas sobre sexualidade e as questões que implicam o corpo, são um exemplo. São importantes e, às vezes, muito importantes. Devemos nos perguntar se as pessoas ouvem os conselhos da Igreja em matéria sexual; se neste campo é autoridade de referência ou uma caricatura nos meios de comunicação.
O segundo instrumento é a Palavra de Deus. O Concílio Vaticano II devolveu a Bíblia aos católicos. (...) Só quem percebe no seu coração esta Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão na renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é simples e busca como companheiro um coração que a escute (...). Nem o clero nem o direito eclesial podem substituir a interioridade do ser humano. As regras externas, as leis, os dogmas nos foram dados para esclarecer a voz interior e para o discernimento dos espíritos.
Para quem são os sacramentos? Estes são o terceiro instrumento de cura. Os sacramentos não são instrumento para a disciplina, mas de ajuda para as fraquezas da vida. Levamos os sacramentos às pessoas que necessitam de uma força nova? Penso nos divorciados e nos casais em segunda união, nas famílias ampliadas: eles necessitam de proteção social. A Igreja defende a indissolubilidade do matrimônio. É uma graça quando um casamento e uma família conseguem isso (...).
A atitude que temos para com as famílias ampliadas determinará a aproximação da Igreja de geração dos filhos. Uma mulher foi abandonada pelo marido e encontra um novo companheiro que se ocupa dela e de seus três filhos. O segundo amor o consegue. Se esta família é discriminada, não apenas se afasta a mãe, mas também os seus filhos. Se os pais se sentem fora da Igreja, ou não sentem seu apoio, a Igreja perderá a futura geração. (...) Deveríamos fazer de outra maneira a pergunta sobre se os divorciados podem comungar. Como a Igreja pode ajudar com a força dos sacramentos aqueles que têm situações familiares complexas?
O senhor, o que faz?
A Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível que ela não se mexa? Temos medo? Medo em vez de coragem? (...) A fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança e a coragem. Sou velho e estou doente; dependo da ajuda de outros. As pessoas bondosas que me cercam me fazem sentir o amor. Amor mais forte que o sentimento de desconfiança que de vez em quando percebo em relação à Igreja na Europa. Só o amor pode vencer o cansaço. Deus é amor. Eu ainda tenho uma pergunta para você: o que você pode fazer pela Igreja?
A força da liberdade
Eu tive a graça de conhecer o cardeal Martini e compartilhar com ele inúmeras conversas e experiências de fé. O que me deixaram esses anos de amizade, nascida de sua generosidade e confiança? Era 1984, e eu tinha sido convidado para falar à Igreja de Milão, reunida em assembleia. As palavras que o cardeal me disse, no carro, voltando para o arcebispado, me encheram de entusiasmo e serviram de estímulo para avançar no caminho da reflexão teológica, a serviço da Igreja e da comunidade dos seres humanos.
Durante o encontro da Igreja italiana, em Loreto (1985), quando o cardeal Ballestrero, na época presidente da Conferência Episcopal Italiana, e o cardeal Martini, que coordenada o encontro, me convidaram para proferir a palestra de abertura. Houve momentos de tensão e dificuldades que me levaram a uma prolongada conversa com o Senhor, a rezar até muito tarde nessa noite.
Na manhã seguinte, entreguei ao cardeal Martini o fruto das minhas reflexões. Seu comentário me transmitiu uma grande alegria. “Como me alegra a liberdade interior que Deus lhe deu”. Essa é a primeira coisa que acredito ter aprendido com ele: a confirmação de uma opção de fundo que eu sentia fundamental para o meu ser cristão e sacerdote. Ou seja, tentar agradar unicamente a Deus.
Essa liberdade se apresentava tão clara em Martini que muitas vezes a utilizei para conversar com ele, falando-lhe com franqueza, mesmo quando as nossas ideias não estavam de acordo. Sempre me impressionou a humildade da sua escuta e a serenidade com que expunha suas posições, avaliando argumentos.
Sempre atento a assumir as razões do outro, generoso na interpretação mais benévola das posições que diferiam das suas. Homem de verdadeiro diálogo (sem nenhuma exclusão: dos não crentes até os irmãos na fé, do muito amado povo de Israel até o diálogo ecumênico, inter-religioso), promotor de corresponsabilidade e participação com todos, respeitoso da dignidade de cada um, sejam quais fossem as ideias e as opções de vida da pessoa.
Sua escuta do outro nascia da profunda e apaixonada escuta da Palavra de Deus. Este é o outro grande ensinamento que recebi dele. Um amor apaixonado pela Sagrada Escritura, fiel, sempre na busca. Um alimentar-se diante da permanente surpresa de um Deus que fala.
Eu já amava a Palavra, em particular pelo ensinamento do meu pai na fé, o cardeal Corrado Ursi, arcebispo de Nápoles, que me ordenou sacerdote em 1973. Ele me havia educado a me alimentar da Palavra.
Do cardeal Martini eu recebi o estímulo para fazer da Escritura um viático cotidiano e frequentá-lo com os instrumentos disponíveis para entendê-la melhor. Sobretudo com uma lectio que fosse cada vez mais meditação, diálogo com Deus e ação contemplativa. Neste dom, pessoalmente experimentado, percebo a causa mais profunda de sua vida de biblista e pastor. Martini procurou ensinar esta riqueza ao Povo de Deus e falou também à Igreja universal.
Liberdade interior, escuta do outro, escuta de Deus. Três elementos que percebi presentes e fundidos de maneira exemplar nele. Eu procurei aprender esta lição como pude, com os limites da minha pessoa e das minhas capacidades. O Senhor tem sido bom em dar-me preciosas ajudas: entre outras, a inestimável amizade de Martini. Meu agradecimento é imenso e estou convencido de que todo crente consciente e honesto só poderá compartilhá-lo, assim como o compartilhava o muito querido João Paulo II, que quis mencioná-lo explicitamente em suas memórias autobiográficas.
Agora que este grande Padre da Igreja do nosso tempo entrou na luz e na beleza da vida sem fim em Deus, o Senhor saberá recompensá-lo na eternidade.
Ele permanecerá na memória admirada e agradecida de muitas pessoas que não tiveram o dom de crer; ele estará presente na minha oração, como na de muitos crentes. E eu peço que se lembre de mim, da Igreja que tanto amou, para que todos nela – especialmente aqueles que têm responsabilidades frente aos demais – possam agir sempre e somente ad majoram Dei gloriam, como dissera Santo Inácio, mestre e pai do jesuíta Martini. Para que possamos agir para a maior glória de Deus, que é o ser humano vivo, no tempo e no dia sem fim da eternidade, em cuja luz agora vive Carlo, mestre de vida e de fé.
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Carlo Maria Martini. Reflexões proféticas de um cardeal sábio e bom - Instituto Humanitas Unisinos - IHU