13 Junho 2017
Em geral, o Papa Francisco é visto como uma pessoa amorosa de diálogo e paz. No entanto, por baixo desta superfície ainda bate o coração de um clássico superior jesuíta, e uma demonstração dramática de força papal na Nigéria esta semana confirma que, quando chega o momento de obedecer, ele se impõe por completo.
O comentário é de John L. Allen Jr., jornalista, publicado por Crux, 11-06-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Uma pergunta: quando foi a última vez que você lembra ter visto um papa exigindo abertamente que todos os padres de uma diocese específica, quer estejam atualmente morando nela ou não, escrevam-lhe uma carta pessoal dentro de 30 dias prometendo lealdade e ameaçando-os de suspendê-los caso não cumprirem o exigido?
Se a resposta for “não consigo lembrar”, junte-se ao clube. No entanto, é exatamente isso o que o Papa Francisco fez com a Diocese de Ahiara, ao sul da Nigéria.
Há tempos sabe-se que a situação em Ahiara está complicada. Bento XVI nomeou um novo bispo em 2012, Peter Ebere Okpaleke, religioso não pertencente ao grupo étnico Mbaise, majoritário na diocese. Isso desencadeou uma forte reação por parte do clero, que suspeitou de estar havendo um preconceito tribal e exigiu que um dos seus membros fosse a pessoa nomeada.
Conhecidos por sua ferocidade contra o catolicismo, os Mbaise são por vezes chamados de “os irlandeses da Nigéria” por causa da inclinação do grupo a gerar padres e enviá-los como missionários. Entretanto, há tempos se queixam de que a fidelidade demonstrada não é apreciada, dizendo que a hierarquia do país está dominada por grupos étnicos rivais de um estado vizinho que forma a província eclesiástica de Onitsha, que inclui a diocese natal de Okpaleke.
Muitos Mbaise dizem terem sido sujeitados a uma forma de “colonização eclesiástica”, neste caso não por europeus, mas por outros nigerianos. Quando a nomeação foi anunciada, cerca de 400 padres e leigos realizaram uma marcha em protesto, enquanto os jovens Mbaise trancavam as portas da catedral para impedir o novo bispo de entrar.
Hoje faz cinco anos que Ahiara é, essencialmente, uma diocese à deriva. O Cardeal John Onaiyekan, de Abuja, capital do país, foi nomeado administrador apostólico em julho de 2013, com a ideia de que resolveria o problema, mas até agora suas tentativas de apaziguar o clero mostraram-se infrutíferas.
Esgotado este método, Francisco decidiu esta semana tentar uma outra maneira.
Após um encontro com os bispos nigerianos na quinta-feira, Dom Ignatius Kaigama, de Jos, presidente da conferência episcopal do país, postou um texto do papa em seu blog, que foi em seguida replicado por Fides, agência noticiosa da Congregação para a Evangelização dos Povos que supervisiona os territórios tradicionais de missão.
O Vaticano publicou o texto da missiva no sábado.
Nela, Francisco traça algumas exigências, acusando os padres recalcitrantes de quererem “destruir a Igreja” e dizendo que ele até mesmo considerava suprimir a diocese. Em vez disso, o papa exige que eles escrevam para “claramente manifestar obediência total ao papa”, incluindo a disposição em aceitar o bispo nomeado.
Certamente trata-se de uma demonstração da força papal. O próprio Francisco concordou, ao dizer que tem a consciência de estar parecendo “muito duro”, mas acrescentou que fazia isso porque “o Povo de Deus está escandalizado e Jesus recorda que quem escandaliza deve assumir as consequências”.
“Talvez”, concluiu, “alguém tenha sido manobrado sem uma plena cognição da ferida infligida à comunhão eclesial”.
Resta saber como estes padres reagirão, muito embora há poucos dias, durante uma missa organizada pela Associação dos Padres Mbaise, o presidente do grupo, Pe. Augustin Ben Ekechukwu, descreveu a nomeação de Okpaleke “como uma injustiça e uma conspiração maliciosa” contra o povo Mbaise.
Enquanto aguardamos para ver como as coisas se resolvem, a seguir apresento três ironias decorrentes dessa situação.
Em primeiro lugar, em outras partes do mundo o Vaticano silenciosamente leva a composição étnica e linguística de uma diocese em consideração ao nomear seus bispos. Em Quebec, por exemplo, há uma tendência a nomear bispos francófonos, especialmente a partir do aumento da consciência “québécois” da década de 1960. Na Bélgica, há tempos existe um equilíbrio delicado entre bispos flamengos e valões, e assim por diante.
Na África, no entanto, desde a era do Papa Paulo VI, a preferência normalmente foi em sentido contrário, favorecendo a nomeação de bispos de fora do grupo étnico. A ideia é que a Igreja, na maior parte da África, ainda é muito jovem e que é importante levar aí a universalidade da fé mostrando como ela transcende as lealdades tribais convencionais.
Em outras palavras, essa prática é pensada como um desafio ao preconceito racial. Todavia, o clero Mbaise claramente não concorda, vendo o que está acontecendo como um outro capítulo de sua própria supressão.
Supondo que Francisco receba a mostra de submissão que pediu, uma boa prática política na Igreja local pode levar ao encontro de um padre Mbaise aceitável e que seja nomeado para um cargo importante em breve, como uma maneira de provar que a instituição não está contra eles.
Em segundo lugar, tornou-se uma marca da visão de mundo católica ocidental supor que a África representa uma força conservadora poderosa nos assuntos de Igreja. Isso se tornou uma parte central da narrativa, por exemplo, em torno dos debates sobre Amoris Laetitia, documento polêmico do papa sobre a família.
No entanto, se por “conservador” queremos dizer “sempre inclinado a defender a autoridade eclesiástica”, o impasse em Ahiara mostra claramente que as coisas não são tão simples assim. Os africanos são tão capazes de indisciplina e rebeldia quanto, digamos, os católicos alemães ou americanos.
Em terceiro lugar, a situação também confirma uma convicção central relativa ao Papa Francisco.
Em geral, o Papa Francisco é visto como uma pessoa amorosa de diálogo e paz. No entanto, por baixo desta superfície ainda bate o coração de um clássico superior jesuíta, e uma demonstração dramática de força papal na Nigéria esta semana confirma que, quando chega o momento de obedecer, ele se impõe por completo.
Se não consegue o que deseja, também o papa está preparado para fazer cabeças rolarem. Já vimos isto antes, por exemplo, com as suas intervenções a algumas ordens e movimentos religiosos, e estamos vendo de novo na Nigéria. Francisco pode realizar grandes consultas e pedir assessoria para as suas decisões, mas assim que uma decisão é tomada, não há como voltar... e se necessário ele passa por cima do que estiver em seu caminho.
O tempo dirá se a dureza amorosa do papa finalmente irá desatar os nós em Ahiara. Não obstante, provavelmente existe uma lição aqui quanto às consequências a resistir obstinadamente à vontade de um papa, especialmente quando a advertência foi dada explicitamente – uma lição com implicações mais amplas do que somente para a diocese nigeriana.
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Três ironias em demonstração dramática de força papal na Nigéria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU