07 Junho 2017
Vinte anos atrás, o catolicismo na Áustria estava em crise, com divisões internas amargas que agravaram séculos de secularização intensa. Hoje, as coisas parecem bem mais calmas e, apesar de tudo, a Igreja local ainda retém uma capacidade singular de reunir pessoas diversas e colocá-las em diálogo sério sobre coisas que importam.
O comentário é de John L. Allen Jr., jornalista, em artigo publicado por Crux, 06-06-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Há duas décadas, nenhum outro ponto no mapa católico estava mais marcado por batalhas do que a Áustria, onde a Igreja parecia prestes a se romper ou a renascer como algo fundamentalmente diferente.
Em 1995, a frustração com o escândalo de abuso sexual envolvendo o Cardeal Hans Hermann Gröer, de Viena, acabou gerando um “KirchenVolksBewegung” (Movimento do Povo da Igreja). Em poucas semanas, os organizadores coletaram 750 mil assinaturas em uma petição que exigia cinco reformas, entre elas a ordenação de homens casados, a ordenação de mulheres ao diaconato, a escolha local dos bispos, funções expandidas para os leigos e um tratamento mais compassivo aos divorciados e homossexuais.
Inspirado em um levante parecido da Alemanha conhecido como “Wir Sind Kirche” (Nós Somos a Igreja), o movimento na Áustria se transformou numa tendência reformista católica progressista.
O movimento teve o seu ponto alto com o encontro “Diálogo para a Áustria”, em 1998, realizado em Salzburgo. O evento equivaleu a um parlamento nacional dos católicos austríacos, e os bispos se comprometeram em levar a Roma as recomendações que daí surgissem. Foram três dias de discussão, com debates intensos entre abades e pastores, teólogos e bispos, ativistas na área de justiça social e políticos católicos. Na hora da votação, foi uma vitória retumbante para as propostas de reforma.
Estas demandas, no entanto, já chegaram mortas em Roma, o que deixou muitos fiéis do país com um sentimento de amargura.
Os progressistas tiveram a sensação de que a vontade do povo fora ignorada, enquanto os conservadores se perguntavam por que o processo havia sido permitido, em primeiro lugar.
Esse drama todo na Igreja austríaca ocorreu no ápice de uma secularização intensa, que incluiu o envelhecimento e o encolhimento das congregações religiosas, um declínio nas vocações ao sacerdócio e à vida religiosa e um papel, cada vez menor, na definição do tom moral e espiritual em meio à sociedade.
Duas décadas atrás eu estava em Salzburgo para cobrir o citado encontro, e esta semana voltei ao país de volta para uma entrevista com o Cardeal Christoph Schönborn, de Viena, e palestrar em um evento em Leibnitz, organizado pela Arquidiocese de Graz-Seckau. Fiquei curioso para ver como andava a “temperatura”, por assim dizer, no país 20 anos mais tarde.
Sem pretensão alguma, a seguir apresento três observações básicas.
Em primeiro lugar, as coisas estão bem mais calmas. Não há protestos públicos generalizados, nem fúria na imprensa, também não há nenhuma sensação de agitação social. Os bispos podem caminhar pelos aeroportos e lojas sem multidões enfurecidas a gritar.
Eles podem ligar a TV sem ser surpreendidos por denúncias. Os padres podem celebrar a missa sem se preocupar com o debate político e o que a sua homilia poderia significar. Em geral, há uma sensação de normalidade.
Explicar esta calmaria é uma outra coisa.
Alguns do que apoiaram o “Movimento do Povo” dizem que esta sensação geral no país, hoje, acontece porque os austríacos que sonhavam com mudanças simplesmente desistiram e se afastaram. Então, o que a Igreja tem atualmente é a paz do túmulo.
Outros dizem que grande parte dessa calmaria resulta do trabalho de Schönborn, que conseguiu convencer todos os lados de uma Igreja dividida de que ele está, pelo menos, aberto ao diálogo e que, em certo sentido, entende suas preocupações.
Outros ainda dizem que a tranquilidade geral é o resultado inevitável da passagem do tempo, acompanhado com uma avaliação mais realista em termos do que é – e do que não é – possível no catolicismo. Segundo estas pessoas, isso ficou reforçado com a nomeação de um conjunto de bispos menos divisores, líderes fundamentalmente abertos ao diálogo.
Em todo caso, uma Igreja que parecia prestes a implosão duas décadas parece ter superado a tempestade.
Em segundo lugar, há uma sensação irônica: embora o Papa Francisco venha sendo um ótimo negócio para os dissidentes de direita – neste momento, há uma espécie de aposta informal nas mídias sociais para ver qual crítico de direita irá escrever a mensagem mais áspera sobre algo que o papa venha a falar ou fazer –, ele está sendo deixado de lado pelos ativistas progressistas como aqueles que fundaram o “KirchenVolksBewegung” na Áustria.
Quando hoje perguntamos a católicos do país o que aconteceu com essas pessoas, a reação mais comum é a de indiferença.
Não muito tempo atrás, um porta-voz do “KirchenVolksBewegung” foi entrevistado por um canal de TV austríaco e lhe perguntaram o que o movimento tem feito. Em essência, a reposta foi que, com o Papa Francisco em Roma, os reformadores sentem-se que suas ideias já prevaleceram, e que não há grande necessidade de organizarem protestos.
Isso, claro, faz parte da dinâmica das manifestações sociais: conseguir o que se deseja, ou parte dele, normalmente significa um afastamento das atividades.
Em terceiro lugar, muito embora já seja axiomático escrever obituários para a religião na Europa, fiquei surpreso com a quantidade de capital social que a Igreja Católica na Áustria ainda parece ter.
Em Viena, minha colega Inés San Martín e eu participamos de uma recepção quarta-feira passada dada por Schönborn em sua residência episcopal, evento que reuniu vários formadores de opinião atuantes na imprensa, membros dos círculos intelectuais e culturais, além de lideranças políticas.
Todos prestaram atenção e ouviram Schönborn delinear três prioridades:
• Defender os cristãos perseguidos, especialmente no Oriente Médio.
• Criar um clima hospitaleiro a migrantes e refugiados que chegam ao país.
• Servir aos pobres.
Resta saber até que ponto isto o que ele disse irá gerar ações, iniciativas nestes setores. Mesmo assim, é difícil imaginar alguém que pudesse reunir figuras tão diversas como essas para ouvir o que um líder católico tinha a dizer.
Da mesma forma, o congresso em que participei em Leibnitz atraiu um grupo impressionante de acadêmicos e eclesiásticos de ambos os lados do Atlântico, para discutir o futuro das relações entre Europa e EUA. E evento foi coordenado pela arquidiocese e pelo governo da província de Stryria, e pareceu contar com o apoio da comunidade geral.
De novo, não faço ideia de quais resultados práticos podemos ter a partir desta troca de informação, mas está mais que provada a capacidade da Igreja de aproximar pessoas de disciplinas tão diferentes e colocá-las em diálogo sério sobre temas que importam.
Em outras palavras, apesar de séculos de secularização e, mais recentemente, de conflitos internos amargos, a Igreja ainda parece estar atuante e ainda parece ter a oportunidade de moldar a cultura à luz do Evangelho. E, se for realmente este o caso, depois de todas as vicissitudes por que passou o catolicismo austríaco, há também esperança para o mesmo acontecer em outros lugares.
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Uma Igreja traumatizada na Áustria ainda tem capital social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU