14 Março 2017
Luther 2017
Neste ano, pela primeira vez na história, as igrejas protestante e católica, separadas desde a época da Reforma, irão se unir para uma celebração ecumênica do aniversário da Reforma. Um dos eventos centrais será uma cerimônia de Penitência e Reconciliação na cidade alemã de Hildesheim, em 11-03-2017, realizada em conjunto pelo presidente da Conferência dos Bispos Alemães, o Cardeal Reinhard Marx, e pelo presidente do Conselho Superior da Igreja Evangélica na Alemanha – EKD, o Bispo (Landesbischof) Heinrich Bedford-Strohm. Sob o lema “Curar as Memórias”, a cerimônia marcará os 500 anos da Reforma Protestante contemplando o impacto doloroso das duas igrejas divididas e rezará pelo perdão de Deus em nome das falhas em ambos os lados. Mas haverá também expressão de agradecimento e alegria pela base comum e pelos aspectos que as duas instituições admiram uma na outra. Essa celebração não é somente um assunto de igreja, mas promove também a compreensão e a reconciliação na nossa sociedade. O evento será transmitido ao vivo pela rede televisiva ARD.
A reportagem foi publicada por Luther 2017, 11-03- 2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A Conferência dos Bispos Alemães e o Conselho Superior da EKD sugerem a realização de cerimônias nos níveis regionais e locais após a celebração central em Hildesheim. Um modelo litúrgico, também presente no serviço religioso de 11 de março, encontra-se no texto publicado pela EKD e pela secretaria da Conferência dos Bispos Alemães intitulado em inglês “Healing of Memories – Giving Witness to Christ. A Common Address in 2017” (Curar as Memórias: Testemunhar Jesus Cristo. Uma abordagem comum em 2017). Esta publicação descreve conceitos teológicos centrais e momentos da história que impactam em nossa memória coletiva até hoje; ao mesmo tempo, destaca o progresso que vem sendo feito pelo movimento ecumênico sem ignorar as questões que permanecem em aberto.
Sumário
I. A vontade de reconciliação
II. “Nem tudo precisa ser uniforme”
III. Símbolo da unidade perdida
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Os católicos e protestantes escolheram uma cena vívida para a cerimônia de Reconciliação a ser feita: uma cruz tridimensional de 2,4 metros bloqueando inicialmente o acesso ao altar será erguida, liberando o caminho. Esta representação de um obstáculo simbólico tornando-se um sinal de Reconciliação ilustra a mensagem central da cerimônia de Penitência e Reconciliação a ser realizada na Igreja de São Miguel em Hildesheim em 11-03-2017 para marcar os 500 da Reforma: “Curar as Memórias: Testemunhar Jesus Cristo”. O local é simbólico também: a cerimônia acontecerá na segunda igreja interdenominacional mais antiga da Alemanha, compartilhada por protestantes e católicos desde 1542.
Em tempos passados essa vontade de reconciliação seria impensável. Há 500 anos, em 31-10-1617, Martinho Lutero publicava as suas 95 Teses em protesto contra abusos cometidos na Igreja de seu tempo. A crítica feita por ele desencadeou a Reforma Protestante, que não só resultou na divisão dentro da Igreja, mas também em algumas guerras extremamente sangrentas. Protestantes e católicos usaram os aniversários subsequentes da Reforma para condenar uns aos outros. Mas agora eles querem lembrar o que fizeram uns aos outros ao longo dos séculos, confessar a culpa, pedir perdão e “comprometer-se em afirmar a nossa união diante de Deus”, conforme se lê em “Abordagem comum em 2017”, publicação que também contém a liturgia para a cerimônia de Hildesheim, convidando as comunidades católica e evangélica a fazerem o mesmo.
O documento foi assinado e apresentado pelo presidente da EKD, o Bispo Heinrich Bedford-Strohm, e pelo presidente da Conferência dos Bispos Alemães, o Cardeal Reinhard Marx. Este último disse que a celebração foi “um evento quase revolucionário”. Ambos enfatizaram os laços ecumênicos, mas também declararam que um esforço pelo “verdadeiro entendimento da verdade do Evangelho” ainda está em curso.
Os dois maiores representantes cristãos alemães de Munique irão se alternar no comando da cerimônia de Penitência e Reconciliação. No meio do ano de 2015, Bedford-Strohm e Marx concordaram sobre o termo “Festival de Cristo” para as celebrações em torno da Reforma, comemorando as origens comuns – Jesus Cristo como o fundamento de toda a fé. Sob o título “Curar as Memórias”, seguiu-se “Abordagem Comum”, uma peregrinação a Israel e, agora, a cerimônia de Penitência e Reconciliação.
Críticas também estão sendo feitas a esse enfoque ecumênico. O vietnamita Ulrich Körtner, professor protestante de teologia, diz que o objetivo ecumênico foi colocado na frente de todo o restante: “O exame teológico do legado da Reforma e de seus impactos duradouros permanecem superficiais”, escreveu o professor em artigo publicado no sítio “evangelisch.de”, considerando este exame como um “nadir teológico”. Ele apontou para o texto fundacional da EKD de 2014 sobre o aniversário da Reforma – “Justificação e Liberdade” –, que foi criticado pela Igreja Católica Apostólica Romana. “O projeto ‘Curar as Memórias’ claramente persegue o objetivo de pôr no esquecimento o texto impopular ‘Justificação e Liberdade’”, afirmou.
No entanto, apesar de toda a base comum, divisões igualmente se farão evidentes em Hildesheim – divisões que muitas pessoas não entendem: não haverá comunhão em conjunto. “Ainda não encontramos um meio de celebrar juntos a nossa comunhão com Jesus na Eucaristia”, serão as palavras do Cardeal Marx de acordo com o texto litúrgico divulgado. O texto ecumênico declara que o objetivo é “continuar a percorrer o caminho ecumênico juntos com paciência e determinação, de forma que a unidade continue a crescer entre nós e que a comunhão conjunta e a Eucaristia possam tornar-se possíveis”. Porém uma solução rápida “parece improvável”.
Os alemães têm um exemplo internacional para ver certa oportunidade ecumênica no aniversário da Reforma. Em 31-10-2016, a Federação Luterana Mundial – FLM e o Papa Francisco marcaram um início impressionante das comemorações com uma celebração em Lund, na Suécia, sob o lema “Do Conflito à Comunhão”, após séculos de conflito e condenações, e após décadas tentando uma reaproximação.
As igrejas evangélica é católica da Alemanha estão buscando um caminho à reconciliação para marcar o 500º aniversário da Reforma. Há muito precedentes em todo o mundo para “Curar as Memórias”.
“Curar as Memórias” vem sendo o lema do processo reconciliatório desde o fim do apartheid na África do Sul, em que representantes de ambas as igrejas estiveram envolvidos. Num sentido mais estreito, “Curar as Memórias” é um procedimento pastoral-terapêutico na mediação entre a vítima e o transgressor. Nos últimos anos, o termo vem sendo também aplicado para a reconciliação entre comunidades religiosas, culturas e grupos étnicos, por exemplo na Irlanda do Norte, Bulgária, Hungria, Sérvia e Bósnia-Herzegovina.
A ideia por trás de Curar as Memórias (“Healing of Memories”) é que os participantes organizem encontros durante um certo período de tempo para contar uns aos outros suas histórias e perspectivas dos conflitos no intuito de ganhar clareza sobre os próprios sofrimentos e sobre o que foi feito, também uns aos outros. “Curar as Memórias” significa a cura das memórias e a cura através delas. Feridas e cicatrizes curam-se através do ato de falar sobre as experiências (a cura das memórias). E curar-se torna-se possível via memórias, em que as perspectivas dos participantes se expandem.
O Dr. Thies Gundlach, diretor do departamento Campos de Ação Eclesiástica e Formação da EKD e responsável pela área ecumênica em sua igreja, vem desempenhando uma importante função nas preparações para a cerimônia de Penitência e Reconciliação. Ele falou sobre o projeto.
Gundlach, “Curar as Memórias” – o que isso quer dizer?
No século XVI, a Reforma e a Contrarreforma causaram fendas que continuam a modelar, ainda hoje, a representação que fazemos uns dos outros. Para os protestantes, os nossos irmãos e irmãs católicos são, em geral, aqueles com uma mente um tanto estreita e mais conservadores, enquanto que para os católicos os protestantes estão demasiado próximos do Estado e sempre seguem em frente como se fossem modernos. Superar estas falsas representações e preconceitos e pedir pelo perdão de Deus e do próximo – eis a principal ideia por trás de “Curas as Memórias”.
Que o resultado o senhor espera alcançar?
Se formos capazes de falar uns sobre os outros no futuro, livres de preconceitos que, de alguma maneira, encontram-se em nossas cabeças e corações, e, em vez disso, considerarmos os outros como um enriquecimento, como um dom da diversidade da misericórdia divina, muito teremos alcançado. Continuam existindo diferenças teológicas, tais como a compreensão diferente do ofício e da comunhão; não devemos ignorar isso. Porém creio que a cura das memórias é uma pré-condição extremamente importante para podermos dar o próximo passo juntos e honrar as diferenças remanescentes com grande serenidade. Nem tudo precisa ser uniforme.
2017 entrará para a história como o aniversário ecumênico da Reforma?
Sim, é inédito poder celebrar o aniversário da Reforma juntos assim, ao mesmo tempo respeitando as diferenças. Esta data costumava ser um festival massivo de demarcação em que os protestantes diziam: “Não somos católicos”. E essa era uma parte considerável da mensagem. Hoje, não fazemos mais isso. Atualmente dizemos; “Somos evangélicos por um bom motivo, porque queremos fortalecer a liberdade de um cristão no e para o presente”. Gostamos de ser evangélicos e de celebrar este fato de um modo adequado, mas sem dizer: “Somos melhores que os católicos”. Eis uma mudança – e uma mudança massiva na percepção da responsabilidade comum em nosso mundo.
Local para a cerimônia ecumênica de Penitência e Reconciliação cujo lema é “Curar as Memórias: Testemunhar Jesus Cristo”, a Igreja de São Miguel em Hildesheim é uma casa especial de adoração. Com mais de mil anos de existência, a igreja não só é um patrimônio mundial declarado pela Unesco como também é uma igreja interdenominacional. Aqui, protestantes e católicos têm rezado há séculos sob o mesmo teto, embora em momentos diferentes. “É um lugar simbólico”, diz Thies Gundlach da Igreja Evangélica na Alemanha – EKD. Que outro lugar seria melhor para realizar a cerimônia central de Penitência e Reconciliação marcando o 500º aniversário da Reforma, com a chanceler Angela Merkel (do partido União Democrata-Cristã) e o presidente cessante Joachim Gauck devendo se fazer presentes?
Há ainda 64 igrejas interdenominacionais na Alemanha, a maioria delas no Palatinado e na Franconia. Algumas estão particionadas por muros, e em outras as confissões se alternam. “Cada igreja é única, singular”, explica o escritor Heinz Henke, de Bautzen. Certa vez o país contou com milhares destas igrejas. Especialmente após a Guerra dos Trinta Anos, muitos governantes procuraram encontrar um meio-termo entre as confissões e igrejas que haviam se diluídos. Em muitos casos, elas simplesmente não tinham dinheiro suficiente para reconstruir os templos que ficaram destruídos. Porém a vida em conjunto nem sempre foi fácil. “Havia atrito”, diz Henke. Especialmente os batismos e funerais serviam como motivo de discórdia. “E portanto elas [as igrejas] buscaram a autonomia mais uma vez”.
Das igrejas interdenominacionais restantes, a de São Miguel, em Hildesheim, é a segunda mais antiga, depois da catedral em Bautzen. Os protestantes vinham realizando seus cultos dominicais na grande nave desde 1542. Uma sala ao lado, a cripta, contendo o túmulo de Dom Bernward de Hildesheim (cerca de 960-1022), permaneceu sob a égide da diocese católica. Os católicos continuaram a celebrar missas aí às quintas-feiras. “A Igreja de São Miguel faz lembrar a unidade perdida da Igreja”, afirma Eckhard Gorka, superintendente evangélico de Hildesheim.
Há mais de 400 anos as duas partes da igreja ficaram hermeticamente isoladas uma da outra, refletindo a relação entre as duas confissões. Originalmente, existiam duas portas entre a sala grande e a pequena. “Mas elas foram completamente fechadas com tijolos”, diz Gorka. E os muros pareciam impenetráveis. Quando o kaiser (imperador) Guilherme II visitou a igreja romanesca no Dia da Reforma em 1900, o povo de Hildesheim especialmente criou um acesso entre a nave e a cripta. Mas, tão logo ele saiu, um muro foi erguido novamente. Católicos e protestantes continuaram a usar entradas separadas.
Foi só em 1972 que uma das duas portas foi aberta e substituída por uma grade de ferro. Mas esta também costumava ficar trancada. “Quando servi como vigário aqui em 1992, visitamos a cripta somente uma vez, com a ajuda do sacristão”, recorda Gorka. E o passo seguinte só veio a acontecer em 2006: trabalhadores removeram a grade e abriram a segunda porta também.
À medida que as pedras eram derrubadas, as duas confissões realizavam orações em conjunto: de um lado, Gorka aguardava com um coro de trombones, enquanto no outro lado o bispo católico Norbert Trelle apresentava-se plenamente paramentado segurando a cruz de Bernward. Esse avanço “foi um símbolo ecumênico irrefutável”, afirma o protestante. A cerimônia “Curar as Memórias”, que será transmitida ao vivo pelo canal televisivo ARD, pretende ajudar no crescimento do ecumenismo na Alemanha.
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“Curar as Memórias”. Cerimônia de Penitência e Reconciliação ecumênica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU