26 Fevereiro 2017
A 12 anos de distância, estamos de volta ao Borgo Santo Spirito para uma entrevista com o geral dos jesuítas, o “papa negro”. No amplo escritório, que agora está cheio de símbolos latino-americanos, não somos mais acolhidos pelo holandês de origem e libanês de adoção Peter-Hans Kolvenbach (geral de 1983 a 2008, que faleceu em Beirute em novembro), mas sim pelo venezuelano Arturo Sosa, à frente da Companhia de Jesus há quatro meses e sucessor do espanhol Adolfo Nicolás.
A reportagem é de Giuseppe Rusconi, publicada no sítio Rosso Porpora, 18-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Aos 68 anos, formado em filosofia e em ciências políticas, é um dos seis filhos de um economista, advogado, empresário e banqueiro que foi duas vezes (1958 e 1982-1984) ministro da Economia venezuelano. Tendo entrado na Companhia em 1966, foi ordenado sacerdote em 1977 e foi provincial venezuelano (com simpatias por Hugo Chávez) de 1996 a 2004. Eleito conselheiro-geral da ordem em 2008, desde 2014 está em Roma como responsável pelas casas e instituições jesuítas na Cidade Eterna. Desde o dia 14 de outubro, é o 31º geral dos jesuítas, o primeiro não europeu. Grande cordialidade, um sorriso simpático e talvez um pouco malandro, vejamos o que ele tem a nos dizer...
Padre Sosa, comecemos com um olhar geral seu sobre a Igreja, antes de passar a falar sobre o senhor. Há quase quatro anos, a Igreja Católica tem como timoneiro um jesuíta latino-americano, e, há quatro meses, a Companhia de Jesus é dirigida por um jesuíta latino-americano. Detenhamo-nos, em primeiro lugar, sobre as características de novidade trazidas por uma Igreja guiada por um jesuíta...
A novidade é grande, porque me parece que nunca o fundador ou os jesuítas alimentaram essa ideia na cabeça. Nem mesmo o jesuíta Jorge Mario Bergoglio. Tradicionalmente, a Companhia de Jesus tenta prestar um serviço à Igreja não de um ponto de vista hierárquico, mas de acordo com outra ótica: pastoral, intelectual, educacional. Ela faz isso em lugares e momentos especiais. Os jesuítas que também são bispos prestam esse serviço a pedido direto da Santa Sé e em locais aonde outros não querem ir ou onde reine uma situação especial.
Está sugerindo que, hoje, na Igreja, reina uma “situação especial”?
Para que um jesuíta se torne papa, deve haver necessariamente uma situação especial. Foi a Igreja que pediu isso. Além disso, ela pediu isso a um jesuíta idoso, no limiar da aposentadoria: e este também é um aspecto singular.
Um jesuíta latino-americano... mais uma novidade que também diz respeito, ao mesmo tempo, à Companhia de Jesus...
Este é um papa que, como eu, vem da Igreja latino-americana. Eu entrei na Companhia justamente quando estava se concluindo o Vaticano II. Eu terminei o noviciado em 1968, no momento da Conferência Geral de todos os bispos latino-americanos em Medellín, aberta por Paulo VI. A nossa eleição certamente é um sinal de que, nesses 50 anos, a Igreja latino-americana soube concretizar seriamente o Concílio, tendo-se convertido em todos os níveis.
A Igreja latino-americana precisava de uma conversão completa?
A conversão era requerida pelo Vaticano II a todos, com modalidades diferentes de acordo com o próprio serviço na Igreja. Por exemplo, aos religiosos, foi pedido que voltassem a beber nas suas fontes espirituais. Em geral, pediu-se que a Igreja abrisse as janelas, deixasse entrar ar fresco, descobrisse as mudanças do mundo, tentando considerá-los a sério. Foi assim que a Igreja latino-americana começou a se defrontar com convicção com a realidade verdadeiramente chocante do continente, uma realidade que ainda hoje é perturbadora, em uma situação em que a diferença entre ricos e pobres é a maior do mundo.
Mas a América Latina não é o continente mais pobre...
Não, mas, certamente, é aquele em que a desigualdade alcança o ápice. Ao lado dessa pobreza, porém, está a fé muito viva das pessoas, tão variada e com tantas experiências de inculturação. A Igreja latino-americana, depois do Concílio, deu um grande impulso e conseguiu converter tanto os seus modos pastorais, quanto as suas estruturas sociais, com uma atenção particular à evangelização dos pobres. Digo isso com humildade e também com um pouco de orgulho: tanto o Papa Francisco quanto eu somos filhos dessa história, fruto de um trabalho não pessoal, mas coletivo, que dura mais de 50 anos.
Enquanto isso, devemos reconhecer que, há alguns anos, manifesta-se uma erosão numericamente sensível de católicos, que passam para seitas protestantes, na América Central, mas também, por exemplo, no Brasil...
Para tentar dar uma resposta a esse fenômeno, eu começaria de longe. A Igreja latino-americana nasceu do sistema colonial: os colonizadores eram católicos, e a conquista também era feita em nome da religião. Mas podemos nos perguntar o quão verdadeiramente católica era a América Latina conquistada, o quão profundas eram as raízes católicas nessa terra. Além disso, as guerras de independência do século XIX foram guiadas, geralmente, por personalidades liberais, muito frequentemente também anticlericais. E o positivismo no século XIX foi a filosofia mais difundida entre as elites do continente. Por outro lado, no catolicismo popular, muitas vezes era forte a influência de elementos religiosos indígenas, quase como se as divindades originais estivessem, no fundo, apenas mascaradas com nomes católicos, a fim de sobreviverem em uma sociedade que tinha imposto o catolicismo como ideologia.
Se ele foi imposto como ideologia, tem aspectos de fragilidade...
O Vaticano II pediu para se defrontar com a realidade do mundo, não escondê-la. E de realizar uma evangelização verdadeira, não uma evangelização que vise aos números, a ponto de poder dizer: “Esta nação é católica”. Na realidade, neste último caso, muitos são os batizados, por assim dizer, não crentes, batizados por constrição social e não por escolha. A Igreja latino-americana já superou essa fase histórica. Hoje, os católicos são menos do que antigamente, mas mais convictos. É claro, o desafio é enorme, e a Igreja está em concorrência com outras entidades que oferecem respostas às necessidades religiosas do homem, não só cristãs. Os muçulmanos também estão em crescimento.
No México...
Também na Argentina e em diversos outros Estados. Mas, reitero, hoje a Igreja Católica na América Latina está mais equipada para enfrentar com coerência os desafios sociais, sem apontar para os números... O Evangelho, talvez, fala de números?
Sejam fermento...
E o fermento fará o seu trabalho. Não se trata de contar os milhões de fiéis. É muito mais importante se prestamos um serviço de verdadeira evangelização, que muda radicalmente as pessoas.
Evangelização... e aqui nos encontramos falando de missão e proselitismo, termo este considerado muito negativamente pelo Papa Bergoglio. O senhor é latino-americano: as “reduções” jesuíticas do século XVIII, imortalizadas mais ou menos fielmente em um grande filme como “A Missão”, eram missões ou proselitismo?
Missões.
Qual é a diferença?
O contexto histórico das reduções era o colonial, caracterizado por uma sociedade em que o proselitismo respondia à necessidade de se submeter ao poder tornando-se católico. Os jesuítas das reduções, em vez disso, apontaram para a preservação da cultura indígena fortalecendo-a do ponto de vista socioeconômico. Não era obrigatório ser católico nas reduções: certamente, fazia-se a proposta do Evangelho, não era uma imposição. Portanto, não era proselitismo, instrumento de propaganda utilizado pelo poder para aumentar os seus números. A missão não pretende zerar as diversidades culturais existentes: não é preciso renunciar à própria cultura para se tornar cristão! Esta também é a substância da grande batalha de São Paulo contra a imposição da lei judaica: nós não nos deixamos escravizar, fomos libertos pela Cruz de Jesus. Portanto, a lei, que é imposição cultural, está superada.
A propósito da lei, passemos para outro capítulo muito controverso... Nesses quase quatro anos de pontificado, o Papa Bergoglio perseguiu obstinadamente o seu objetivo de transformar a Igreja em canteiro de obras aberto, subvertendo a sinalética e derrubando as barreiras. Até onde ele conseguiu sucesso até aqui nesse seu intento?
À expressão “canteiro de obras aberto”, eu logo acrescentaria a expressão “aberto para quem quiser discernir...”: quem entra no canteiro deve estar preparado para discernir.
Eis um termo hoje muito em voga, muito citado no discurso eclesial: discernir, discernimento... Mas quem não está preparado para discernir, o que faz? Não pode entrar?
Também é convidado a entrar e a aprender a discernir. O discernimento faz parte da vida cristã e amadurece com ela. O ideal da vida cristã é agir como Jesus, permanecendo em contato com Ele na oração, na Eucaristia, compartilhando a vida da comunidade cristã no serviço aos outros.
Já se percebe a mudança desejada e estimulada pelo Papa Bergoglio ou não?
É uma questão também de localização, não só geográfica. A minha percepção é de que, no mundo menos clericalizado, a ação do Papa Francisco é acolhida como uma boa notícia e muda a nossa vida: a Igreja abre as janelas.
O que significa mundo “menos clericalizado”?
Aquele menos apegado aos legalismos “farisaicos”. Quando a lei se converte em culto, a figura do sacerdote se “esclerotiza”. A lei, então, torna-se um instrumento de poder, que anula a liberdade pessoal de escolher o caminho cristão.
E, no mundo “mais clericalizado”, o que acontece?
Faz-se resistência. Não é tanto questão de sacerdotes, mas também de leigos, às vezes mais clericais do que os clérigos...
Há muitos na Europa?
Sim, na Europa há muitos, também nos Estados Unidos e na América Latina... Falamos do fundamentalismo muçulmano, islâmico, mas não olhamos para o nosso...
Mas, Pe. Sosa, não há talvez alguma pequena diferença entre o fundamentalismo islâmico e aquele que o senhor define como “fundamentalismo cristão”? Certamente, o islâmico se expressa através dos atentados terroristas, preferivelmente em lugares lotados. E também se baseia na interpretação de diversas suras do Alcorão, além do exemplo do próprio Profeta. Aquele que o senhor considera como “fundamentalismo cristão” certamente não se caracteriza pelos atentados terroristas...
Mas os dois fundamentalismos podem ser comparados na atitude. Certamente é fundamentalista a atitude daqueles que criticam radicalmente o Concílio Vaticano II, esse novo modo de ser Igreja que hoje é encarnado pelo magistério do Papa Francisco. Dizem ser mais fiéis do que ele ao Evangelho...
A esse propósito, o cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em uma ampla entrevista com a revista católica mensal Il Timone, de fevereiro de 2017, observa, a propósito do matrimônio, que “nenhum poder no Céu e na Terra, nem um anjo, nem o papa, nem um concílio, nem uma lei dos bispos têm a faculdade de modificá-lo”. O purpurado alemão observa ainda: “As palavras de Jesus [neste caso, sobre a sacralidade do matrimônio] são muito claras, e a sua interpretação não é uma interpretação acadêmica, mas é Palavra de Deus”. Müller também, um “fundamentalista católico”?
Seria preciso começar uma bela reflexão sobre o que Jesus disse verdadeiramente... Naquele tempo, ninguém tinha um gravador para registrar as Suas palavras. Aquilo que se sabe é que as palavras de Jesus devem ser contextualizadas, são expressadas com uma linguagem, em um ambiente específico, são dirigidas a alguém definido.
Mas, então, se todas as palavras de Jesus devem ser examinadas e remetidas ao seu contexto histórico, elas não têm um valor absoluto...
No último século, na Igreja, houve um grande florescimento de estudos que tentam entender exatamente o que Jesus queria dizer. Entender uma palavra, entender uma frase... As traduções da Bíblia mudam, enriquecem-se de verdade histórica. Pense um pouco: para mim, venezuelano, a mesma palavra pode ter um significado diferente quando dita por um espanhol. Isso não é relativismo, mas certifica que a palavra é relativa. O Evangelho foi escrito por seres humanos, é aceito pela Igreja que é feita de pessoas humanas. Sabe o que São Paulo diz? “Eu não recebi o Evangelho de nenhum dos Apóstolos. Fui me encontrar com Pedro e Tiago pela primeira vez três anos depois da conversão. A segunda, depois de 10 anos, e, naquela ocasião, discutimos sobre como o Evangelho deve ser compreendido. No fim, disseram-me que a minha interpretação também era boa, mas que eu não devia me esquecer de uma coisa: dos pobres”... Por isso, é verdade que ninguém pode mudar a palavra de Jesus, mas é preciso saber qual foi!
Também é discutível a afirmação (cf. Mateus 19, 3-6) “não divida o homem aquilo que Deus uniu”?
Eu me identifico com aquilo que o Papa Francisco diz: não se coloca em dúvida, coloca-se em discernimento.
Isto é, coloca-se em dúvida, já que o discernimento é avaliação, é escolha entre diversas opções... Não há mais uma obrigação de seguir uma única interpretação...
Não, a obrigação sempre existe, mas de seguir os resultados do discernimento. Não é uma avaliação qualquer.
Mas a decisão final se fundamenta no julgamento relativo a diversas hipóteses... Portanto, também leva em consideração a hipótese de que a “o homem não divida...” não é exatamente como parece... Em suma, coloca-se em dúvida a palavra de Jesus...
Não a palavra de Jesus, mas a palavra de Jesus como nós a interpretamos... O discernimento não escolhe entre diversas hipóteses, mas se coloca à escuta do Espírito Santo, que – como Jesus prometeu – nos ajuda a entender os sinais da presença de Deus na história humana.
Pe. Sosa, como o senhor já mencionou, há poucos católicos (certamente, mais do que quatro gatos pingados) que se esforçam muito para seguir certos ensinamentos e certos gestos do Papa Francisco, assim como as suas contínuas repreensões... Ele é criticado por criar confusão. Por que não conseguem segui-lo? Parece que, com o Papa Bergoglio, faltam aqueles pontos de apoio necessários em uma sociedade “fluida” como a nossa; pontos de apoio que, até recentemente, eram garantidos pela Igreja, por assim dizer, último bastião em um mundo secularizado...
Sim, é verdade que não são quatro gatos pingados. O esforço para seguir Francisco é encontrado não só na Europa e nos Estados Unidos, mas também na América Latina, por toda a parte, em todo o mundo. Mas a função da Igreja não é a de ser um bastião contra a modernidade.
Uma modernidade que pisoteia os valores humanos fundamentais. Basta pensar na imposição através da mídia e da escola estatal (através de verdadeiros e tristes cavalos de Troia como a luta contra o bullying e a “violência de gênero”) de uma ideologia desumana como a do gender, que visa a transformar a pessoa em um indivíduo fraco, sem identidade, à mercê de todo marioneteiro financeiro ou libertário...
Mas eu lembro a mensagem do Vaticano II: “Nós devemos aprender algo com a modernidade. A Igreja não é um bastião, abre-se, tenta entender, busca inspirar”.
Há 50 anos, nos tempos do Vaticano II, não existia a ameaça concreta do totalitarismo gender, que envenena os nossos filhos, semelhante a um Isis ocidental... Fico curioso pelo fato de que o senhor tenha usado o verbo “inspirar” relativo à ação da Igreja...
Eu não disse por acaso, porque evitei usar cuidadosamente a palavra “orientar”. A Igreja não deve orientar, deve inspirar os ambientes mais diversos...
Se a Igreja não deve orientar, que estrela-guia os católicos devem olhar hoje?
A estrela existe e se chama Jesus de Nazaré, Jesus Cristo, que deu a vida por todos nós, os claros, os confusos, os não crentes, os tradicionalistas e os progressistas...
Mas não é fácil traduzir Cristo na realidade convulsiva e contraditória atual... Como discernir, para utilizar um verbo muito em voga?
É preciso fazer o discernimento juntos, juntos. O discernimento nunca é apenas de uma pessoa: devemos compartilhar o caminho juntos. O discernimento é muito desafiador, não é uma palavra caricatural. O Papa Francisco faz discernimento seguindo Santo Inácio, como toda a Companhia de Jesus: é preciso buscar e encontrar, dizia Santo Inácio, a vontade de Deus. Não é uma busca de brincadeira... O discernimento leva a uma decisão: não se deve apenas avaliar, mas decidir.
E quem deve decidir?
A Igreja sempre reafirmou a prioridade da consciência pessoal.
Vejamos se eu entendi bem: se a consciência, depois do discernimento do caso, me diz que eu posso fazer uma certa ação, eu posso fazê-la sem me sentir culpado e com a aprovação da comunidade... Eu posso comungar, por exemplo, mesmo que a norma não o preveja...
A Igreja se desenvolveu ao longo dos séculos, não é um pedaço de concreto armado... Ela nasceu, aprendeu, mudou... Por isso, fazem-se os concílios ecumênicos, para tentar focar os desenvolvimentos da doutrina. Doutrina é uma palavra de que eu não gosto muito, traz consigo a imagem da dureza da pedra. Em vez disso, a realidade humana é muito mais nuançada, nunca é preta ou branca, está em um desenvolvimento contínuo.
Parece-me entender que, para o senhor, há uma prioridade da práxis do discernimento sobre a doutrina...
Sim, mas a doutrina faz parte de discernimento. Um verdadeiro discernimento não pode prescindir da doutrina.
Mas pode chegar a conclusões diferentes da doutrina...
Isso sim, porque a doutrina não substitui o discernimento nem o Espírito Santo.
Pe. Sosa, passemos para os seus primeiros quatro meses como geral dos jesuítas. Já fez experiências importantes?
Você pode imaginar a grande novidade que foi a eleição para a minha vida. Só o fato de entrar aqui, neste escritório que foi do Pe. Arrupe, do Pe. Kolvenbach, do Pe. Nicolás. Devo dizer que sinto uma grande devoção pessoal pelo Pe. Arrupe, geral da Companhia em tempos difíceis. O Pe. Kolvenbach me formou nos meus anos de maturação como jesuíta. E o Pe. Nicolás foi o meu guia durante os últimos nove anos.
Vejo que, no escritório, quem vigia pelo senhor é Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina.
Os meus pais se casaram no dia 12 de dezembro, dia da festa de Nossa Senhora de Guadalupe. Eu fui batizado um ano depois no dia em 12 de dezembro. Eu fiz os últimos votos como jesuíta no dia 12 de dezembro... Como você vê, Nossa Senhora de Guadalupe está muito ligada à minha tradição familiar. Eu gosto muito da história de Nossa Senhora de Guadalupe. Juan Diego e a imagem muito latino-americana da Nossa Senhora de Guadalupe, mestiça, indígena. Em vez disso, a Nossa Senhora de Coromoto, que também está aqui neste escritório, é venezuelana, branca, muito mais europeia...
Voltemos às experiências de vida desses quatro meses.
Em primeiro lugar, eu tive que aprender a viver em uma realidade nova, com todas as suas complexidades. Eu aprendo imerso em um grupo de colaboradores muito variado, qualificado com grande humanidade, e esta é uma grande sorte. Santo Inácio dizia que uma cabeça por si só não basta: ela precisa de olhos, ouvidos, boca, nariz, mãos, braços, pernas, pés, para poder fazer um trabalho fecundo. Eu já tive que adotar decisões que, sem a experiência amadurecida com os meus colaboradores, eu não poderia tomar de forma responsável. A outra grande experiência é a da minha ignorância... Quanto mais avançamos, mais nos damos conta de que aquilo que sabemos é pouca coisa...
Chegamos à dramática situação da Venezuela, um país que parece estar no seu extremo. Eu li algumas manchetes nos últimos dias: “Venezuela: episcopado denunciou que desconhecidos atacaram a Catedral de Caracas”; “Grupos chavistas lançaram panfletos contra a Igreja durante missa em Caracas”; “Dom Diego Padrón (presidente da Conferência Episcopal Venezuelana): ‘Governo busca amedrontar a Igreja Católica”; “Governo assegura que a Igreja venezuelana quer ‘morte e sangue” no país”. Títulos eloquentes, não? As tentativas de diálogo entre as partes, o governo Maduro e a oposição, fracassaram até aqui, embora promovidas pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pela Santa Sé. O senhor é venezuelano e conhece bem a situação: é possível hoje um diálogo de verdade entre governo e oposição?
A questão não é simples. A Venezuela está em uma situação dramática, mas a grande crise política e social já começou há cerca de 30 anos, quando se começou a ver os limites estruturais de uma sociedade que tentou viver apenas graças à renda petrolífera. É uma sociedade que não foi capaz de criar uma estrutura produtiva aproveitando a renda petrolífera, uma estrutura que distribuísse de forma mais justa os bens produzidos. Do ponto de vista político – já que o Estado é o beneficiário exclusivo da abundante renda petrolífera – tem sido muito difícil criar uma sociedade que tenha um caráter democrático. A Igreja, desde cedo, evidenciou os limites desse modelo fundamentado mais na renda petrolífera do que no trabalho coletivo, coerentemente com a doutrina social da Igreja, antes ainda de Hugo Chávez.
Hugo Chávez, golpista (fracassado), em 1992, presidente da Venezuela (eleito pelo povo, em sucessivas votações, com uma maioria no início ampla, depois restrita) de 1999 a 2013, quando morreu por causa de um tumor, deixando o poder ao vice-presidente, Nicolás Maduro...
Sim, Chávez foi eleito e reconfirmado várias vezes, nos primeiros anos com uma grande maioria de votos, mas a relação afetiva que o ligava ao povo venezuelano se atenuou progressivamente com o agravamento da crise econômica devida ao colapso das receitas petrolíferas. Em 2013, quando o vice-presidente Nicolás Maduro tomou o seu lugar, o desvio autoritário já estava bem claro. Os espaços democráticos tinham se restringido muito, e era buscado cada vez mais o modelo do chamado “socialismo do século XXI”, baseado em dois pilares: o mais relevante era o da força militar, depois o do partido que controla as massas populares (que funcionou durante anos). Os 18 anos de chavismo cimentaram um poder militar muito forte. Para romper, para mudar, para abalar a situação há apenas um modo: que essa visão baseada principalmente no poder militar seja subvertida pelas pessoas com o apoio internacional.
Não é tão fácil...
As pessoas estão tão desesperadas e exasperadas que é impossível fazer previsões confiáveis sobre o que poderá acontecer. Mas acho que, neste momento, seria necessário – fruto de um diálogo entre governo e oposição por pressão internacional – um governo de unidade nacional que permita enfrentar a emergência da saúda, da educação, dos alimentos... e também da política. O pedido de eleições é de grande importância.
O Papa Bergoglio aponta para o diálogo. Mas muitos católicos venezuelanos não o aceitam, e, recentemente, charges satíricas em que o papa é identificado como “vendido” tiveram uma grande difusão. A Conferência Episcopal também critica duramente o regime, que, há alguns dias, o cardeal Urosa Savino, arcebispo de Caracas, reafirmou ser “uma ditadura”. A pergunta de muitos é clara: como é possível dialogar com quem tem uma força militar preponderante à sua disposição?
Mas, se você não dialoga, o que faz? Se você acha que o governo é mais forte do que você, a única possibilidade de enfraquecê-lo é o diálogo. Não há outra, já que você não tem a força para vencer de outro modo senão o democrático. Com o diálogo, você sempre pode esperar constranger o governo a amolecer, a fazer alguma concessão. Qualquer tirania perde a conexão com a realidade de um país, mas, se você a constrange a se sentar à uma mesa e a olhar na cara tanto da oposição quanto dos sofrimentos reais das pessoas, ela perde força. Hoje, na Venezuela, o governo Maduro se afastou da Constituição ou, melhor, faz com que ela nem seja respeitada: é uma tirania que começou como tirania da maioria e agora se tornou tirania da minoria. Por isso, Maduro não quer nenhuma eleição, prescrita pela Constituição, como as regionais. Só o diálogo pode minar a sua força.
Pe. Sosa, concluamos com o seu desejo para a Companhia de Jesus...
A Congregação Geral do fim do ano deu orientações muito claras, que requerem um grande compromisso. Três aspectos, em síntese, devem ser seguidos com atenção particular: a vida comunitária e pessoal, a missão, a colaboração. Agora, a missão da Companhia é tão complexa, tão variada que é impossível pensar em fazê-la sozinhos como jesuítas. Portanto, luz verde para a colaboração para defender a dignidade humana com outros grupos católicos, ou com outras religiões, ou também com não crentes, laicos. Os problemas do mundo são tão graves – penso, por exemplo, no dos refugiados e dos migrantes – que deve ser buscada toda sinergia possível. A missão da Companhia é humanizar o mundo. E nós compartilhamos tal missão com muitos outros, de todas as proveniências, no mundo. Certamente, com o Papa Francisco.
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"As palavras de Jesus? Devem ser contextualizadas." Entrevista com Arturo Sosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU