30 Setembro 2016
“O "feed" do Face, elogiado por muitos por ser uma espécie de jornal sob medida, transforma-se, para cada um, numa voz única, um jornal partidário, piorado por uma falsa sensação de pluralidade (produzida pelo número de links)”, constata Contardo Calligaris, psicanalista, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 29-09-2016.
Segundo ele, “de um lado, o leitor do "feed" não se informa para saber o que aconteceu e decidir o que pensar, ele se informa para fazer grupo, para fazer parte de um consenso. Do outro, o comentarista escreve sobretudo para ser integrado nesses consensos e para se tornar seu porta-voz”.
Eis o texto.
Um ano atrás, decidi seguir os conselhos de meu filho e abri uma conta no Facebook. A conta é no nome da cachorra pointer que foi minha grande companheira nos anos 1970 e funciona assim: ninguém sabe que é minha conta, não tenho amigos, não posto nada e não converso com ninguém.
Uso o Face apenas para selecionar um "feed" de notícias, que são minha primeira leitura rápida de cada dia.
Meu plano era acordar e verificar imediatamente os editoriais e as chamadas dos jornais, sites, blogs que escolhi e, claro, percorrer a opinião de meus colunistas preferidos, nos EUA e na Europa. Alguns links eu abriria, mas sem usurpar excessivamente o tempo dedicado à leitura do jornal, que acontece depois, enquanto tomo meu café.
Tudo ótimo, no melhor dos mundos. Até o dia em que me dei conta do seguinte: sem que esta fosse minha intenção, eu tinha selecionado só a mídia que pensa como eu –ou quase. Meu dia começava excessivamente feliz, com a sensação de que eu vivia (até que enfim) na paz de um consenso universal.
Mesmo nos anos 1960 e 1970, meus anos mais militantes, eu nunca tinha conhecido um tamanho sentimento de unanimidade.
Naquela época, eu lia "L'Unità", o cotidiano do Partido Comunista e, a cada dia, identificava-me com o editorial. Não havia propriamente colunistas: a linguagem usada no jornal inteiro já continha e propunha uma visão do mundo –luta de classes, contradições principais e secundárias, estrutura e superestrutura etc.
Ora, junto com "L'Unità" eu sempre lia mais um jornal –o "Corriere della Sera", se eu estivesse em Milão, o "Journal de Genève", em Genebra, e o "Le Monde", em Paris.
Nesses segundos jornais, que eram de centro (mas eu jurava que eram "de direita"), eu verificava os fatos (em plena Guerra Fria, não dava para acreditar nem mesmo no lado da gente) e assim esbarrava nos colunistas –em geral, social-democratas laicos e independentes, sem posições partidárias ou religiosas definidas.
Em sua grande maioria, eles não escreviam para convencer o leitor: preferiam levantar dúvidas, inclusive neles mesmos. E era isso que eu apreciava neles –embora os chamasse, eventualmente, de "lacaios da burguesia".
Hoje, os colunistas desse tipo ainda existem, embora sejam poucos. Eles estão mais na imprensa tradicional; na internet, duvidar não é uma boa ideia, porque é preciso criar e alimentar os consensos do "feed" do Face.
O "feed" do Face, elogiado por muitos por ser uma espécie de jornal sob medida, transforma-se, para cada um, numa voz única, um jornal partidário, piorado por uma falsa sensação de pluralidade (produzida pelo número de links).
A gente se queixa de que os grandes conglomerados da mídia estariam difundindo uma versão única e parcial de fatos e ideias, mas a realidade é pior: não são os conglomerados, somos nós que, ao confeccionar um jornal de nossas notícias preferidas, criamos nossa própria Coreia do Norte e vivemos nela. Como sempre acontece, somos nossos piores censores, os maiores inimigos de nossa possibilidade de pensar.
De um lado, o leitor do "feed" não se informa para saber o que aconteceu e decidir o que pensar, ele se informa para fazer grupo, para fazer parte de um consenso. Do outro, o comentarista escreve sobretudo para ser integrado nesses consensos e para se tornar seu porta-voz.
O resultado é uma escrita extrema, em que os escritores competem por leitores tanto mais polarizados que eles conseguiram excluir de seu "jornal" as notícias e as ideias com as quais eles poderiam não concordar: leitores à procura de quem pensa como eles.
Claro, não há hoje a obediência partidária dos anos 1970, mas a internet potencializa a vontade de se perder na opinião do grupo e de não pensar por conta própria. Essa vontade é a mesma –se não cresceu. Sumiu, em suma, a paixão do partido, mas não a do consenso.
Entre consensos opostos, obviamente, não há diálogo nem argumentos, só ódio.
Em suma, provavelmente, o resultado último da informação à la carte (que a internet e o "feed" facilitam) será a polarização e o tribalismo.
Eu mesmo me surpreendo: em geral, acho chatérrimos os profetas da apocalipse, que estão com medo de que o mundo se torne líquido ou coisa que valha. Mas, por uma vez, a contemporaneidade me deixa, digamos, pensativo.
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