07 Setembro 2016
A política é um jogo que, no Brasil, não se vale das regras legais para dar cada lance. A violência das batalhas nesse campo não poupa nem os preceitos Constitucionais, o que é extremante grave, pois o que esperar em uma sociedade em que a justiça só prevalece no papel? E foi analisando o jogo político, imbricado em todas as instâncias de poder, do legislativo ao judiciário, que o cientista político, professor titular da UnB e ex-presidente do IPEA, Jessé Souza escreveu sua mais recente obra “A radiografia do golpe: entenda e como e porque você foi enganado”.
A reportagem é de Lilian Milena, publicada por Jornal GGN, 06-09-2016.
Em entrevista que concedeu ao programa “Na sala de visitas com Luis Nassif”, Jessé defendeu que as raízes do golpe de 2016 nasceram de sementes plantadas em junho de 2013. Não que a manifestação iniciada por um grupo puramente de esquerda – Movimento Passe Livre – tivesse esse intuito, mas sim porque a força das ruas foi, posteriormente, manipulada e manejada pela grande imprensa em favor dos objetivos da elite brasileira. No livro, Jessé chega a avaliar as notícias dadas pelo Jornal Nacional, dia após dia, montando a narrativa de que a insatisfação popular era generalizada e baseada na corrupção estritamente Estatal.
Dalí em diante foram construídos os pilares para formular a imagem de Lula e do PT como símbolos da corrupção no seio do Estado, e do poder judiciário e, notadamente, Sérgio Moro, como símbolos da moralidade e salvação do país.
Apesar de ser pessimista quanto ao desfecho da crise política vivenciada hoje no Brasil, Jessé Souza pondera que a sociedade brasileira, mesmo aquela que apoio o impeachment, começa a se dar conta do teatro montado para esconder os reais interesses, ou seja, de excluir grande parte da população dos benefícios vindos do crescimento e exploração das riquezas nacionais. Nesse sentido, as redes sociais estão sendo fundamentais, combatendo o discurso hegemônico da grande mídia.
Na entrevista, Jessé também aponta os erros da esquerda, sobretudo aquela representada pelo PT no poder, que também foi incapaz de montar uma nova matriz econômica para abarcar os anseios não apenas econômicos, mas também políticos da população que ascendia à classe C. “O pentecostalismo foi quem reassumiu essa narrativa”, completou.
Em 2015 o professor lançou outro trabalho polêmico, chamado A tolice da inteligência brasileira, contrapondo argumentos de importantes intérpretes brasileiros como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire e Raymundo Faoro. Jessé defende que os sociólogos formularam uma ideia de sociedade brasileira preconceituosa, como se o patrimonialismo fosse característica única da sociedade brasileira e a corrupção o sobrenome do Estado brasileiro. O especialista confronta essa tese que chama de "mito" construído pela elite brasileira, pontuando que sistemas corruptos e patrimonialistas são, na verdade, fruto da relação desigual entre classes em qualquer parte do mundo.
Eis a entrevista.
Explica um pouquinho a natureza desse livro, que parece mais um livro de luta, em comparação com a sua produção.
Um livro leva ao outro. Eu acho importante o outro livro pra tentar mostrar uma coisa que não é muito óbvia, que é como as ideias montam e justificam o mundo. E aí eu tentei reconstruir o que acho que é a ideologia nacional, que é uma ideologia extremamente conservadora, tem haver com a demonização do Estado, a idealização do mercado, ou seja, tem a ver com você usar seletivamente a corrupção como se ela fosse coisa de funcionário público, como até há poucos anos a lei era, tornar invisível a corrupção verdadeira, porque no fundo o tema da corrução nos faz de imbecis há um século, exatamente por conta disso, ninguém define o que é.
A ciência, entre nós, definiu a corrupção como algo como se fosse atributo do Estado.
Sendo que o corruptor sempre...
Sempre é o mercado. Se você for definir a corrupção como enganar o outro, o mercado engana a sociedade, a sociedade como um todo compra o Congresso, por exemplo, pra que você nunca passar leis que possam taxar ricos. O Estado fica pobre, porque os ricos ficam cada vez mais ricos, e os ricos não são taxados, porque você já comprou a política pra que isso aconteça. E aí, se você não pode taxar os ricos, então você tem que pedir emprestado o dinheiro dos ricos, que é quem têm o dinheiro. Essa é a raiz da crise fiscal, que é entendido de um modo completamente distinto, como se fosse cortar educação e saúde dos pobres e da população.
Ou seja, isso é a corrupção, isso é enganar sistematicamente o povo, distorcer sistematicamente, porque essa elite econômica, que é a mandante do golpe, e não é vista como tal, ela é invisibilizada, porque ela tem esses dois braços empíricos dela: um o Congresso comprado - ela compra diretamente via financiamento privado -, e o outro braço é a mídia.
Você sabe disso muito melhor do que eu, a mídia ao mesmo tempo que é comprada por negócios, propaganda etc, mas ela própria faz parte dessa elite. O que nós temos como o início desse golpe foi a quebra do antigo compromisso que foi feito, um compromisso que foi feito desde 88, que foi atualizado pelos governos do PT, que foi montar 'a gente não vai tocar no rentismo, mas a gente vai usar pra redistribuição'. Essa pequena coisa é intolerável numa sociedade escravocrata como a nossa. Quando a bonança das commodities estava encerrando, a presidenta Dilma imaginou certamente de que você iria ter uma nova matriz econômica, essa matriz econômica tinha que ter um processo de industrialização interna, um fortalecimento do mercado interno, e tinha que ter um combate ao juros, que é um juros extorsivo, absurdo que é mera extração da riqueza de todos para o bolso de meia dúzia. É por isso, você tem os juros maiores do planeta inteiro aqui. Isso fez com que toda a elite econômica se juntasse contra a presidente porque o agronegócio, o comércio e a indústria confiam seus ganhos a esse mercado financeiro que drena o recurso de todos.
Invés da atividade principal ser a que gera o lucro é a tesouraria dessas empresas que garante lucro... Daí vira o país do rentimos.
Exatamente isso, e aí então adquire toda a realidade, a epígrafe que nós utilizamos no livro que é você transforma o país inteiro num puteiro, porque assim você ganha mais dinheiro.
Nos Estados Unidos a gente teve essa priorização na parte financeira, em todo esse período que vem pós [Richard] Nixon [presidente dos EUA de 1969-1974], mas num certo momento, quando explode o mercado a questão de juros e tudo é tratada de outra maneira, o próprio governo Obama lança programas energéticos e tudo visando recuperar a atividade. Qual é a dificuldade no Brasil? Até há algum tempo atrás a gente via lideranças industriais, Paulo Vilares, o próprio [Jorge] Gerdau e hoje em dia você não vê mais. O que levou a esse estado de coisa? Foi uma globalização antecipada, o que foi?
Esse tema é extremamente importante pra que especialistas estudem isso mais a fundo. Obviamente tentou-se montar uma nova matriz econômica com o Lula já, que acho que era extremamente importante a partir do petróleo, não apenas como doença holandesa, mas sim como o fundamento de uma indústria naval, fundamento de empregos na Bahia, no Rio de Janeiro, ou seja, pro desenvolvimento que não ficar restrito a São Paulo.
As próprias multinacionais brasileiras que se lançaram ao mundo...
Claro, exatamente isso. Eu só consigo pensar nisso em termos de uma elite que nunca se acostumou a pensar num projeto nacional que envolvesse outras frações da própria elite e no acordo amplo de classes. Se você imaginar, não só Alemanha, França, Estados Unidos, Inglaterra, aonde houve elites que montaram um planejamento de longo prazo e montam até hoje, mas principalmente no Japão, na China etc. São formas de desenvolvimento aonde há exploração mas é algo racional, ou seja, é pensado no tempo, pra que dure. Enquanto a gente tem aqui uma elite da rapina de curto prazo. 'Eu quero meu dinheiro no bolso agora!'. Tem um pré-sal aí, você não vai montar educação pra população inteira, que a médio prazo iria garantir condições de lucro também pra essa mesma elite, mas é uma elite pouco inteligente, ela de escravos. 'Eu quero o meu agora'.
Quando a gente pega parte da história do Brasil aí, o funcionário público teve papel essencial na criação de modelo de Estado, seja através de Itamaraty, Banco do Brasil, posteriormente BNDES, foram os funcionários públicos que ajudaram a montar o projeto da Petrobras. Como se explica hoje uma burocracia pública que está de um lado Ministério Público endossando esse jogo claramente aí e outras burocracias públicas, Tribunal de Contas e outras entrando nesse jogo de curto prazo? Onde se perdeu o fio da meada?
Eu acho que tem um pouco a ver com essa união de todas as elites e a desconfiança que já existia transformou-se num ódio explícito e transformou-se em uma campanha. Em Junho de 2013 a gente tem, e eu coloco no livro, o ovo da serpente, é uma distorção sistemática da realidade de tal modo que manifestações locais e municipais foram montadas pra serem federalizadas e atingirem a presidenta, e efetivamente atingiram.
Daí a mídia teve esse papel...
O Jornal Nacional construiu todo um enredo do golpe. Ela [a mídia] construiu a narrativa do golpe, ou seja, é um tema em que a corrupção ainda era abstrata, em 2013, quer dizer a Lava Jato vai torná-la concreta, de uma forma seletiva como se fosse só o PT, a narrativa como você muito bem já pôs de organização criminosa, sem abranger outros partidos, sem abranger os outros níveis da administração. Ou seja, extremamente montada pra produzir certo efeito, e pra montar uma base social do golpe.
Por que, se você pensar, esse golpe foi tentado antes com o mensalão, da mesma forma. Ou seja, corrupção seletiva, com elementos de classe... porque aí o que a elite econômica pensa 'eu não quero educação, eu não quero nada pra esse povo, eu quero orçamento do Estado no meu bolso e eu quero as empresas privadas no meu bolso, e eu quero poder drenar a riqueza de todos pro meu bolso o mais rápido possível'. Esse é o projeto dessa elite, basicamente, mas o Brasil teve que entrar no economismo forçado pra manter a coisa do acordo político.
Em Junho de 2013 constrói-se a base social do golpe, e é muito interessante a gente ver isso senão a gente não compreende o golpe. O golpe não é só de figuras, é uma luta de classes ali. Tem uma fração conservadora da classe média que tava vendo que a ascensão dos mais pobres tava implicando numa divisão de espaço que antes era exclusiva, e essa classe média é uma classe média escravocrata também, não é só como a elite.
Em junho [de 2013] esse movimento foi deflagrado por uma rapaziada com uma visão de esquerda - o Movimento Passe Livre -, a própria esquerda na época, quando surgiu até outros movimentos, a esquerda tradicional, achava que essa molecada ou era massa de manobra da direita, ou vinha ocupar o seu espaço. Esse pessoal acabou sendo expulso desse espaço também pela falta de visão da esquerda.
Claro. Você toca num ponto importante, no fundo ali você tinha vários estudantes da periferia que estavam tendo a chance de entrarem na universidade que era inclusive a face mais virtuosa da ascensão que tinha acontecido. Não era só acesso ao consumo, não é só ter mais dinheiro no bolso, aí é a incorporação de capital cultural, que é o que importa, verdadeiramente. Então você tava habilitando classes e frações de classes importantes pra o que importa, que é a redistribuição da riqueza e do poder. Isso é definitivamente importante. Mas é claro que o tipo de matriz econômica dos governos anteriores estavam montados numa passagem dos excluídos para uma classe de trabalhadores precária, ou seja e em empregos de pouco valor, que exigem pouco conhecimento incorporado, e essa turma era uma primeira turma que já estava com esse tema da inflação do diploma. 'Que tipo de emprego eu vou ter?', O que iria, se fosse bem percebido, garantir um aprofundamento do processo, uma nova narrativa para o processo, o que não houve. Houve uma narrativa marqueteira da nova classe média e tal. Não se faz isso, quer dizer a mentira tem perna curta. Dava pra ter sido proposto: 'agora nesses cinco anos vamos tentar mudar isso, no próximo aquilo etc. Dava até pra tentar montar uma narrativa e ali que se perdeu. O pentecostalismo foi quem reassumiu essa narrativa.
Se você pegar as políticas aí como o Pronatec, o Prouni e tudo, você tinha as ferramentas.
Mas não foi usado. A esquerda tem muita culpa nisso, no livro eu faço a crítica dessa esquerda que no fundo é economicista. Qual é o economicismo aí? Se você muda o projeto econômico de uma forma que seja mais redistributiva a sociedade, essa é a ideia, vai se modificar automaticamente. Isso é infantil, e a vulgata marxista. Mas foi exatamente isso que estava na mesa, porque não tinha uma reflexão sobre o Estado, não tinha uma reflexão sobre as lutas corporativas do Estado, então foi um republicanismo ingênuo o tempo inteiro, nomeações do partido corporativo etc, não tinha uma leitura sobre a sociedade, ou seja, sobre as lutas de classe que estavam acontecendo. Então houve uma leitura da esquerda também, que até hoje é assim, isso significa o fato da esquerda ser colonizada pelo discurso da direita.
A noção do estado que a esquerda tem é montada por Sérgio Buarque [de Holanda] e Raimundo Faoro, que são os pensadores mais conservadores, montaram a demonização do Estado. E é uma forma que implica em enquanto você privatiza mais melhor, porque você vai ter menos corrupção, um argumento ridículo que significa uma apropriação absurda da riqueza por meia dúzia. Isso tudo a esquerda comprou e compra até hoje porque não tem um discurso alternativo a isso.
Eu lembro de alguns pensadores que num certo momento falavam 'acabou a faze da inclusão, agora nós precisamos pensar o que vai ser a demanda da nova classe média'. Ficaram achando que ia demorar cinco, dez anos pra que isso acontecesse, mas daí veio um terremoto [junho de 2013]... Agora quando a gente pega o fenômeno do ABC [Paulista], nos anos 70, você teve um período de ascensão social e econômica dos metalúrgicos, em todo o período da ditadura e quando aquele crescimento é interrompido pela crise que leva àqueles movimentos de questionamento do regime também. Então você tem o fato de você ter tido um limite ao crescimento que naturalmente levaria a essa reação contra o regime.
Exato. Veja bem, eu tenho algumas ponderações a esse respeito. Eu não acho que a crise econômica em si produza qualquer coisa. Toda a crise econômica ela tem que ser interpretada. A interpretação da crise que é importante, porque ela pode ser interpretada de diversas maneiras, então é a construção disso. E não houve isso, não houve uma hegemonia de uma narrativa que pudesse se contrapor a isso. A mídia percebeu isso e, satanicamente, refinadamente, construiu uma narrativa, deu essa narrativa pra uma fração da classe média. Porque a classe média não é uma coisa só, ela é muito heterogênea, mas ela tem realmente uma fração expressiva proto-fascista. Por que proto-fascista? As pessoas pensam 'mas isso aqui não é Hitler e tal!'. Calma. Hitler e Mussolini foram realizações radicais do fascismo, mas o fascismo é algo que existe na vida política e pode ser aprofundado.
Qual é o esquema do fascismo? É você utilizar emoções, ódios que não são refletidos que você dá um canal de expressão pseudo-racional, a imprensa deu isso. Eu fiz uma análise empírica do Jornal Nacional, dia a dia, em junho, ele constrói isso, ou seja, aquela classe média que reclamava de tal shopping center cheio, os aeroportos cheios, uma irritação, mas que não era legítima, que era feita envergonhadamente, à boca pequena.
O que foi que o Jornal Nacional deu? Uma legitimação pseudo nacional dizendo 'isso não é irrigação sua. Isso é você que percebe que o problema do Brasil é a corrupção estatal'. Ou seja claro que a ciência entre nós já tinha dito isso e a mídia fez uma vulgata disso, ou seja, todo o brasileiro pensa nesses termos, e aí você não é o canalha que não quer que os pobres subam na vida, ao contrário você é o herói da nacionalidade, você pode vestir a bandeira amarela, sair com a bandeira, cantar os hinos a plenos pulmões. A narrativa foi dada.
Então essa extração expressiva da classes média que havia perdido quatro eleições, agora se engaja com uma intensidade que não existia antes, ela saí à rua e é vendida como o povo nas ruas. E não havia uma contra-narrativa.
Pois é! E agora a única contra-narrativa possível aí seria da própria presidência da república que não exerce isso.
Não, mas ela não podia exercer porque a mídia entre nós é uma mídia de país ditatorial. Não há opinião alternativa. Isso não é mídia, não é nem uma caricatura de mídia. O brasileiro médio não tem um padrão de comparação de países onde tem mídia pública etc.
É absurdo você ter programas como a gente tem [como por exemplo do] William Waack convidando três pessoas que pensam a mesma coisa, tomando um whisky e tal. Isso é manipulação pura, você não informa o seu telespectador. Você só pode informar seu telespectador se tiver duas opiniões contrárias, pra que ele possa montar a dele, então dever-se-ia, quando tivesse sido possível, montar uma mídia que fosse democrática. Você já perdeu a luta da mídia quando você não montou condições pra uma mídia democrática entre nós.
O que foi que aconteceu em Junho [de 2013]? Você montou uma narrativa, uma base social que não existia, no Mensalão, dois fatores que foram satanicamente, conscientemente refletidamente montados e construídos. Eu tento mostrar isso no livro. Faltava o líder, porque uma narrativa é uma ideia intelectual, precisa ter um líder pra se identificar emocionalmente. Um líder pra isso é extremamente importante, alguém que pudesse se contrapor ao Lula. Aí foi o que o Moro foi.
Como com Joaquim Barbosa tentou-se também.
Tentou-se mas não se conseguiu. Moro foi em 2014, mas em junho já houve a cooptação do partido corporativo do poder judiciário, partido que tem salários nabadescos, privilégios etc, que estava montado na reprodução desses privilégios. É uma casta jurídica, tem pessoas de vários órgãos, tem uma origem social comum, se sente acima da sociedade, é o receptáculo ideal pra ser o guardião da moralidade. No fundo você está defendendo privilégios mesquinhos e corporativos e que aí tem o discurso pra penetrar ainda mais na agenda do Estado sem voto pra montar uma agenda de estado policial, abolindo as garantiras individuais, jogando no lixo, ou seja uma regressão civilizacional de grandes proporções, pra aprofundar essa agenda conservadora entre nós. Esse o grande perigo do golpe agora. E foi construído também midiaticamente, lembra do apelo [contra] a PEC 37, autoritária, porque você elimina o espírito da Constituição de 88 no controle de quem investiga, de quem acusa, que é o controle democrático.
A PEC 37 era pra quebrar esse controle, e houve apoio explícito do Jornal Nacional a isso [contra a PEC 37, em apoio ao Ministério Público]. Ou seja, está chamando o partido corporativo pra depois você ter vazamentos ilegais de toda a espécie. Foi tudo montado em junho de 2013, e aí que eu digo o ovo da serpente, sem que a gente perceba essa dimensão simbólica do golpe e montar um discurso, que foi depois o golpe real, em maio de 2016. Ali foi o mero pretexto, podiam ter tido pessoas que fizessem de outro modo e tal, nem foi o golpe sonhado, para o golpista poderia ter sido melhor se tivesse sido puramente jurídico, mas não foi.
Quando a gente pega essa questão da geopolítica internacional, eu entrevistei recentemente o Jamil Chade que é o correspondente do Estadão em Genebra, que tem bom contato com o FBI, cobriu a Fifa, e ele disse que essas manifestações abriram a cabeça do FBI de que o Brasil estava pronto pra enfrentar os grandes modelos de corrupção. Um deles é a questão do petróleo que já está naquelas espionagens em cima da Dilma e o outro a questão do futebol e da Fifa, porque aqui o futebol hoje é a base da audiência dos grupos de mídia nacionais, e os grupos de mídia americanos nunca conseguiram entrar nesses mercados por conta das concessões e das regras, então eles achavam que por aqui poderia... Só que na Lava Jato você tem a cooperação estreita do FBI, departamento de Justiça, quando entra a Fifa o Ministério Público Brasileiro deixa de fornecer os dados para os Estados Unidos por conta do pacto com a Globo, então você cria uma impunidade aí monumental. Como você você vê a contra-reação a esse estados de coisas? Quanto teve os golpes, lá atrás, você tinha Floriano [Peixoto, vice-presidente do Brasil que assumiu mandato em de 1891 a 1894] consolidando a república, o Getúlio [Vargas] no bojo de um movimento nacional, em 1964 uma corporação militar. Agora você tem um golpe que entra meia dúzia dos políticos mais suspeitos a república, sendo endossados por cartões que defendem a moralidade. Qual é o desfecho.
Acho muito interessante isso porque no fundo a classe média é uma classe extremamente importante, e ela tem que estar nesse jogo. Porque, por exemplo, se a elite econômica, que é minima, alguns milhares de famílias que embolsam tudo, não é isso? Mas é a classe média que exerce a dominação. Quem é o juiz, quem é o jornalista que escreve, o professor que dá aula? A dominação social é montada pela classe média, e se ela tem uma fração proto-fascista expressiva, ela não é fascista inteira, esse fascismo você não vai convencer, eu acho, porque ele encontrou a saída, o discurso que vai se agarrar da Venezuela, do Lulo-petismo, esses esteriótipos todos. Mas tem uma parte da classe média, estou estudando isso, que é liberal e está assustada. Mas tem uma parte da classe média, estou estudando isso ainda, que é liberal e que está assutada, ela foi enganada, ela sabe que foi enganada. Esse pessoal está em disputa política. E a classe média é fundamental, tem uma parte da classe média também que é mais à esquerda que é muito minoritária, mas que é muito importante...
Inclusive o papel dos artistas e da própria mídia independente....
Tem uma parte da classe média, e o pessoal tem achado muito interessante essa denominação que eu arrumei, porque estou vendo agora, em termos políticos, é claro que aí a pesquisa vai aprofundando, vai melhorando, mas estou vendo quatro nichos. [Um é] o proto-fascista, esse que você não convence; tem uma parte muito importante também que é a liberal, que está vendo que foi enganada; e tem uma parte que a que realmente tem capital cultural. Porque a classe média muito pensa que tem grande capital cultural, e no fundo pelo que estou vendo nas entrevistas ela houve a CBN, quando está indo pro trabalho de manhã, e houve Globo News quando volta pra casa. Com um bombardeio desses você não tem mais nenhuma capacidade de reflexão.
Mas você tem uma classe média que é de alto capital cultural. Tem uma parte que é mais de esquerda, crítica etc, e tem outra que estou chamando de Oslo [alusão à capital a Noruega]. É o cara que mora em São Paulo, nos jardins, ele não vê miséria, só vê riqueza. A pobreza é um negócio muito longe, naturalizada e ele acha que mora em Oslo, e o amigo dele mora em Estocolmo e até tem uma agenda escandinava. E é e-mail up-mail, ambiente, aquelas coisas importantes - não estou dizendo que não sejam coisas importantes -, mas a questão é de hierarquia mesmo. Na Suécia, na Dinamarca não existe miserável. Os caras resolveram isso então tem outras agendas. Mas aqui nós temos uma classe média como se fosse de um país como a Suécia, como se não houvesse a miséria, como se fosse um dos países mais injustos e miseráveis, 70% entre nós não tem privilégio algum, e o cara tem essa visão muito montada por conta também dessa mídia. E esse cara também acho que pode ser nesse instante confrontado com esse tipo de coisa.
E inclusive esses atentados aí ao direito pegam esses caras...
Claro, é o mundo dele, o mundo dos contratos. O que houve agora é que as pessoas imaginam que o mundo é de interesses só, e não é, nós somos seres morais. A gente, saibamos disso ou não, nós temos que justificar nossas ações. Isso é extremamente importante. E quando você engana o povo, você vai ser cobrado por isso depois. O que houve foi um negócio - e eu uso essa metáfora logo no começo do livro, é fácil, todo o expectador de filme de gangster sabe -, é fácil você juntar aventureiro pra assaltar um banco, o lance é depois como você vai dividir o botim, daí você vai ter traição, morte e tal, o sangue vem aí. Quando você vai assaltar a soberania popular é a mesma coisa. É fácil você juntar aventureiro nisso, mas como você vai dividir o botim depois?
A imprensa jogou todo seu capital de confiança nisso, foi um lance absurdo. Eu não faria isso, não é inteligente, isso vai ser cobrado depois, você vai perder seu mais precioso capital.
O Ministério Público, a Procuradoria-Geral da República.
O poder judiciário entrou nessa e está jogando seu capital. Isso é capital de vida e morte. Como é que vai enrolar esse jogo? Tem capítulos muito interessante a serem jogados aí, apesar de muito trágicos, obviamente.
Agora fundamentalmente em função dessas decisões moares você é otimista em relação ao futuro, mas qual futuro? Um imediato, médio prazo?
Eu não sou otimista, obviamente o que está acontecendo, eu acho, é que a riqueza vai ser pulverizada. Acho que vai ter uma festa grande no negócio, vai-se pegar pré-sal, vai dividir as nossas riquezas, o povo vai ficar muito mais pobres, a gente não vai ter futuro etc.
Pela primeira vez, eu acho, o jogo da elite entre nós ficou claro, ficou óbvio. Esse é outro componente que é interessante, porque a médio prazo esse assalto vai ficar óbvio e que foi um assalto pelo pior dos motivos, porque não teve nada a ver com o combate à corrupção. Foi para assaltar [a riqueza nacional] pelos motivos mais torpes e mesquinhos e uma criminalização da esquerda, de todo o pensamento que seja de algum modo que tenha a ver com o resgate desses esquecidos entre nós, e eu acho que a gente abre a possibilidade aí de que pela primeira vez que, inclusive para a esquerda, porque a esquerda é dominada por esse discurso, daí os tiros no pé que ela deu o tempo inteiro, de que a gente passa a limpo essa herança escravocrata que nos persegue e que a gente repete sob o modo pseudo-democrata.
Nós hoje em dia somos uma pseudo-democracia. Porque quando você não respeita a soberania popular, não é uma coisinha pequena. É a única coisa que é fundante em uma democracia, a única coisa que deveria ser intocável. Você vai obedecer uma lei, por quê? E está baseada em quê? É o voto que dá a base legal e moral a essa obediência. Você só obedece ao juiz porque ele está agindo em nome da soberania. A política também.
Se você assalta a soberania, o que é a política? Um jogo e um jogo pragmático, não tem moralidade alguma, substância alguma, nenhum acordo aí entre as classes que montam isso. Então foi gravíssimo o que aconteceu e eu não sei o que vai dar dessa coisa, porque você tocou no ponto principal.
A gente está vendo a rapaziada, atras de Facebook, vejo filhas, neta aí, você está tendo uma recuperação dos valores de esquerda, até brinco que é o pessoal das catacumbas, estão pegando a origem, a solidariedade, a luta contra o preconceito, defesa dos direitos da pessoa ser o que é. Eu não via isso há muito tempo. A esquerda se burocratizou, perdeu o fio da meada, eu acho que está tendo uma reconstrução em cima desse ponto que você está falando.
Eu acho que a curto prazo ainda tem um susto, mas você não consegue dominar uma sociedade com base na hipocrisia e na mentira, basicamente é isso. Os caras que deram esse golpe estão demonstrando uma falta de inteligente enorme e inacreditável.
E as redes sociais, embora não tenha um discurso hegemônico, elas impedem que você consiga criar uma versão única.
Exatamente, o ser humano tem um mínimo de chama de reflexividade, e o que eu acho como o principal dessa história inteira é que a grande mentira das elites, que foi uma mentira construída cientificamente, a partir de Sérgio Buarque, Raimundo Faoro, como se a corrupção fosse a grande singularidade cultural brasileira, é um absurdo dizer isso - os americanos legalizam a corrupção, a corrupção é a forma de você manipular o tolo no fundo -, é que esse discurso possa agora perder a validade, porque é um negócio escancarado.
Se você escancara um único discurso que essa elite predatória tinha para transformar os interesses mais mesquinhos em torpes em suposto interesse geral: 'olha a gente está querendo montar a maior organização do país', que foi isso que construído no fundo pra se contrapor ao PT. Num país tão pobre como o nosso, o PT era pra ficar aqui 50 anos, claro! Você ganha 70% sempre, de lavada. Você montou o tema moralismo, esse moralismo que está mostrando como sendo hipócrita, mentiroso, falso, pra se contrapor ao tema dessa desigualdade.
A campanha contra a desigualdade encarnada pelo Lula. Porque o ódio, Nassif, não é o Lula, é muito simplista achar isso. O Lula representa a ascensão dos pobres. Você tem uma classe média que tem medo disso porque essa que vai ser confrontada depois no seu prestígio, no seu emprego. No fundo é isso. E aí você tem um líder que encampava um outro valor, a moralidade, no fundo, que poderia ter o mesmo peso do que o combate à desigualdade. Porque nós somos sociedades cristãs, você não pode legitimamente dizer que é contra a igualdade, se diz isso a boca pequena.
Fixa no percador
Exatamente. Mas essa contra-coerção está mostrando hoje que foi hipócrita.
Mediucre
Mediocreira e mal montada no fundo e paga-se um preço por isso. Quando você é burro, no fundo e tem muita gente que tem pouca inteligente, você acha que o mundo é coisa de interesse e que você faz a coisa e não vai pagar aquilo, não vai ter consequências por aquilo. Se você não justifica seus atos você vai pagar consequência e a conta vai vir grande.
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Para Jessé Souza, golpe nasceu em junho de 2013 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU