06 Julho 2016
"Desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja tem sido a favor da democracia, leal ao Estado-nação (desde que respeite os direitos humanos e permita algumas formas de objeção da consciência). Mas, ao mesmo tempo, Roma diz aos Católicos que deve dialogar com regimes opressivos, a fim de permitir que a Igreja sobreviva e se prepare para um futuro melhor".
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de História do Cristianismo na University of St. Thomas, EUA, em artigo publicado por Global Pulse, 04-07-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Eis o artigo.
A Grã-Bretanha votou para deixar a União Europeia (UE) através de referendo. E não importa se ou como o "Brexit" é suportado, a Europa nunca mais será a mesma.
As elites da Europa Ocidental têm operado, nos últimos setenta anos, sob o pressuposto de que seu povo não tinha escolha para a salvação do continente, a não ser apoiar o projeto da UE. Eles têm confiado em uma compelle intrare ("obriga-os a entrar"), tomando emprestada a linguagem eclesiológica. Ou seja, assim como as autoridades eclesiásticas usaram a parábola de Jesus sobre o banquete (Lucas 14, 23) para coagir as pessoas a irem para a igreja, as autoridades governamentais da Europa tentaram obrigar seus povos a entrarem na UE.
Mas agora uma nação membro decidiu sair, e as elites europeias veem todo o projeto em risco. É quase como que um extra Unionem Europeam nulla salus (não há salvação fora da União Europeia).
A reconfiguração do projeto da Europa está diretamente relacionada com a reconfiguração da Igreja Católica. E não tem nada a ver com nostalgia de uma cristandade medieval europeia ou catolicismo eurocêntrico. Há três questões que ligam este momento chave na vida do Velho Continente e do catolicismo romano.
A primeira questão é histórica
A crise da UE é uma das faces da crise do europeísmo católico. Por um lado, enquanto for verdade que o projeto europeu foi parte de uma visão dos Católicos, dos Estados Unidos e das elites políticas pós-Segunda Guerra Mundial, então, a fraqueza desses três atores é parte da crise da Europa.
Durante a Guerra Fria, o teólogo protestante alemão Martin Niemöller disse que a República Federal da Alemanha (a Alemanha Ocidental) tinha sido "gerada no Vaticano e nascida em Washington," num momento em que os católicos ainda estavam nas margens do establishment político dos EUA.
A ascensão do catolicismo nos Estados Unidos durante as últimas três décadas tem tido um impacto político, mas não no sentido de aproximar a América e a Europa. Talvez justamente o oposto, se alguém notar a forma negativa na qual os intelectuais católicos americanos neo-conservadores, como George Weigel, normalmente falam sobre a Europa e o catolicismo europeu.
Neste sentido, a responsabilidade pela crise da União Europeia repousa não somente nos católicos europeus, mas também (de uma forma diferente) com os católicos do mundo todo, incluindo aqueles dos Estados Unidos.
A segunda questão que conecta o Brexit e o catolicismo é a teologia política; isto é, como os Católicos de hoje visualizam o Estado-nação e os organismos internacionais, na era da economia globalizada.
A primeira questão prática é se a democracia deveria ser direta ou representativa. A Igreja Católica tem lutado com a ideia de democracia desde a Revolução Francesa e parece-me que os seus ensinamentos, desde a b, tem assumido e aceitado a forma representativa acima da versão direta.
Aqueles que acusam o papa Francisco de ser um típico populista latino-americano, ainda têm que demonstrar politicamente como ele tem encorajado os Católicos a evitar a democracia representativa (algo que ele não tem feito).
A segunda questão diz respeito à noção de Estado-nação. Teólogos Católicos anglofalantes que são inspirados pela "ortodoxia radical" enfatizam a necessidade da Igreja rejeitar a ideia de Estado-nação como uma idolatria. Mas parece-me que a ideia de democracia direta como infalível também pode ser vista como idolatria. Não se esqueça, a multidão escolheu Barrabás ao invés de Jesus.
Mas há algo neste debate que também vai tocar aqueles que não leram os argumentos provocadores da ortodoxia radical. Do ponto de vista do futuro da Igreja Católica como agente político global, devemos lembrar que a sua percepção teológica e magisterial sobre o estado-nação, no século 20, foi influenciada mais pelas suas experiências europeias e latino-americanas do que as da América do Norte, África ou Ásia.
O Brexit poderia muito bem ser um momento chave para revelar que a velha (mas nem tão velha assim - apenas 70 anos) confiança dos católicos no estado-nação, como uma parceira para a Igreja Católica, não é tão universal assim. A forma como os católicos visualizam o estado chinês ou o estado das Filipinas pode acabar tendo uma influência muito maior sobre o futuro da Igreja do que as formas como os Católicos enxergam a Alemanha ou a França.
A terceira questão que liga o Brexit e os Católicos diz respeito à futura descentralização da Igreja e o que isso significa para as orientações políticas dos seus membros em todo o mundo.
O Papa Francisco tem dito repetidamente que a Igreja Católica precisa ser menos centralizada. Isto é geralmente aceito de um ponto de vista eclesiológico, mas ninguém sabe ao certo o que pode significar para a postura política dos Católicos ao redor do mundo.
Desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja tem sido a favor da democracia, leal ao Estado-nação (desde que respeite os direitos humanos e permita algumas formas de objeção da consciência). Mas, ao mesmo tempo, Roma diz aos Católicos que deve dialogar com regimes opressivos, a fim de permitir que a Igreja sobreviva e se prepare para um futuro melhor (isto é o que a Ostpolitik do Vaticano, entre 1945 e 1989, com os países comunistas, diz respeito).
Tudo isso foi baseado na suposição de que o Papa e a Santa Sé sabiam o que estavam fazendo, e que os Católicos acreditavam na boa-fé e na pertinência da diplomacia vaticana. Esse foi um ato de fé baseado em uma eclesiologia centralizada onde, referindo-se a determinadas áreas-chave, o Vaticano poderia e deveria sobrepor episcopados locais ou nacionais.
Mas o futuro de uma Igreja Católica descentralizada poderia ser muito diferente. Cardeal Joseph Zen, bispo-emérito de Hong Kong e um forte opositor de qualquer diálogo entre o Vaticano e a China comunista, recentemente pediu a seus "irmãos e irmãs" da República Popular da China que ignorasse um potencial acordo entre a China e a Santa Sé, que carrega a aprovação do papa.
Quando ele ainda era apenas um bispo-coadjutor em 1999, o Cardeal Zen experimentou uma espécie de Brexit quando o Reino Unido transferiu a sua soberania sobre Hong Kong para a China. A postura do cardeal frente ao Papa Francisco e suas negociações com Pequim poderiam ser uma prefiguração de um novo catolicismo mundial - não no sentido de desrespeitar o papa, mas na maneira assertiva em que os católicos locais podem determinar o que é bom politicamente para eles, mesmo que signifique ignorar a experiência do Vaticano de muitos séculos para lidar com tiranos e demagogos de todos os tipos.
Isso marcaria uma mudança radical. E seria parte da descentralização do catolicismo. Mas eu não estou convencido de que isso seria sempre e necessariamente um passo em frente.
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Rumo a um Brexit Católico? Catolicismo descentralizado e políticas globais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU